quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O lobo de Wall Street

Paulo Ghiraldelli*
 
 A ideia de que o mercado de ações é uma loucura é alguma coisa bem conhecida. A visão de que as pessoas ficam não só pobres e ricas, mas principalmente loucas quando aderem à vida do mundo da compra e venda de papéis, faz tempo que é amplamente divulgada. Todavia, com o filme The Wolf of Wall Street, surge o que há de mais verdadeiro naquilo que se transformou no coração falso do capitalismo: addiction.

Martin Scorsese criou o The Wolf of Walt Street e acertou em todas as alegorias. Lobo e cão: o primeiro é o sofista, só o segundo é filósofo, na velha divisão de Platão. Porque o filósofo não pode enganar e o lobo, queira ou não, só pode enganar. Parecidos por fora, diferentes por dentro. A alma do cão é exemplo do que sempre se põe verdadeiramente, enquanto que o lobo não pode fazer isso de modo algum, pois perderia sua própria natureza. “Um lobo em Wall Street” é um nome apropriado porque no jogo da retórica da linha telefônica, onde se há de vender um saber que nada sabe a não ser que é falso, é necessário ser o eterno sofista.

O segundo acerto de Scorsese é o vício. Todos no filme se drogam e fazem sexo adoidado. É preciso muito dinheiro para uma vida assim. Ser um funcionário de vendas do que é quase um roubo é ganhar muito para gastar muito. Todas as drogas químicas que se pode tomar para relaxar, “dar barato” e dar potência, que aparecem no filme, e que de fato tem a ver com o mundo empresarial do capitalismo, na verdade são metáforas para o mundo do vício verdadeiro. No que se está viciado? No trabalho. Na capacidade de ser lobo, de enganar, de poder ganhar mais e mais para gastar mais e mais, mas isso se e somente se ganhar significa jogar, ludibriar, fazer parte de uma promessa da América: falar, conversar, vencer.

Falar, conversar, convencer e vencer. Isso era a democracia americana. O capitalismo e a venda de ações é quase isso, mas a palavra convencer não aparece. Ninguém do outro lado da linha é convencido a comprar, mas é, sim, vencido ao comprar. Do lado de cá os lobos não estão comemorando um feito de convencimento, mas um feito de vitória, ou seja, o do lado de lá da linha não foi propriamente persuadido, ele foi derrotado. Capitalismo e democracia – Marx nunca achou que esses primos se davam bem, ainda que estivessem, quase sempre, juntos.

The Wolf of Wall Street é um filme que conta a história de um rapaz com talento enorme para ensinar seu próprio primeiro talento: o de vender alguma coisa para outro, principalmente se o que é vendido seja o que é visivelmente falso: ações de companhias que são um lixo – vendidas para quem é um zero social, mas que acredita no sonho americano que sendo acionário de alguma coisa, vai ficar rico. Esse personagem interpretado pelo agora já consagrado Leonardo Di Caprio é realmente sedutor. Tão sedutor que seduz a si mesmo. Quando já aprontou todas e está para ser agarrado pelo FBI, mas ainda tem sua chance de sair livre, ele volta à ativa na companhia que ele mesmo criou, para continuar a orgia literal com drogas e mulheres, e a orgia metafórica, que é a orgia dos papeis que andam por si mesmos, as ações. Leva às últimas consequências tudo. Cumpre o verdadeiro destino do empresário americano: risco máximo, adrenalina máxima, ir até o fim. Levar a sério o capitalismo é isso: toma-lo como o único modo de se viver na terra. O capitalismo ou é universal ou não se chama capitalismo.

Peter Sloterdijk está certo ao dizer que vício em droga não é algo de químico ou psicológico, mas de falta de sentido para o uso de alguma coisa. Quando há sentido em uma prática, ela não se torna um elemento de vício, mas quando ela gira em torno de si mesma, em uma roda frenética que não tem o que fazer senão rodar e rodar, eis aí o perigo do vício. Nenhuma droga viciou alguém em sociedades em que a droga estava inserida em um horizonte de sentido válido, por exemplo, a religião. As mesmas drogas, em sociedades nas quais elas apareceram despidas, elas viciaram a todos.

O capitalismo de vendas de ações é isso: ele não produz riqueza para um hedonismo sábio, mas dinheiro para gerar dinheiro de modo que se possa gerar mais dinheiro, na traição de todo e qualquer hedonismo, até do mais imbecil. Há tanto dinheiro! Mas, para se conseguir o que senão o mesmo de sempre: mulheres e droga – no contexto, a mesma coisa portanto. Tudo o que se podia comprar com o pouco dinheiro. Não há sentido algum nesse consumo da droga de venda das ações, nesse vício do trabalho nesse mercado específico. Por isso ele é um vício ou se torna algo que é um vício.

Scorcese parece ter lido Sloterdijk. Mas os artistas criam de suas vivências, não são filósofos que sofrem para poder contar uma narrativa como esta, e que não conseguiríamos contar exatamente porque ela é simples e diz tudo. Ela diz um dos segredos da América: ainda que nela uma parte do sonho tenha virado pesadelo, que disse que pesadelo não é sonho?
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* Filósofo
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-lobo-de-wall-street/

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