Card. Dionigi Tettamanzi*
Van Gogh (det.)
É assim que imagino - trata-se da verdade mais bela e exigente - a sobriedade: uma via privilegiada que me conduz à solidariedade, à partilha verdadeira e concreta, à partilha do pão. Por
«pão» entendo tudo o que é necessário para viver, para viver segundo a
dignidade humana, que é de todos, sem nenhuma discriminação. A
sobriedade não só não se opõe à solidariedade, mas é a sua alma, a sua
força, o seu apoio, aquilo que lhe permite durar e crescer.
Não poderemos ser solidários se não formos sóbrios; de
outro modo, apenas se partilhariam as sobras do máximo das minhas ou
das nossas necessidades. Pelo contrário, quem é sóbrio, em todas as
coisas se deixa interpelar pela necessidade alheia; considera-a
atentamente, encarrega-se dela e, tendo-a por base, decide o que lhe
poderá bastar. Não é uma dobragem mesquinha sobre si mesmo; mas, pelo
contrário, uma atitude de responsabilidade para com os outros! Por
isso, só quem é sóbrio é que também poderá ser solidário.
Até onde poderá aventurar-se a solidariedade que nasce da sobriedade? Até
dar o seu supérfluo? Ou também além do supérfluo? É aqui que aposta
toda a sua força moral e espiritual a verdadeira sobriedade: mesmo indo além do supérfluo! Por isso, estamos diante de uma solidariedade que se torna maior, radical e extrema.
É este o exemplo emblemático da «viúva pobre» do Evangelho, que soube partilhar tudo, considerando
a sua oferta mais necessária do que ocupar-se de si mesma, da sua
própria vida. Eis o louvor que dela faz Jesus: «Eles deitaram no
tesouro o que lhes sobejava, enquanto ela, da sua indigência, deitou
tudo o que tinha para viver» (Lucas 21,4).
Uma vez mais, quero citar Santo Ambrósio que comenta o
«mais do que todos» afirmado solenemente pelo Senhor («Em verdade vos
digo que esta viúva pobre deitou mais do que todos os outros», Lucas
21,3): «Vale mais uma moedinha tomada do pouco do que um tesouro
proveniente de uma enorme riqueza, porque avalia-se não quanto se dá,
mas o que sobra. Ninguém dá mais do que quem nada conserva para si» (De viduis, 27).
A sobriedade cria os espaços. Na mente, no coração, na vida, na nossa casa... , a sobriedade abre aos outros, porque diminui a importância que damos a nós mesmos, aos nossos compromissos, às escolhas que nos parecem absolutamente indispensáveis e que, um instante depois de as termos realizado, nos desiludem, a tudo o que nos preocupa e nos cria ansiedades inúteis. Sim, a solidariedade abre aos outros, porque se interroga a partir dos outros.
A sobriedade cria os espaços. Na mente, no coração, na vida, na nossa casa... , a sobriedade abre aos outros, porque diminui a importância que damos a nós mesmos, aos nossos compromissos, às escolhas que nos parecem absolutamente indispensáveis e que, um instante depois de as termos realizado, nos desiludem, a tudo o que nos preocupa e nos cria ansiedades inúteis. Sim, a solidariedade abre aos outros, porque se interroga a partir dos outros.
Por sua vez, a solidariedade preenche estes mesmos espaços. E pode enchê-los até ao bordo: não
só através do amor, da compreensão, da ternura e da misericórdia, mas
também, se necessário, através da partilha de bens materiais.
A Sagrada Escritura dá-nos uma confirmação ou, até, um
anúncio forte. Embora num contexto social e cultural muito diferente
do nosso, a Palavra de Deus não deixa de nos oferecer indicações
preciosas e encorajadoras.
Leiamos, por exemplo, no livro do Deuteronómio:
«Quando fizeres a ceifa do teu campo e te esqueceres
de algum feixe, não voltes atrás para o levar. Deixa-o para o
estrangeiro, o órfão e a viúva, a fim de que o Senhor, teu Deus,
abençoe todas as obras das tuas mãos. Quando varejares as tuas
oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos ramos; deixa-o para
o estrangeiro, o órfão e a viúva. Quando vindimares a tua vinha, não
rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva.
Lembra-te que foste escravo na terra do Egito. Por isso, te mando que
cumpras esta ordem» (Dt 24,19-22).
E no livro do Levítico:
«Quando procederdes à ceifa das vossas terras, não
ceifareis as espigas até à extremidade do campo, e não apanhareis as
espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os
bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou o
Senhor, vosso Deus» (Lv 19,9-10).
É claro que são coisas de outros tempos! Mas a
instância ética e religiosa que a vivifica permanece e exige de nós um
relançamento convicto e decisivo na atualidade. De facto, a sobriedade -
aqui representada pela norma de não aumentar a sua economia, mesmo que
florescente, até ao extremo ganho (simbolizado pela renúncia em
recolher até ao último caule de trigo ou à derradeira azeitona ou ao
último bago que ficou nos ramos de videira) - não é simplesmente um fim
em si mesma. Pelo contrário, encontra a sua razão profunda em fazer com
que os últimos da sociedade de cada época (estrangeiros, órfãos e viúvas), enquanto privados de qualquer proteção social, encontrem recursos para viver, para
viver sem ofensa da sua dignidade humana, sem ter de mendigar, sem ser
obrigados a humilhar-se para receber das mãos alheias alguma coisa,
uma «esmola» no sentido depreciativo do termo.
Não só, mas também a recordação explícita dos
benefícios insuperáveis de Deus - que no passado libertou Israel e,
agora, te libertou e continua a tomar-te livre - deve hoje, por sua
graça, ser a mola, o impulso interior, para agir deste modo: «Eu sou o
Senhor, vosso Deus». Por isso, de Deus e de uma renovada tomada de
consciência de quem, para mim, é meu irmão, brota um agir renovado,
inspirado em solidariedade. Do facto de nos reconhecermos perenes
devedores de Deus e do desejo de responder-lhe plenamente nasce uma
solidariedade consciente, duradoura e responsável.
Como se vê, a sobriedade prepara o terreno para a
solidariedade, afastando exageros, excessos e tudo o que egoisticamente
fecha o homem, centrando-o e amarrando-o a si mesmo. Assim, a
solidariedade pode esforçar-se por fazer crescer, neste terreno de
essencialidade, novos compromissos de se encarregar do outro, de
partilhar com ele. Aliás, se a sobriedade é exercício de
responsabilidade - pessoal e comunitária -, a solidariedade faz avançar
um tipo particular de responsabilidade, a responsabilidade partilhada,
a corresponsabilidade, isto é, a capacidade de responder com a
totalidade de nós próprios, com tudo o que somos e temos, às
exigências de todos os outros e, ao mesmo tempo, não só por nós
próprios ou apenas em relação a alguns dos outros.
Gostaria somente de acrescentar - mas esta nota é de
enorme importância - que a sobriedade não é unicamente um valor pessoal e
individual, mas também um valor social, comunitário. Ou melhor, reveste-se de um alcance mundial -
num mundo cada vez mais globalizado -, dado que se refere ao uso sábio
dos bens para o autêntico desenvolvimento sustentável da humanidade
inteira, hoje e no futuro.
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Arcebispo emérito de Milão
* In Não há futuro sem solidariedade - A crise económica e a ajuda da Igreja, ed. Paulinas
21.01.14
* In Não há futuro sem solidariedade - A crise económica e a ajuda da Igreja, ed. Paulinas
21.01.14
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