Ativista que vazou papéis do governo americano nos anos 1970 diz que, no contexto atual, também fugiria dos EUA
Diversos críticos americanos de Edward Snowden gostam de compará-lo
desfavoravelmente a Daniel Ellsberg, 82, o mais famoso ativista que,
antes dele, também vazou dados e constrangeu um presidente americano.
Ellsberg não fugiu do país e enfrentou a Justiça (e o assédio do
governo), logo após vazar um estudo revelador sobre a Guerra do Vietnã,
apelidado de "papéis do Pentágono", a 18 jornais americanos em 1971.
A crise que encerraria a guerra e terminaria por derrubar o governo de Richard Nixon começou com ele.
Ellsberg detesta ser usado nos ataques a Snowden. "Se fosse hoje, eu
teria feito o mesmo que ele, também teria fugido", diz. "O país em que
denunciei Nixon era bem diferente de hoje".
Em entrevista exclusiva à Folha, Ellsberg, 82, diz que
"democracia não é compatível com governos que conheçam cada comunicação,
cada transação com cartão de crédito, cada mensagem celular de seus
cidadãos" e defende que o Brasil conceda asilo a Snowden.
Folha - Snowden agiu errado ao ter fugido para a China e para a
Rússia e não ter enfrentado as consequências, como o senhor fez em 1971?
Daniel Ellsberg - O país em que eu decidi ficar e enfrentar a
Justiça era muito diferente. A Suprema Corte tinha vários juízes que
garantiam as defesas da liberdade de expressão e de imprensa.
Obama já usou mais vezes a Lei de Espionagem para perseguir quem denuncia do que todos os outros presidentes anteriores.
Fui indiciado, mas duvido que eu fosse condenado por aquela Suprema Corte. O país mudou muito, rumo à direita, em minha opinião.
Fugir era a única alternativa?
Snowden pôde ver o que fizeram com Chelsea Manning [ex-Bradley Manning],
colocada em uma solitária por nove meses. Manning jamais foi
entrevistada por um único jornalista sequer. A imprensa não teve acesso a
ela. No repertório da ONU, o que fazem com Manning é um tratamento
cruel. Seria tortura, na minha opinião. Snowden aprendeu que precisava
estar fora do país para fazer o que fez. No lugar dele, eu teria feito o
mesmo.
O Brasil deveria conceder asilo a Snowden?
Seria admirável se o Brasil concedesse asilo ao Snowden. O mundo precisa
agradecer a esse rapaz. O sonho dele seria poder voltar ao seu paraíso,
o Havaí, mas acho que ele passará a sua vida no exílio. Não vejo chance
de perdão presidencial aqui.
Ele fez um grande sacrifício. Snowden corre risco de morte em qualquer
lugar, talvez menos na Rússia, mas acho que ele gostaria de estar em um
lugar mais democrático e aberto.
Mas o Brasil não sofreria retaliações dos EUA?
Não é fácil antagonizar o país mais rico e poderoso do mundo. Muitos priorizam a relação com os EUA.
O Brasil poderia sofrer sanções. Mas nenhum país tem direito de fazer
espionagem total sobre as comunicações privadas dos cidadãos no resto do
mundo.
Snowden fez um favor ao mundo, muito além da espionagem.
Qual?
Democracia não é compatível com governos controlando e conhecendo cada
comunicação pessoal, cada transação de cartão de crédito, cada e-mail,
cada mensagem de celular. Essa informação pode ser usada para
chantagens, com fins políticos e comerciais.
O Brasil, por exemplo, não é uma ameaça à segurança dos EUA, assim como
não o é a comunicação pessoal de Angela Merkel. Esses usos nada têm a
ver com terrorismo.
O presidente Obama deve anunciar na sexta-feira as mudanças na
espionagem da NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA). O que o
senhor espera que mude?
Acho que Obama divulgará só mudanças cosméticas na espionagem. Não
espero grande reforma de princípios. Presidentes não gostam de reduzir
poderes. O Congresso e a Justiça deveriam contrabalançar, mas não estão
cumprindo esse papel.
Após os ataques de 11 de Setembro, os EUA precisaram reforçar muito a
segurança. Como conciliar essa necessidade com a privacidade?
O 11 de Setembro serviu para muitas coisas. Para invadir o Iraque, para
um governo mentir ao Congresso, que é outra violação da Constituição.
Não me surpreende que Obama não tenha mudado ou voltado atrás nos abusos
de poder da era Bush-Cheney. Tivemos tortura, espionagem, e o Congresso
e o público são culpados em aceitar esses abusos.
Um certo grau de vigilância é necessário. Há perigos obviamente maiores
por conta do terrorismo, mas especialistas não acham necessária tanta
coleta de dados. Essa escala absurda de monitoramento faz o trabalho
deles ser até mais difícil.
Senadores e deputados democratas e republicanos dizem que os EUA estão mais inseguros graças a Snowden.
Não me surpreende que estejam contra Snowden, são cúmplices. Mas alguns
deputados já disseram que não há evidência de um único atentado que
tenha sido evitado por tamanha espionagem.
Boa parte da imprensa americana também tem uma posição contrária a Snowden.
Colunistas de jornais, editores e comentaristas na TV precisam ter
acesso às fontes de Washington, trocam o que eles consideram "furos" de
reportagem por acesso aos poderosos. Não são críticos como deveriam das
ilegalidades em troca de acesso aos figurões de Washington.
Mas o grande público americano tem formado uma opinião diferente sobre
Snowden. Muita gente, dizem as pesquisas, acha que ele fez o que tinha
de ser feito.
Qual é a diferença entre a maneira como o governo Nixon tratou o senhor e Obama com Snowden?
A reação de Obama tem sido muito parecida com a de Nixon. O que mudou é
que o que ele fez comigo era ilegal. O que Obama está fazendo com
Snowden e Manning hoje é legal.
Nixon usou a CIA para me grampear, invadir o consultório do meu
psiquiatra para tentar descobrir minhas fraquezas ou vulnerabilidades,
tinham até um grupo para me dopar ou incapacitar, que felizmente não
chegou a cumprir o plano. Tudo isso era crime, obstrução de Justiça, o
que acabou encerrando o meu julgamento.
Fiquei como fugitivo por duas semanas com minha mulher, escondido,
enquanto eu conseguia passar as informações para os outros jornais, já
que a Justiça proibira o "New York Times" de divulgar os papéis
temporariamente. Foi o meu equivalente à fuga do Snowden.
Hoje, usa-se a CIA domesticamente, seria fácil invadir para apreender
documentos e o presidente tem até uma lista que autoriza execuções [por
drones]. A Lei Patriótica depois de 11 de Setembro tornou tudo isso
legal.
Snowden não quebrou um acordo de confidencialidade?
Snowden não quebrou nenhum juramento. Tal juramento de sigilo não
existe. Snowden e eu quebramos um acordo, conhecido como padrão 312, que
assinamos ao sermos contratados. Ele prevê certas penalidades civis e
administrativas por revelar informações confidenciais.
É suficiente para deixar todo mundo calado. Qualquer autoridade do
governo americano ou do Congresso jura (ou afirma) apoiar e defender a
Constituição contra inimigos internos ou externos. Há várias emendas da
Constituição sobre liberdades civis e privacidade que precisam ser
defendidas.
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Reportagem por RAUL JUSTE LORES
DE WASHINGTON
Fonte: Folha online, 13/01/2014
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