João Pereira Coutinho*
Para certas sociedades, valores como 'secularismo' e 'individualismo' soam estranhos e ameaçadores
Tony Blair regressa ao mundo dos vivos: em artigo para o jornal "The
Observer", o ex-premiê britânico escreve que as lutas do século 21 não
serão mais ideológicas, como aconteceu na centúria anterior. Serão
culturais, religiosas. Civilizacionais. Ó Deus, onde é que eu já ouvi
isso?
Obviamente, em 1993, quando Samuel Huntington horrorizou as consciências
politicamente corretas com "The Clash of Civilizations?", o artigo
publicado na "Foreign Affairs".
Reli o texto de Huntington. Com 20 anos de distância, voltei a pasmar
com a inteligência (e a presciência) do senhor. Blair e Huntington podem
partir do mesmo ponto: há um "choque de civilizações" inegável. Mas
chegam a conclusões radicalmente distintas.
No ensaio, Huntington perguntava onde estariam os conflitos futuros
quando todo mundo falava triunfalmente do "fim da história". E
respondia: esqueça as lutas clássicas entre Estados. E esqueça também as
lutas no interior do Ocidente, motivadas por disputas econômicas ou
políticas, como sucedeu no século 20. Esse tempo acabou: imaginar a
França nas trincheiras contra a Alemanha é cenário irrealista.
Os conflitos acabarão por emergir entre civilizações --ou, melhor
dizendo, entre diferentes concepções do mundo que não podem ser
resolvidas, ou harmonizadas, por um piquenique multiculturalista ou um
seminário acadêmico entre pacifistas "new age".
Como escrevia Huntington, a questão futura não passa por saber qual é o
lado certo da batalha; a questão primeira será saber quem somos nós.
Porque é a identidade cultural, e não os interesses momentâneos do
Estado, que irá definir os conflitos futuros. E, quando as coisas são
postas nesses termos, não é possível ser meio muçulmano e meio cristão
ao mesmo tempo.
Aliás, as tensões entre o Ocidente e o Islã são analisadas por
Huntington sem eufemismos: se Tony Blair, na sua coluna para o
"Observer", usa a palavra "Islã" com medo, Huntington é glacial. O
conflito entre o Ocidente e o radicalismo islâmico dura 1.300 anos. Será
mais violento nos anos próximos. E, pormenor importantíssimo que Blair
(e Bush) esqueceu, não se resolve pela imposição de qualquer modelo
democrático, por mais nobre que ele seja em teoria.
Para certas sociedades, os valores fundamentais da civilização ocidental
--"individualismo", "secularismo", "constitucionalismo" etc.-- soam
estranhos e, pior, ameaçadores. Por mais "primaveras árabes" que
floresçam (e feneçam) no Oriente Médio.
Perante este "choque de civilizações", que fazer?
Tony Blair, em momento de "mea culpa", reconhece que o caminho não é
militar: a democracia não se impõe à força porque os resultados, no
Afeganistão e no Iraque, não foram propriamente brilhantes. Mas depois,
com a ignorância que o define, Blair regressa a um mundo imaginário de
fadas e duendes: o "choque de civilizações" só será evitado pelo
entendimento e pela tolerância entre culturas.
Como é evidente, Blair está falando para a minoria "ocidentalizada" que
ele encontra no lobby dos hotéis de luxo no Cairo ou em Beirute. Ou
então prepara o seu discurso de Miss Universo.
Samuel Huntington, uma vez mais, revela a lucidez e a coragem que Blair
não tem: perante o "choque de civilizações", deve haver maior coesão no
interior do próprio Ocidente, entre países que partilham os mesmos
valores fundamentais.
Isso implica um Ocidente que não esteja disposto a desarmar-se perante
potenciais inimigos porque a palavra "inimigo" ainda continua fazendo
parte da linguagem política contemporânea.
E, claro, o Ocidente pode sempre apoiar grupos de outras civilizações
que se interessam por essas extravagâncias como a "democracia" e os
"direitos humanos", sem ceder à tentação de tentar exportá-los pela
força. A evolução para a modernidade é um caminho solitário que só essas
civilizações podem (ou não) percorrer.
Vinte anos depois do ensaio de Huntington e dez anos depois das
aventuras no Afeganistão e no Iraque, continuo preferindo o realismo
carnívoro do professor de Harvard ao idealismo vegetariano de Tony
Blair.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha online, 28/01/2014
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