quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A SOBRIEDADE, via privilegiada para a SOLIDARIEDADE

Card. Dionigi Tettamanzi*
 Refeição
 Van Gogh (det.)

É assim que imagino - trata-se da verdade mais bela e exigente - a sobriedade: uma via privilegiada que me conduz à solidariedade, à partilha verdadeira e concreta, à partilha do pão. Por «pão» entendo tudo o que é necessário para viver, para viver segundo a dignidade humana, que é de todos, sem nenhuma discriminação. A sobriedade não só não se opõe à solidariedade, mas é a sua alma, a sua força, o seu apoio, aquilo que lhe permite durar e crescer. 

Não poderemos ser solidários se não formos sóbrios; de outro modo, apenas se partilhariam as sobras do máximo das minhas ou das nossas necessidades. Pelo contrário, quem é sóbrio, em todas as coisas se deixa interpelar pela necessidade alheia; considera-a atentamente, encarrega-se dela e, tendo-a por base, decide o que lhe poderá bastar. Não é uma dobragem mesquinha sobre si mesmo; mas, pelo contrário, uma atitude de responsabilidade para com os outros! Por isso, só quem é sóbrio é que também poderá ser solidário. 

Até onde poderá aventurar-se a solidariedade que nasce da sobriedade? Até dar o seu supérfluo? Ou também além do supérfluo? É aqui que aposta toda a sua força moral e espiritual a verdadeira sobriedade: mesmo indo além do supérfluo! Por isso, estamos diante de uma solidariedade que se torna maior, radical e extrema.

É este o exemplo emblemático da «viúva pobre» do Evangelho, que soube partilhar tudo, considerando a sua oferta mais necessária do que ocupar-se de si mesma, da sua própria vida. Eis o louvor que dela faz Jesus: «Eles deitaram no tesouro o que lhes sobejava, enquanto ela, da sua indigência, deitou tudo o que tinha para viver» (Lucas 21,4).

Uma vez mais, quero citar Santo Ambrósio que comenta o «mais do que todos» afirmado solenemente pelo Senhor («Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou mais do que todos os outros», Lucas 21,3): «Vale mais uma moedinha tomada do pouco do que um tesouro proveniente de uma enorme riqueza, porque avalia-se não quanto se dá, mas o que sobra. Ninguém dá mais do que quem nada conserva para si» (De viduis, 27).

A sobriedade cria os espaços. Na mente, no coração, na vida, na nossa casa... , a sobriedade abre aos outros, porque diminui a importância que damos a nós mesmos, aos nossos compromissos, às escolhas que nos parecem absolutamente indispensáveis e que, um instante depois de as termos realizado, nos desiludem, a tudo o que nos preocupa e nos cria ansiedades inúteis. Sim, a solidariedade abre aos outros, porque se interroga a partir dos outros. 

Por sua vez, a solidariedade preenche estes mesmos espaços. E pode enchê-los até ao bordo: não só através do amor, da compreensão, da ternura e da misericórdia, mas também, se necessário, através da partilha de bens materiais. 

A Sagrada Escritura dá-nos uma confirmação ou, até, um anúncio forte. Embora num contexto social e cultural muito diferente do nosso, a Palavra de Deus não deixa de nos oferecer indicações preciosas e encorajadoras.

Leiamos, por exemplo, no livro do Deuteronómio: 

«Quando fizeres a ceifa do teu campo e te esqueceres de algum feixe, não voltes atrás para o levar. Deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva, a fim de que o Senhor, teu Deus, abençoe todas as obras das tuas mãos. Quando varejares as tuas oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos ramos; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Quando vindimares a tua vinha, não rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito. Por isso, te mando que cumpras esta ordem» (Dt 24,19-22). 

E no livro do Levítico: 

«Quando procederdes à ceifa das vossas terras, não ceifareis as espigas até à extremidade do campo, e não apanhareis as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, vosso Deus» (Lv 19,9-10).
É claro que são coisas de outros tempos! Mas a instância ética e religiosa que a vivifica permanece e exige de nós um relançamento convicto e decisivo na atualidade. De facto, a sobriedade - aqui representada pela norma de não aumentar a sua economia, mesmo que florescente, até ao extremo ganho (simbolizado pela renúncia em recolher até ao último caule de trigo ou à derradeira azeitona ou ao último bago que ficou nos ramos de videira) - não é simplesmente um fim em si mesma. Pelo contrário, encontra a sua razão profunda em fazer com que os últimos da sociedade de cada época (estrangeiros, órfãos e viúvas), enquanto privados de qualquer proteção social, encontrem recursos para viver, para viver sem ofensa da sua dignidade humana, sem ter de mendigar, sem ser obrigados a humilhar-se para receber das mãos alheias alguma coisa, uma «esmola» no sentido depreciativo do termo.

Não só, mas também a recordação explícita dos benefícios insuperáveis de Deus - que no passado libertou Israel e, agora, te libertou e continua a tomar-te livre - deve hoje, por sua graça, ser a mola, o impulso interior, para agir deste modo: «Eu sou o Senhor, vosso Deus». Por isso, de Deus e de uma renovada tomada de consciência de quem, para mim, é meu irmão, brota um agir renovado, inspirado em solidariedade. Do facto de nos reconhecermos perenes devedores de Deus e do desejo de responder-lhe plenamente nasce uma solidariedade consciente, duradoura e responsável.

Como se vê, a sobriedade prepara o terreno para a solidariedade, afastando exageros, excessos e tudo o que egoisticamente fecha o homem, centrando-o e amarrando-o a si mesmo. Assim, a solidariedade pode esforçar-se por fazer crescer, neste terreno de essencialidade, novos compromissos de se encarregar do outro, de partilhar com ele. Aliás, se a sobriedade é exercício de responsabilidade - pessoal e comunitária -, a solidariedade faz avançar um tipo particular de responsabilidade, a responsabilidade partilhada, a corresponsabilidade, isto é, a capacidade de responder com a totalidade de nós próprios, com tudo o que somos e temos, às exigências de todos os outros e, ao mesmo tempo, não só por nós próprios ou apenas em relação a alguns dos outros.

Gostaria somente de acrescentar - mas esta nota é de enorme importância - que a sobriedade não é unicamente um valor pessoal e individual, mas também um valor social, comunitário. Ou melhor, reveste-se de um alcance mundial - num mundo cada vez mais globalizado -, dado que se refere ao uso sábio dos bens para o autêntico de­senvolvimento sustentável da humanidade inteira, hoje e no futuro.
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Arcebispo emérito de Milão
* In Não há futuro sem solidariedade - A crise económica e a ajuda da Igreja, ed. Paulinas
21.01.14

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