Luiz Felipe Pondé*
Para Smith, o homem moderno poderia vir a ser um covarde viciado em seus pequenos luxos
Sabemos todos das críticas comuns ao capitalismo. Injustiça social,
viramos mercadoria. Sonhamos com um mundo no qual todos terão praia sem
trânsito, com areia e água igual para todos. Mulheres e homens se
amariam sem ciúmes e também amariam outros animais e plantas de forma
igualitária e com respeito. Um mundo no qual todos viveriam numa mistura
de Islândia e França, com clima italiano.
Vulcões não engoliriam civilizações, tsunamis não invadiriam a terra,
jacarés respeitariam os direitos humanos. Mulheres não desejariam mais
de um vestido, homens não teriam medo da impotência. Todos integrados
num sistema autorregulativo de paz e amor. Críticas de uma mente
infantil.
A melhor crítica à sociedade de mercado foi feita por seu maior
defensor, Adam Smith (século 18). Tradutor de Rousseau, Smith discutiu
com ele a corrupção do caráter causada pelo sociedade comercial.
Rousseau entendia que a corrupção era política e seria resolvida com
remédios políticos: revolução, destruição da cultura e técnica, frutos
do mundo baseado em trocas comerciais, uma nova pedagogia que deixasse a
harmonia e beleza da natureza humana inata se manifestar de novo na sua
integração com a harmonia e beleza da natureza a nossa volta. E, assim
sendo, de novo, voltaríamos ao mundo no qual o homem acordaria, caçaria
de manhã, almoçaria ao meio-dia, escreveria um livro à noite, sem um
tsunami ou inveja sequer.
Para Smith, a corrupção é moral, e não política. Interessante ver como
aquele para quem a sociedade comercial era um trunfo humano a ser
preservado, será o mesmo homem para quem o risco dessa mesma sociedade
será muito mais difícil de curar do que para nosso filósofo da vaidade,
Rousseau.
Smith temia que a sociedade de mercado causasse um enfraquecimento das
virtudes heroicas. A perda dessas virtudes (coragem, disciplina e
força), causada por uma vida baseada na produção de riquezas materiais e
consequente riqueza de bens imateriais (hoje materializados em leis
luxuosas sobre direitos, desejos e liberdades numa sociedade baseada em
escolhas individuais contra sociedades que esmagam esta escolha sob a
bota de modelos coletivistas tradicionais, religiosos ou marxistas),
apareceria na covardia generalizada e no vício do bem-estar, material e
imaterial.
Se a URSS tivesse ganho a Guerra Fria, seriamos todos pobres e ninguém
teria esses luxos materiais e imateriais. O capitalismo deixou todo
mundo frouxo.
Logo, o enriquecimento produz homens e mulheres covardes em larga escala porque produz demandas de luxo generalizado.
Para Smith, o homem moderno poderia vir a ser um covarde viciado em seus
pequenos luxos. No entendimento do nosso iluminista escocês (o
iluminismo britânico é infinitamente mais sofisticado do que o francês, o
único ensinado no Brasil tacanho de nosso dia a dia), somos capazes de
benevolência e empatia (ou simpatia), e buscamos uma certa
imparcialidade em nossos julgamentos morais por percebermos como ela é
importante para o convívio racional.
Entretanto, a virtude heroica da sociedade de mercado, pensava ele, era a
autonomia, não a pura kantiana, mas a capacidade de assumirmos nossas
decisões morais na vida alimentada por nosso desejo de sermos donos de
nossa vida material, na medida do possível.
Ele bem sabia o quão duro é ser assim. Sempre foi. Mas a corrupção do
caráter, baseada nos ganhos materiais e imateriais do bem-estar, nos
tornaria uns frouxos. E isso aconteceu. E esta frouxidão se materializa
numa demanda interminável de facilitação da própria vida.
Logo, vamos exigir a abolição do trabalho como direito. Ganhar a vida
com o suor do rosto sem garantia de retribuição será considerado contra
os direitos humanos.
O novo crescimento do socialismo rosa-choque, inclusive em lideres como
Obama, é fruto dessa corrupção. Smith previu as bases para o surgimento
do pensamento de Marx e Gramsci: a corrosão do caráter causada pelo
enriquecimento das sociedades e suas demandas de supressão das condições
reais da vida como dor, luta e trabalho sem garantias.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: Folha online, 13/01/2014
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