segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O capitalismo de fêmeas

 Paulo Ghiraldelli*
 
Um toque de pecado (Tian Zhu Ding, China, 2013) é um tipo de Pulp Fiction chinês? Paulo Francisco, meu filho que está estudando filosofia, acertou dizendo isso. O trabalho do diretor Jia Zhang-Ke lembra a película de Tarantino à medida que conta quatro histórias com desfechos sangrentos em um panorama de revolta e vingança. Todavia, diferente dos filmes de Tarantino, a produção de Jia Zhang-Ke fala de uma geografia menos ficcional e de uma história menos glamorosa que as que o americano costuma mostrar.

O que está no fundo da tela é a China na sua reentrada no capitalismo, administrada por uma elite no interior de um partido único que ostenta o nome, agora completamente artificial, de “comunista”. Aspectos ultramodernos do capitalismo ocidental se casam, então, com uma mentalidade da terra do tradicionalismo dos mandarins associada ao autoritarismo e à corrupção própria do comunismo decadente, tudo isso regado por aspectos sociais de exploração dos trabalhadores que lembram o que se passou na Europa e na América em tempos em que não havia como não odiar o capitalismo, os tempos que Victor Hugo imortalizou em Os miseráveis. 

Sobre esse fundo, o filme começa com a história de um trabalhador que resolve ser o justiceiro social de sua aldeia, terminando por matar o próprio dono da grande fábrica do local. Segue então a história de um jovem de aldeia que coloca dinheiro em sua casa por meio de assaltos violentos nos grandes centros. Logo em seguida vem a história da atendente de casa de massagem que se recusa a fazer sexo com exploradores ilegais de pedágio, reagindo a eles e esfaqueando um deles. Por fim, a quarta historieta é a de um garoto que não suporta as pressões caseiras, do trabalho e a decepção amorosa, pondo fim à sua própria vida.

O final do filme apresenta a atendente da terceira historieta, que vem recomeçar a vida em outro lugar, ou seja, no local de início do filme, a fábrica cujo dono foi assassinado. A fábrica se apresenta então comanda pela esposa do assassinado.

Todas as cenas apresentam a mesma mensagem, altamente marcada pela diferença de gêneros: o capitalismo que entra na China pela segunda vez, ao menos na sua fase ou face mais bárbara, só pode funcionar pela ação das mulheres. O homem é quebrado, a mulher se adapta e conduz a vida.

Nem o filme e nem a minha leitura são machistas. O que o Ji Zhang Ke está dizendo, se é que eu o entendi, é que as coisas na reentrada do capitalismo, ao menos na China, não podem ser feitas senão pela capacidade de adaptação, mas não resignação, da mulher. Todos os personagens femininos, rebeldes ou não, ativos ou não, estão vivendo o que a vida na China pode oferecer. Contrariamente, os homens estão sendo desnaturados, entortados, dizimados – eles não suportam a violência do capitalismo sem democracia, essa forma brutal escolhida pela China para se ocidentalizar.

No primeiro episódio, o justiceiro procura a sua cunhada. Ela o aconselha a encontrar uma mulher e viver sua vida particular, fora de relações políticas ou de busca por justiça social. No segundo episódio, o ladrão e assassino só vem para casa no momento de uma homenagem tradicional à matriarca, a avó, comportando-se ali como um homem normal, que ele efetivamente não é. No terceiro episódio, a atendente de casa de massagem é inicialmente espancada por capangas da mulher de um senhor que tem feito dela uma amante há anos. No emprego, humilhada por um homem que quer sexo com ela por dinheiro, ela o mata a facadas. As duas mulheres, esposa e amante, mostram aqui que não são resignadas, mas que estão adaptadas já à vida da “nova China”. No último episódio, a garota com que o menino que termina se matando se apaixona não foge com ele porque ela é uma prostituta com filha, e antes do amor e da felicidade ela preza a responsabilidade para com a filha e, enfim, para com o destino. Ao fim e ao cabo, a atendente da casa de massagem aparece na fábrica do início do filme, onde a dona agora é a esposa do patrão assassinado, ambos conversam e são sinceras; de modos diferentes estão continuando a vida, fazendo a maquinaria do capitalismo reerguido funcionar – uma como proprietária, a outra como operária. Sem resignação, ambas mostram uma adaptabilidade que nenhum personagem masculino mostra na película.

Sem as mulheres, o comunismo não dará à China o capitalismo, esse cadinho de Ocidente que se apresenta por enquanto somente com sua parte mais amarga.
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© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo

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