Um toque de pecado (Tian Zhu Ding, China, 2013) é um tipo de Pulp Fiction
chinês? Paulo Francisco, meu filho que está estudando filosofia,
acertou dizendo isso. O trabalho do diretor Jia Zhang-Ke lembra a
película de Tarantino à medida que conta quatro histórias com desfechos
sangrentos em um panorama de revolta e vingança. Todavia, diferente dos
filmes de Tarantino, a produção de Jia Zhang-Ke fala de uma geografia
menos ficcional e de uma história menos glamorosa que as que o americano
costuma mostrar.
O que está no fundo da tela é a China na
sua reentrada no capitalismo, administrada por uma elite no interior de
um partido único que ostenta o nome, agora completamente artificial, de
“comunista”. Aspectos ultramodernos do capitalismo ocidental se casam,
então, com uma mentalidade da terra do tradicionalismo dos mandarins
associada ao autoritarismo e à corrupção própria do comunismo decadente,
tudo isso regado por aspectos sociais de exploração dos trabalhadores
que lembram o que se passou na Europa e na América em tempos em que não
havia como não odiar o capitalismo, os tempos que Victor Hugo
imortalizou em Os miseráveis.
Sobre esse fundo, o filme começa com a
história de um trabalhador que resolve ser o justiceiro social de sua
aldeia, terminando por matar o próprio dono da grande fábrica do local.
Segue então a história de um jovem de aldeia que coloca dinheiro em sua
casa por meio de assaltos violentos nos grandes centros. Logo em seguida
vem a história da atendente de casa de massagem que se recusa a fazer
sexo com exploradores ilegais de pedágio, reagindo a eles e esfaqueando
um deles. Por fim, a quarta historieta é a de um garoto que não suporta
as pressões caseiras, do trabalho e a decepção amorosa, pondo fim à sua
própria vida.
O final do filme apresenta a atendente
da terceira historieta, que vem recomeçar a vida em outro lugar, ou
seja, no local de início do filme, a fábrica cujo dono foi assassinado. A
fábrica se apresenta então comanda pela esposa do assassinado.
Todas as cenas apresentam a mesma
mensagem, altamente marcada pela diferença de gêneros: o capitalismo que
entra na China pela segunda vez, ao menos na sua fase ou face mais
bárbara, só pode funcionar pela ação das mulheres. O homem é quebrado, a
mulher se adapta e conduz a vida.
Nem o filme e nem a minha leitura são
machistas. O que o Ji Zhang Ke está dizendo, se é que eu o entendi, é
que as coisas na reentrada do capitalismo, ao menos na China, não podem
ser feitas senão pela capacidade de adaptação, mas não resignação, da
mulher. Todos os personagens femininos, rebeldes ou não, ativos ou não,
estão vivendo o que a vida na China pode oferecer. Contrariamente, os
homens estão sendo desnaturados, entortados, dizimados – eles não
suportam a violência do capitalismo sem democracia, essa forma brutal
escolhida pela China para se ocidentalizar.
No primeiro episódio, o justiceiro
procura a sua cunhada. Ela o aconselha a encontrar uma mulher e viver
sua vida particular, fora de relações políticas ou de busca por justiça
social. No segundo episódio, o ladrão e assassino só vem para casa no
momento de uma homenagem tradicional à matriarca, a avó, comportando-se
ali como um homem normal, que ele efetivamente não é. No terceiro
episódio, a atendente de casa de massagem é inicialmente espancada por
capangas da mulher de um senhor que tem feito dela uma amante há anos.
No emprego, humilhada por um homem que quer sexo com ela por dinheiro,
ela o mata a facadas. As duas mulheres, esposa e amante, mostram aqui
que não são resignadas, mas que estão adaptadas já à vida da “nova
China”. No último episódio, a garota com que o menino que termina se
matando se apaixona não foge com ele porque ela é uma prostituta com
filha, e antes do amor e da felicidade ela preza a responsabilidade para
com a filha e, enfim, para com o destino. Ao fim e ao cabo, a atendente
da casa de massagem aparece na fábrica do início do filme, onde a dona
agora é a esposa do patrão assassinado, ambos conversam e são sinceras;
de modos diferentes estão continuando a vida, fazendo a maquinaria do
capitalismo reerguido funcionar – uma como proprietária, a outra como
operária. Sem resignação, ambas mostram uma adaptabilidade que nenhum
personagem masculino mostra na película.
Sem as mulheres, o comunismo não dará à
China o capitalismo, esse cadinho de Ocidente que se apresenta por
enquanto somente com sua parte mais amarga.
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© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo
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