Mais informação para o usuário: com um aplicativo instalado no telefone
celular, os usuários do transporte público de São Carlos sabem onde está
o ônibus que eles estão esperando e em quanto tempo o veículo passará
pelo ponto
Em Memphis, nos Estados Unidos, a polícia pode chegar a uma esquina
perigosa antes de ter sido chamada pela vítima de um assalto ou por uma
testemunha para atender uma ocorrência de furto. Em São Carlos, no
interior paulista, o celular avisa o usuário de transporte coletivo
sobre quantos minutos seu ônibus levará até chegar ao ponto.
Na Noruega, o cruzamento de informações dos bancos de dados públicos
sobre aposentados e pensionistas ajuda a planejar melhorias no sistema
de saúde. São, todos eles, exemplos de uma nova realidade na gestão pública moldada pelo avanço da tecnologia.
De um lado, especialmente nos centros urbanos, é possível capturar um
volume crescente de informações sobre tudo o que está acontecendo nas
ruas por meio de câmeras e de sensores eletrônicos.
De outro lado, há uma intimidade cada vez maior na relação cotidiana do
Estado com os cidadãos — e ela resulta na acumulação de toda a sorte de
informações sobre cada um de nós. A carteira de vacinação da infância,
os dados fornecidos para a emissão de passaporte e a declaração de
imposto de renda são fontes de conhecimento do perfil, do histórico e
dos hábitos do cidadão. Até há pouco tempo, os órgãos públicos,
enredados na burocracia, pouco proveito tiravam desse acervo. Mas o
cenário começou a mudar.
À moda das empresas privadas, que se esmeram para desenvolver produtos
de acordo com o gosto da freguesia, governos têm feito o mesmo, tomando
como ponto de partida o conhecimento arquivado sobre os indivíduos e o
que se passa com eles. Os “produtos” dos governos são os serviços
públicos, os “clientes” são os cidadãos — e o “lucro” pode ser o bom
resultado nas urnas. Do ponto de vista das empresas privadas, é uma
lógica simples. Mas, no poder público, equivale a uma revolução de
conceitos.
Afinal, os governantes costumam tatear no escuro para adivinhar o que
a população quer. Isso ficou evidente nas semanas que se seguiram aos
protestos populares de junho de 2013 no Brasil, quando se viram reações
como a do titular da Secretaria-Geral da Presidência da República,
Gilberto Carvalho: ele confessou que estava com dificuldade para
entender o que queriam os manifestantes. Não por acaso, estudiosos da
gestão pública tratam o fenômeno do uso de bases de dados como a gênese
do governo do futuro.
Tecnologia e informação são os dois componentes-chave desse novo jeito
de governar. Não se trata de apenas entupir repartições públicas com
computadores para que eles sirvam para armazenar pilhas de estatísticas. Isso já se faz há décadas — e ter computadores à mão não necessariamente torna uma repartição pública mais eficiente.
O passo evolutivo está no uso prático e inteligente dessas informações.
Uma cidade que ilustra a nova realidade é Memphis, localizada no estado
americano do Tennessee. A polícia local recebe uma média de 2 milhões
de chamadas por ano. Cada telefonema para denunciar um crime contém
inúmeras informações — qual crime foi cometido, em que região da cidade
ocorreu, descrição física dos suspeitos, horário da chamada.
O que acontece com esses dados? Em lugares em que a administração
pública ainda não deu o passo evolutivo, eles viram apenas estatística.
Em Memphis, passaram a balizar a ação do órgão público. Com base em
dados que antes apenas armazenava, a polícia mudou a distribuição de
viaturas e policiais na cidade.
Esse cruzamento de um grande número de informações por meio de
softwares de análise é genericamente chamado de big data. Foi assim que
fez cair 30% o número de crimes na cidade nos últimos seis anos. A
polícia também pode ter acesso à lista de alunos que não foram à escola
do bairro.
Quando muitos jovens cabulam aula no mesmo dia, o risco de haver
pequenos furtos nas proximidades normalmente cresce. É um sinal de que é
bom a polícia passar por ali — e muitas vezes isso faz com que um
policial chegue a tempo de evitar que um delito ocorra.
Perguntar é preciso
“A base desse novo modo de pensar a gestão pública é muito simples:
perguntar às pessoas o que elas querem”, disse a EXAME Guy Peters,
professor da Universidade de Pittsburgh e uma das maiores autoridades
mundiais em administração pública.
Afinal, qualquer pessoa — até os governantes — pode supor que a
população quer educação, saúde, transporte e segurança melhores. Mas que
tipo de saúde se quer? E em que momento um tema como saneamento básico
assume o topo das prioridades dos cidadãos?
Os governantes costumam achar que vitórias nas urnas dão a eles também a
prerrogativa de antever o que o público deseja. Não poderiam estar mais
equivocados. “Como é impossível atender a todas as demandas, é preciso
investigar os dados para definir prioridades”, diz Peters. Foi esse
espírito que, em 2011, ajudou o município de São Carlos, no interior de
São Paulo, a derrubar o número de reclamações sobre o transporte
coletivo da cidade.
A queixa contra os atrasos, uma das mais comuns relacionadas ao serviço
na cidade há dois anos, caiu 70% desde então. Em 2011, os ônibus de São
Carlos já contavam com um sistema de monitoramento, utilizado para o
controle da frota. Esse sistema passou a “conversar” com um aplicativo
de telefone celular desenvolvido pela empresa de tecnologia da
informação Criar.
O aplicativo informa a localização, o destino e o tempo em que o ônibus
estará no ponto do usuário. Na prática, o passageiro sabe que o ônibus
está chegando antes de avistá-lo.
Ouvir as reclamações é algo antigo, mas cruzar bancos de dados para
fazer disso um norte para a administração pública é um avanço recente.
Nada que o setor privado já não tenha entendido há mais tempo. No início
dos anos 90, Christopher Hood, professor da Universidade de Oxford,
cunhou o termo New Public Management, ou Nova Gestão Pública.
Hood enxergou um incipiente movimento em governos mundo afora que,
influenciados pelos processos adotados no setor privado, puseram na
ordem do dia a busca por maior eficiência e qualidade nos serviços
públicos. Mas só agora, duas décadas depois, com o desenvolvimento das
comunicações e o surgimento de tecnologias mais apropriadas, é que os
governos têm conseguido multiplicar tais ações
Nos Estados Unidos, estima-se que o uso do big data no setor público
possa reduzir os gastos do governo em 380 bilhões de dólares por ano,
segundo pesquisa realizada pela TechAmerica Foundation, instituição de
estudo ligada a grandes empresas de tecnologia da informação.
Ouvir e interpretar
Não basta ouvir — e, ao ouvir, é preciso fazer com que manifestações
aparentemente desconexas dos cidadãos se transformem em diagnósticos de
demanda palpáveis. Em 2004, telefonemas para a NYC 311, a central de
atendimento ao cidadão de Nova York, davam conta do incômodo causado por
barulho nas ruas e carros estacionados em fila dupla.
Os telefonemas não eram denúncias contra grandes atividades criminosas,
mas foi a isso que levaram: com base nessas informações, a polícia
descobriu redes de casas noturnas clandestinas. “O call center monitora
os desejos da população, mas é preciso interpretar os dados para poder
antecipar-se às demandas”, diz Bernard le Masson, diretor de serviços
públicos da consultoria Accenture em Paris.
A empresa elaborou um amplo estudo reunindo informações sobre algumas
das principais iniciativas do gênero no mundo. No caso da prefeitura de
Nova York, a criação do serviço permitiu juntar em uma só central os
serviços de 300 diferentes agências governamentais. Na solução de Nova
York — onde antes da central a demora apenas para a solicitação da troca
de uma lâmpada de rua podia levar mais de 20 minutos e hoje se resolve
em um único e breve telefonema —, a interação humana é essencial.
Em outros casos, a interação é desnecessária. A prefeitura de Boston,
no estado de Massachusetts, também nos Estados Unidos, adotou uma
tecnologia que detecta buracos de rua por meio de um aplicativo
instalado em telefones celulares. Quando um motorista, já com o
aplicativo em seu celular, dirige pela cidade, o aparelho percebe pontos
de trepidação acima do normal no asfalto.
Esse alerta é passado a uma central da prefeitura, que destaca uma
equipe para recuperar a pista. Boston fecha 19 000 buracos de rua por
ano. É uma lógica parecida com a que funciona no bairro Guajuviras, em
Canoas, na Grande Porto Alegre, chamado “Bagdá brasileira”.
O número de homicídios no bairro caiu pela metade nos últimos três
anos. Em 2010, Guajuviras ganhou sensores que detectam o som do disparo
de uma arma num raio de até 3 quilômetros. A informação captada pelos
sensores chega a uma central da polícia, que imediatamente envia uma
viatura para verificar a ocorrência.
Usar de maneira mais inteligente as informações que têm sobre nós é
também uma forma de os governos melhorarem o gasto público. A Oxford
Economics, consultoria econômica ligada à Universidade de Oxford, na
Inglaterra, analisou dez países para saber o impacto que o aumento da
eficiência dos governos teria sobre as contas públicas.
Se os governos desses dez países elevassem sua eficiência em apenas 1%
ao ano de 2012 a 2025, eles economizariam um total de 2 trilhões de
dólares. No Brasil, a economia seria de 122 bilhões de dólares, segundo a
Oxford Economics. “Os governos têm hoje muita informação sobre as
pessoas. Eles precisam identificar quais dessas informações são
relevantes — o que é também uma maneira de ser eficiente”, diz Rolf
Alter, diretor de governança pública da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que congrega 34 países, em
sua maioria, desenvolvidos.
Afinal, eficiência na coleta de dados é mais do que amealhar o máximo
de informações possível: é saber quais delas são de fato importantes
para elevar o nível da gestão. “Não adianta melhorar os processos para
guardar informações inúteis”, diz o senador Salvador Vega-Casillas,
ex-ministro da Administração Pública do México de 2007 a 2011. O México
foi premiado em 2011 pelo Banco Mundial por práticas de modernização da
gestão pública, como o uso da tecnologia para acelerar a abertura de
empresas.
O avanço da tecnologia amplificou o uso que os governos fazem das
informações para definir políticas públicas. A Noruega reformou toda a
relação que tem com seus aposentados e pensionistas. Hoje, 22% da
população norueguesa recebe aposentadoria ou algum tipo de pensão.
Nos últimos anos, o país criou uma plataforma na internet para
concentrar toda a relação do poder público com esse estrato da
população. Primeiro veio a melhora no atendimento: requisições de
aposentadoria, que podiam levar mais de três meses, agora podem ser
feitas em minutos.
O benefício adicional — e aqui está a impressão digital do “governo do
futuro” — é que o governo passou a contar com dados mais precisos e
atualizados de seus pensionistas para preparar o sistema de saúde para
as próximas décadas. Esse acréscimo não é desprezível, especialmente
quando se considera que, em 2050, cerca de 40% dos noruegueses estarão
aposentados, segundo as projeções atuais.
“Saber usar as informações dos cidadãos para antecipar demandas deles é o
Santo Graal da gestão pública no mundo atualmente”, diz Geovani
Fagunde, sócio da consultoria PwC.
Quanto mais a tecnologia — e a qualidade das informações — evoluir,
mais assertivo será o diagnóstico das demandas dos cidadãos. Só na área
da saúde, essa evolução poderia significar uma economia de 450 bilhões
de dólares anuais em despesas governamentais em todo o mundo, nos
cálculos da consultoria McKinsey. Já há iniciativas nessa linha.
A Escócia, por exemplo, criou um programa que cruza dados da população,
como idade, hábitos alimentares e histórico de doenças familiares, para
implementar programas de saúde preventiva — o objetivo é diminuir os
gastos com procedimentos mais caros, como cirurgias e tratamentos
complexos. “À medida que os dados clínicos ficam mais precisos, é
possível prever melhor a chegada de doenças e, assim, desenvolver ações
de prevenção”, diz Rick Ratliff, diretor global da área de serviços de
saúde da Accenture.
Levantar, armazenar e cruzar informações para fazer disso um
instrumento de gestão pública pode soar como uma conversa sobre o sexo
dos anjos para muitos governantes. Essa leitura depreciativa ganha força
quando a eles é apresentada a conta pelo trabalho. Não é uma iniciativa
barata — nem aparece tanto quanto colocar asfalto numa rua, por exemplo
(o que parece tornar mais difícil a transformação dela em votos).
A mudança no sistema de gestão das aposentadorias da Noruega saiu por
mais de 500 milhões de dólares. Em Nova York, cada telefonema para o NYC
311 custa ao poder público cerca de 2,50 dólares — o custo do serviço
chega a 50 milhões de dólares anuais. O que não entra na matemática
desses mesmos governantes é que a omissão também impõe uma conta
elevada.
De acordo com uma pesquisa do Programa de Administração Pública da
Organização das Nações Unidas, só 36% dos habitantes de um grupo de dez
países, entre os quais o Brasil, estão satisfeitos com os serviços
públicos que lhes são oferecidos. Há uma maioria de insatisfeitos. É bom
que os políticos comecem logo a utilizar as ferramentas da tecnologia
para melhorar os serviços públicos.
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Reportagem por Patrick Cruz, de Exame
Fonte: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1055/ 09/01/2014
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