Temor, fé e dúvida!
Terre-ciel (Corinne Vonaesch)
“Como viver o mundo em termos de esperança?
E que palavra é essa que a vida não alcança?”
E que palavra é essa que a vida não alcança?”
“Ser é conversação” escreve Santiago Zabala.
Conversar, imaginando e realizando o tempo e o espaço que habitamos. A
sabedoria do tempo e a experiência acumulada de um capital de saber
adquirido pode ajudar-nos a olhar a realidade no modo expectante e
sapiencial. Há uma origem e um património cultural que origina a
conversação, o estilo e o modo de sermos humanos. É um património dado em herança!
Capital humano e creatural a ser recebido como dom e transmitido como
tal. O grande desafio hoje é sair da homogeneização do pensamento ou da
“urbanização” (Habermas) das referências de significado. É inegável o
sentimento mimético e o desejo fusional das diferenças comum aos
humanos de hoje. Há uma intenção dialética para ser como (cultura)enão como se é
(natura)! “Procuramos, hoje como ontem, de imaginar uma regularidade
também, e sobretudo, onde parecem reinar a complexidade e o caos”
(Moravia).
Alguns interrogam-se se não nos falta um pouco daquela admiratio/contemplatio
que outrora suscitava as grandes questões sobre as nossas origens: o
que é o ser, o homem, Deus, a alma ou a imortalidade? Muitas delas
refiguradas no profícuo pensamento literário e filosófico que os nossos
antenatos nos legaram. Ainda somos herdeiros desse tempo metafísico
rico – não obstante as posições céticas! De algum modo hoje procuramos
ainda um horizonte que suscite o desejo de perguntar “o que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares?” (Sl 8,5). E “quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8); ou ainda pelo timbre de Álvaro Campos: “Tive um passado? Tenho um presente? Terei um futuro? Sem dúvida” (in “Poemas”) que há aqui metafísica e doxologia quanto baste! No fundo, três modos de questionar o fundamento das coisas: o Temor, a Fé e a Dúvida. Três afeições teo-lógico-humanas!
A cultura é o contexto histórico aonde se plasmam as nossas escolhas e onde exercemos a nossa liberdade. Crentes e “diversamente crentes” (Dotolo) poderemos partir de pontos de vista diferentes mas o horizonte de valorização do humano-que-é-comum é um imperativo transversal. Não primeiramente ético-moral mas ontológico. O humanista francês Fabrice Hadjadj fala de uma “razão convivial que escolha o primado dos rostos sobre as ideias, do encontro sobre a persuasão. Uma
razão alargada ao espaço da imaginação, da sensibilidade, além do
pensamento geométrico que geometriza as próprias afeições. Esta
inteligibilidade do real concreto encontra na fé e na razão o
fundamento da verdade das coisas. Ela é sempre mais profunda do que a
simples evidência daquilo que aparece aos nossos olhos. Não é por acaso
que Merleau-Ponty fala da “fé percetiva” no seu belíssimo livro O visível e o invisível.
As ideias e os pensamentos são vastos quanto amplo é o universo.
Haveria de ser interessante compilar uma história das ideias! Talvez a
primeira conclusão seria a da sua impossibilidade.
Não é possível alcançar um horizonte de sentido separando academicamente saber-experiência, imanência-transcendência, fides-ratio
como se fossem graus de conhecimento diametralmente opostos. A
“determinação do fim empenha num trabalho comum de colaboração entre
ciência e teologia” escreve Horkheimer. É a absolutização da autorrealização do indivíduo que mina a confiança nas instituições e nas relações humanas. Este self sem corpo nem espírito asfixia o florescimento de um “imaginário cultural partilhável”
(Eduardo Lourenço). Será possível e conveniente imaginar uma
espiritualidade do quotidiano – «comum sensibilidade pela dimensão
religiosa do viver» (Demetrio) – capaz de mobilizar as diversas
sensibilidades na procura do sentido humano da vida?
O grau de maturidade já alcançado no diálogo entre as
diversas epistemologias do saber é apreciável (veja a título de exemplo
recente o Colóquio O que é o homem? Entre neurociência, teologia e filosofia, organizado
entre a Faculdade de Teologia de Pádua e o Centro de Astronómico de
Pádua; e a 15ª Conferência Europeia de Ciência e Teologia, em
Assis-Itália, subordinada ao tema Podem as emoções mudar o mundo? Ciência, filosofia e teologia que
contará com a presença do neurocientista português António Damásio).
Desbravar uma outra via – ou o “Terceiro” diferenciador de que fala
Lacan – capaz de desenhar novos significados de referencialidade e de
sentido num quadro plural em defesa do humano e da criação.
Para Peter Berger trata-se de um processo criativo para o qual são necessárias “reservas históricas de sentido” ampliadas pela inter e intraculturalidade.
Mas essas reservas, sejam elas culturais, políticas ou religiosas, são
inócuas sem a liberdade humana consentida que justifica a
responsabilidade em favor de outrem. Uma cosmovisão que leve a sério a
ambivalência da existência na perceção de que os antagonismos extremos
não produzem mais do que empobrecimento cultural e humano. O pensador
romeno Emil Cioran fala de “sintomas de exaurimento” (in A tentação de existir), de estados de sobrevivência no limite, do colapso de estruturas sociais e ambientais até agora estáveis.
Fragilité (Corinne Vonaesch)
O homem contemporâneo por si só já não consegue resistir à voragem globalizada da economia do ter (como metáfora é extraordinário o filme O Capital de Costa-Gavras; ou o recente filme, mas de menor qualidade semântica, O lobo de Wall Street de Martin Scorsese). Apelar a uma economia do ser, a uma casa (oikos) comum habitável, é abrir novos espaços comunitários de referencialidade intercultural (a este respeito é belíssimo o filme A árvore dos Tamancos ou A aldeia de cartão ambos de Ermanno Olmi). Construir comunidades de pensamento, de crença, de afeto e de vida comum, é lutar contra um certo estilo de vida de condomínio cultural, social e económico.
A eclesiologia fraternal cristã poderia servir de
modelo à comunidade humana, se assumida na sua radicalidade pelos
próprios cristãos (libro dos Atos dos Apóstolos e cartas de Paulo)!
Potenciar tecidos comunitários que coloquem a pessoa no centro das suas
reflexões e práticas. Tornar acessível ao homem contemporâneo a arte, a
imaginação, a fé, a ciência, a razão, o afeto que dignifica o humano
segundo a liberalidade do Espírito que o habita. “Grandes mistérios habitam o limiar do meu ser”
clama a voz do poeta Fernando Pessoa. Uma procura do sentido das
coisas capaz de fazer maravilhar e admirar os outros, e não permanecer
como um bem apenas para si mesmo.
Propor a metáfora como via de “propensão para o
sentido” (Pedro Cabrita) e de educação dos sentidos afetivos – que é
transversal a todos os discursos e modos de vida, à religião, à
ciência, à arte, ao senso comum – é abrir um espaço para a
compreensibilidade de mundivisões e práticas aparentemente distantes.
A metáfora aproxima-as na medida em que não as reduz à liquidez do
real nem anula a tensão entre identidade e diferença, mas potencia a
diferenciação identitária. Ela conserva sempre a pluralidade
interpretativa segundo um ethos veritativo (o humano-que-é-comum)
e a profundidade de um saber cumulativo de experiências vividas
responsavelmente. À metáfora caberá reescrever a realidade de um outro
modo. A “linguagem poética muda o nosso modo de habitar o mundo. Da
poesia recebemos um novo modo de ser no mundo, de nos orientar neste
mundo” (Paul Ricoeur).
Há uma origem generativa que nos precede e
orienta a uma destinação! A palavra precede-nos e domina-nos
(existência das reservas históricas de sentido que narram a nossa
história pessoal e comunitária). Não somos nós que dispomos da origem
mas é ela que dispõe de nós. Uma filosofia, ciência ou religião que não
coloque o sujeito humano no centro priva-se da sua essencialidade. O
humano não vive em si e para si mesmo, no seu condomínio fechado
(figuração pós-moderna de Narciso que o pintor Salvador Dalí retrata
soberbamente). O desejo de infinito – de amar e ser amado, de conhecer e ser reconhecido, de perdoar e ser perdoado – coloca o ser diante da contemplação de uma alteridade que se faz presente, Deus, o mistério que ‘É e Faz’ crescer cada humano na sua singularidade.
Percorrer este caminho – tão provisório e frágil – enraizado nessa origem que nos precede, é reconhecer de certa forma a ‘incredulidade que habita o crente e a credulidade presente no diversamente crente’. A aceitar a precedência generativa e originária do Logos é reinscrever com o poeta Carlos Drummond de Andrade a metáfora do Viver, questionando sempre: Como viver o mundo em termos de esperança?//E que palavra é essa que a vida não alcança? (in ‘As Impurezas do Branco’). O significado do Verbo é
o que crentes ou incrédulos, artistas ou cientistas, teólogos ou
filósofos – procuram como “ato de abandono ao mistério incompreensível
na superação dos discursos pios” (K. Rahner). Uma via que suplante a
intrepidez da retórica dos discursos e seja capaz de apelar à metáfora viva para entrar no mistério da existência.
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João Paulo Costa
© SNPC | 19.01.14
© SNPC | 19.01.14
FONTE: http://www.snpcultura.org/alem_do_estilo_de_condominio.html
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