A ideia de que o
mercado de ações é uma loucura é alguma coisa bem conhecida. A visão de
que as pessoas ficam não só pobres e ricas, mas principalmente loucas
quando aderem à vida do mundo da compra e venda de papéis, faz tempo que
é amplamente divulgada. Todavia, com o filme The Wolf of Wall Street, surge o que há de mais verdadeiro naquilo que se transformou no coração falso do capitalismo: addiction.
Martin Scorsese criou o The Wolf of Walt Street
e acertou em todas as alegorias. Lobo e cão: o primeiro é o sofista, só
o segundo é filósofo, na velha divisão de Platão. Porque o filósofo não
pode enganar e o lobo, queira ou não, só pode enganar. Parecidos por
fora, diferentes por dentro. A alma do cão é exemplo do que sempre se
põe verdadeiramente, enquanto que o lobo não pode fazer isso de modo
algum, pois perderia sua própria natureza. “Um lobo em Wall Street” é um
nome apropriado porque no jogo da retórica da linha telefônica, onde se
há de vender um saber que nada sabe a não ser que é falso, é necessário
ser o eterno sofista.
O segundo acerto de Scorsese é o vício.
Todos no filme se drogam e fazem sexo adoidado. É preciso muito dinheiro
para uma vida assim. Ser um funcionário de vendas do que é quase um
roubo é ganhar muito para gastar muito. Todas as drogas químicas que se
pode tomar para relaxar, “dar barato” e dar potência, que aparecem no
filme, e que de fato tem a ver com o mundo empresarial do capitalismo,
na verdade são metáforas para o mundo do vício verdadeiro. No que se
está viciado? No trabalho. Na capacidade de ser lobo, de enganar, de
poder ganhar mais e mais para gastar mais e mais, mas isso se e somente
se ganhar significa jogar, ludibriar, fazer parte de uma promessa da
América: falar, conversar, vencer.
Falar, conversar, convencer e vencer.
Isso era a democracia americana. O capitalismo e a venda de ações é
quase isso, mas a palavra convencer não aparece. Ninguém do outro lado
da linha é convencido a comprar, mas é, sim, vencido ao comprar. Do lado
de cá os lobos não estão comemorando um feito de convencimento, mas um
feito de vitória, ou seja, o do lado de lá da linha não foi propriamente
persuadido, ele foi derrotado. Capitalismo e democracia – Marx nunca
achou que esses primos se davam bem, ainda que estivessem, quase sempre,
juntos.
The Wolf of Wall Street é um
filme que conta a história de um rapaz com talento enorme para ensinar
seu próprio primeiro talento: o de vender alguma coisa para outro,
principalmente se o que é vendido seja o que é visivelmente falso: ações
de companhias que são um lixo – vendidas para quem é um zero social,
mas que acredita no sonho americano que sendo acionário de alguma coisa,
vai ficar rico. Esse personagem interpretado pelo agora já consagrado
Leonardo Di Caprio é realmente sedutor. Tão sedutor que seduz a si
mesmo. Quando já aprontou todas e está para ser agarrado pelo FBI, mas
ainda tem sua chance de sair livre, ele volta à ativa na companhia que
ele mesmo criou, para continuar a orgia literal com drogas e mulheres, e
a orgia metafórica, que é a orgia dos papeis que andam por si mesmos,
as ações. Leva às últimas consequências tudo. Cumpre o verdadeiro
destino do empresário americano: risco máximo, adrenalina máxima, ir até
o fim. Levar a sério o capitalismo é isso: toma-lo como o único modo de
se viver na terra. O capitalismo ou é universal ou não se chama
capitalismo.
Peter Sloterdijk está certo ao dizer que
vício em droga não é algo de químico ou psicológico, mas de falta de
sentido para o uso de alguma coisa. Quando há sentido em uma prática,
ela não se torna um elemento de vício, mas quando ela gira em torno de
si mesma, em uma roda frenética que não tem o que fazer senão rodar e
rodar, eis aí o perigo do vício. Nenhuma droga viciou alguém em
sociedades em que a droga estava inserida em um horizonte de sentido
válido, por exemplo, a religião. As mesmas drogas, em sociedades nas
quais elas apareceram despidas, elas viciaram a todos.
O capitalismo de vendas de ações é isso:
ele não produz riqueza para um hedonismo sábio, mas dinheiro para gerar
dinheiro de modo que se possa gerar mais dinheiro, na traição de todo e
qualquer hedonismo, até do mais imbecil. Há tanto dinheiro! Mas, para
se conseguir o que senão o mesmo de sempre: mulheres e droga – no
contexto, a mesma coisa portanto. Tudo o que se podia comprar com o
pouco dinheiro. Não há sentido algum nesse consumo da droga de venda das
ações, nesse vício do trabalho nesse mercado específico. Por isso ele é
um vício ou se torna algo que é um vício.
Scorcese parece ter lido Sloterdijk. Mas
os artistas criam de suas vivências, não são filósofos que sofrem para
poder contar uma narrativa como esta, e que não conseguiríamos contar
exatamente porque ela é simples e diz tudo. Ela diz um dos segredos da
América: ainda que nela uma parte do sonho tenha virado pesadelo, que
disse que pesadelo não é sonho?
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* Filósofo
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-lobo-de-wall-street/
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