Michel Schlesinger e Odilo Scherer*
O assunto é o holocausto
A Shoá não foi obra de Deus ou de anjos malvados: foi de homens com
ideologias desumanas, de pessoas incapazes de enxergar o outro
Em vista do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, 27
de janeiro, foi celebrada ontem uma missa na catedral da Sé na qual
também estiveram presentes numerosos membros da comunidade judaica de
São Paulo.
"Não viu nenhum homem a seu irmão e não se levantou nenhum homem de seu
lugar" (Êxodo, 10:23). O versículo que descreve a praga da escuridão que
se abateu sobre os egípcios por três dias consecutivos abre margem para
uma interpretação metafórica daquela situação.
Os escravizadores tinham perdido toda a sensibilidade e ficaram
completamente cegos para os sofrimentos dos filhos de Israel; não eram
mais capazes de enxergar a humanidade do próximo, ainda que esta
estivesse a poucos centímetros de seus olhos.
Talvez a praga da escuridão que se abateu sobre o Faraó e seu povo não
se refira à ausência de luz, mas à falta total de sensibilidade e
consideração diante dos sofrimentos alheios. Haviam perdido a capacidade
de se importar e ninguém se moveu de seu lugar; todos aceitaram as
ordens do Faraó com cegueira covarde. Por isso diz o Pentateuco: "Nenhum
homem viu seu irmão".
Após 3.500 anos, a Europa nazifascista mostrou não ter aprendido a
lição. Os novos egípcios requintaram seus métodos de tortura e
assassinato. A escravidão passou para os campos de trabalho forçado. Não
apenas meninos recém-nascidos foram mortos, mas todos os que a loucura
ariana considerava inúteis ou inferiores.
Diversos pensadores questionam como Deus permitiu que o Holocausto
acontecesse. Como se pode ainda acreditar em Deus depois de Auschwitz?
Onde estava Deus num dos capítulos mais terríveis da história?
As respostas são contraditórias. Para Richard Rubenstein, a única
resposta intelectualmente honesta para o Holocausto é a rejeição de Deus
e o reconhecimento de que toda a existência é sem sentido. Para ele,
Deus não se importa com o mundo. Já Emil Fackenheim sugere que se olhe
atentamente para o Holocausto e se encontre nele uma nova revelação de
Deus; rejeitar Deus por causa do Holocausto significaria dar vitória
póstuma a Hitler. Segundo o rabino Eliezer Berkovits, o livre-arbítrio
humano só é possível quando Deus permanece oculto; intervindo na
história, Deus anularia a liberdade humana e sua capacidade de fazer
escolhas. Para o rabino Harold Kushner, Deus não é onipotente e,
portanto, não haveria contradição entre a existência de um Deus bom e a
maldade de certos humanos. Na peça "O Julgamento de Deus", Elie Wiesel
coloca o Criador no banco dos réus, com argumentos contra e a favor de
Deus. A obra reflete experiências vividas pessoalmente por Wiesel
durante a sua adolescência em Auschwitz.
Diante das tragédias humanas, com frequência, buscamos causas que vão
além do âmbito das decisões humanas. Será essa a saída adequada?
Questionar-se sobre o lugar de Deus no Holocausto é importante para toda
pessoa de fé.
Mas, como refletiu Bento 16 na visita ao campo de Auschwitz, em 2006:
"Somos incapazes de perscrutar o segredo de Deus; nós vemos apenas
fragmentos e enganamo-nos se pretendemos arvorar-nos em juízes de Deus e
da história". No entanto, devemos fazer-nos este outro questionamento,
bem mais incômodo: onde estava o homem?
A Shoá não foi obra de Deus ou de anjos malvados: foi de homens, com
suas ideologias e sistemas desumanos, de pessoas incapazes de enxergar o
outro: "Não viu nenhum homem a seu irmão e não se levantou nenhum homem
de seu lugar".
Somente quando buscamos e assumimos a responsabilidade do homem nos
tornamos senhores da história e desenvolvemos a possibilidade de educar
as novas gerações para a moderação, o respeito e a paz.
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*MICHEL SCHLESINGER, 36, é rabino da Congregação Israelita
Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o
diálogo inter-religioso
CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, 64, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo
Fonte: Folha online, 27/01/2014
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