"Ano Zero - Uma História de 1945", previsto para ser publicado no
Brasil pela Companhia das Letras, foi considerado por diversos
resenhistas da imprensa americana o "melhor livro" de Ian Buruma, quando
foi lançado nos Estados no segundo semestre do ano passado. Conhecido
dos brasileiros por "Ocidentalismo: o Ocidente aos Olhos de Seus
Inimigos", escrito a quatro mãos com o filósofo israelense Avishai
Margalit, o intelectual, nascido na Holanda seis anos depois do fim da
Segunda Guerra e radicado na maior metrópole americana, ocupa a
prestigiosa cátedra de democracia, diretos humanos e jornalismo na
Universidade de Bard, de onde decidiu iniciar a viagem no tempo em busca
do início de nossos tempos.
Em entrevista concedida ao Valor em seu café
preferido no Harlem, Buruma reflete sobre o fim da era iniciada no "ano
zero", com sua "explosão idealista" fundamentada na criação da
Organização das Nações Unidas (ONU), na internacionalização dos direitos
humanos, na solidificação das democracias liberais, na criação do
modelo do Estado de bem-estar social europeu e na conscientização moral
do combate às desigualdades sociais. Da destruição jamais vista na
história planetária, dos escombros da Europa e da Ásia, surge uma nova
ordem mundial, capaz de evitar, antes, durante e depois da Guerra Fria,
um novo conflito de proporções planetárias, mas repleta de contradições
igualmente detectadas pelo filho de prisioneiro de guerra nazista, neto
de judeu e cidadão do mundo globalizado.
No centenário do início da Primeira Guerra e nos 75 anos do começo da
Segunda, Buruma conta, em 340 páginas, a aventura de personagens
aparentemente comuns, propositadamente alheio a teorias acadêmicas,
interessado em levar sua lupa para o dia a dia dos que testemunharam
1945. Ano que, ele acredita, termina, finalmente, nos dias de hoje. Os
principais trechos da conversa seguem abaixo.
Valor: Em seu mais novo livro, 1945 é
apresentado como o ano zero da era contemporânea. Por que não 1914, com o
começo do fim dos velhos impérios europeus, ou 1918, com o fardo
imposto à Europa Central pelo Tratado de Versalhes?
Ian Buruma: São dois marcos importantes e podemos
pensar em paralelos históricos, mas precisamos considerar diferenças
importantes. A primeira delas é a ideia, clara entre os Aliados, de que a
Segunda Guerra, ao contrário da Primeira, era, de fato, "justa".
Acreditava-se profundamente que era preciso lutar. Entre 1914 e 1918, as
razões de enfrentamento foram diversas e muito mais nebulosas. Outra
diferença fundamental é o fato de que algumas lições da Primeira Guerra
haviam sido aprendidas em 1939 e houve, com o fim das hostilidades, seis
anos depois, uma tentativa real de não se repetir certos erros. Os
julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg e no Japão, são o exemplo
mais claro, mas podemos ir além: a ONU é uma instituição mais ambiciosa
do que a Liga das Nações e até mesmo as terríveis limpezas étnicas na
Europa Central e Oriental no pós-Segunda Guerra, que relato no livro,
têm um caráter diferente do da vingança orquestrada e institucionalizada
em Versalhes.
Valor: Esse não é seu primeiro livro sobre a
Segunda Guerra. O senhor lançou, há 20 anos, "Wages of Guilt: Memories
of War in Germany and Japan". O que o estimulou a voltar ao tema?
Buruma: Em "Wages" tratei especificamente da maneira
como o conflito é lembrado no Japão e na Alemanha. O fio da meada para
"Ano Zero" foi a história recuperada de meu pai, quando ele retornou da
Alemanha para sua cidade na Holanda e viu como a necessidade da
população local de voltar à normalidade incluía, por exemplo, trotes
violentos em sua universidade. O que se aprendeu, afinal, com o
conflito? Que tipo de mundo se criou a partir de tamanha destruição, e o
que mantivemos do passado, se é que havia essa possibilidade em meio a
tanta ruína? Ao mesmo tempo, reflito sobre esse novo mundo, iniciado em
1945, que parece estar gradualmente se acabando, chegando, agora mesmo,
enquanto conversamos, próximo de seu fim.
Valor: O senhor também trata do esquecimento recente das lições de 1945...
Buruma: Sim, a quantidade de pequenas guerras
comandadas nas últimas décadas pelos EUA, culminadas em invasões cujas
consequências não foram levadas em consideração, também me instigaram a
escrever "Ano Zero". Foram guerras comandadas nos EUA e Europa por
líderes inexperientes, comandantes civis e militares que nunca haviam
tido a experiência real de guerra, nem mesmo no Vietnã. Talvez por isso
tenham sido ingênuos o suficiente para acreditar na fórmula de enviar
tropas, derrubar o ditador da hora e pronto. Obviamente, essas
ocupações, como podemos observar agora no Iraque e no Afeganistão, criam
novos problemas, incitam rebeliões, semeiam o caos. Humildemente, achei
que era um bom momento para lembrar as pessoas das reais e duradouras
consequências das ocupações civil-militares. Voltei, pois, à Segunda
Guerra.
Valor: Um dos aspectos mais definidores de "Ano
Zero" é sua decisão de contar a história a partir de personagens mais
ou menos comuns, ignorando teorias históricas sobre o período abordado.
Buruma: Sim, foi algo que decidi logo no início das
minhas pesquisas: estão proibidas nesse livro declarações de acadêmicos
ou historiadores. Somente contaria com depoimentos de testemunhas, de
gente que viveu o conflito, incluindo diários, relatos, reportagens. A
experiência pessoal e a capacidade de descrever o mundo em transformação
à sua volta usando seus olhos foi um pré-requisito para determinado
trecho, fato ou relato entrar no livro. Não queria escrever mais um
livro oferecendo alguma teoria histórica inovadora sobre as causas e
efeitos da Segunda Guerra. Meu objetivo foi o de criar, tal qual um
romancista, um quadro da vida cotidiana naquele momento e locais
específicos. A ideia era levar a vida daquela gente, em 1945, para o
livro.
"Meu objetivo foi o de criar, tal qual um romancista,
um quadro da vida cotidiana naquele
momento e locais específicos"
Valor: Um de seus personagens é Nobusuke Kishi,
importante na terrível campanha da Manchúria. Ele jamais é julgado e
sai da prisão para se tornar, no fim dos anos 50, primeiro-ministro do
Japão. Para o senhor, a ocupação aliada do Japão e da Alemanha nazista,
mesmo com a permanência no palco público de atores importantes no teatro
de guerra, foi muito mais inteligente do que a do Iraque e do
Afeganistão na primeira década deste século, não?
Buruma: Nesse aspecto, 1945 oferece uma lição
política para as atuais gerações. Quando a invasão do Iraque começou,
falava-se da necessidade de destruir o Partido Baath, de Saddam Hussein,
da "desbaathificação" do país. O modelo usado pelos neoconservadores
era o que eles imaginavam ter sido a "desnazificação" da Alemanha. Mas
eles não perceberam que o Iraque ficaria ingovernável se toda a elite
sunita fosse marginalizada. Obviamente, era preciso fazer algo em
relação aos mandachuvas da ditadura, mas é de uma ingenuidade ímpar
desmantelar toda a burocracia estatal e querer governar o país ocupado a
partir do zero. O resultado foi a anarquia a médio prazo e o risco de
uma guerra civil de longa duração. Esse foi um caso terrível de falta de
conhecimento cultural dos que estavam no comando.
Valor: Com o fim da Guerra Fria, o senhor diria
que a integração econômica, desde o "ano zero", em formas diversas,
serviu de nova barreira para evitar a eclosão de um conflito de
proporções globais?
Buruma: Antes de mais nada, precisamos lembrar que a
economia europeia, em 1914, era muitíssimo integrada. E já havia a Liga
das Nações. Então, não se trata de uma barreira tão forte assim. Mas
interdependência econômica sempre ajuda. Como imaginar os EUA em guerra
com a China? Seria economicamente terrível para os dois países. O
federalismo, por sua vez, tem seus limites. Veja a Comunidade Europeia.
Como classificar essa instituição federalista? Não é uma democracia
liberal. Não é um império. Não é uma monarquia. É um híbrido que ninguém
de fato deseja. O idealismo de 1945 ofereceu à Europa a possibilidade
de criação de uma série de instituições fabulosas, mas as melhores
intenções às vezes mascaram graves problemas para o futuro.
Valor: Para o senhor, três das heranças mais
importantes de 1945, especificamente no mundo ocidental, mas não só,
foram a consolidação da democracia liberal, a defesa do Estado de
bem-estar social e o combate moral das desigualdades sociais. O que
observamos desde os anos 1980, no entanto, é o questionamento desses
três pilares incrementados no "ano zero", não?
Buruma: Sim. O fim da Segunda Guerra trouxe, como um
de seus efeitos principais, uma "explosão de idealismo", em que a
construção de um mundo mais justo, mais igual, se tornou imperativa. Mas
esse idealismo não pode durar para sempre. Ele ficou mais caro com o
passar do tempo. Os interesses da burocracia e dos sindicatos ganharam
poder com a rigidez desse idealismo e se tornam alvos de outros setores,
críticos dos limites da social-democracia e da solidificação do Estado
de bem-estar social. O que se vê, hoje, no Hemisfério Norte, são os
últimos suspiros desse momento histórico.
Valor: O senhor vê alguma "explosão de
idealismo" no momento, o aparecimento de pensadores interessados em
criar alternativas ao capitalismo de Estado chinês ou ao neoliberalismo
euro-americano?
Buruma: Decididamente, não. A esquerda parou no
tempo. Os ideais clássicos de esquerda se revelaram, na prática, ou
muito caros, ou muito rígidos, ou acabaram cooptados por interesses
corporativos. O colapso do império soviético no fim dos anos 80 e começo
dos 90 ainda nutre, duas décadas depois, terríveis sequelas, de certa
forma subtraindo o crédito de tudo o que esteja relacionado ao marxismo.
A base ideológica da esquerda foi varrida do mapa. E nada ocupou de
fato o espaço da velha esquerda do século XX na era do materialismo
individualista em que vivemos.
Valor: As políticas de redistribuição de renda
no Brasil não dariam a pista de um caminho possível para as esquerdas
neste milênio, como, por exemplo, na denúncia da desigualdade social que
se vê hoje nos Estados Unidos?
Buruma: Sim, mas especificamente para a esquerda
latino-americana ou, quiçá, a de parcela significativa do Hemisfério
Sul. Os caminhos da América Latina, desde o "ano zero", foram bem
diferentes dos da Europa Ocidental, por exemplo, que experimentou a
social-democracia a partir de 1945. As seguidas ditaduras e governos de
direita ao sul do Rio Grande ofereceram uma reação natural na figura,
por exemplo, de um Lula. Uma encarnação de esquerda que classifico de
moderada e, ouso dizer, provavelmente saudável para o Brasil. Mas não
vejo como os dois principais modelos de social-democracia oferecidos à
sociedade brasileira poderiam ser aplicados fora da América Latina.
Valor: O senhor ocupa a cadeira de Democracia,
Direitos Humanos e Jornalismo da Universidade Bard. E há de considerar
que esses três importantes pilares da vida social mudaram muito desde
1945, não?
Buruma: Enormemente. E o jornalismo, provavelmente,
foi o que se transformou de forma mais radical, por causa da emergência
da era digital. A maior preocupação que tenho é com a qualidade do
chamado jornalismo internacional, vital para a aproximação e compreensão
de culturas, função exercida pelos correspondentes durante todo o
século XX. Mas as empresas não conseguem mais bancar esses
profissionais, o que é uma tremenda perda. E se o acesso via internet
aumentou a sensação de conexão com o estrangeiro, a autoridade da
imprensa diminuiu decididamente. A internet, com as redes sociais, não
reconhece mais a autoridade do jornalista. Ela se tornou o reino das
opiniões, dos desabafos, dos diários disfarçados de notícia. Os filtros
se foram, há de tudo no mesmo saco: reportagens de alta qualidade,
opiniões de todos os naipes e importância, polêmica gratuita, tudo
dividindo o mesmo espaço. Espaço que, talvez, até seja mesmo muito mais
democrático, no entanto carente da importância e da capacidade de
interferência de antes.
Valor: Por outro lado, a era digital ofereceu a
possibilidade do desmascaramento de delitos oficiais, dos vazamentos de
informação sigilosa, em uma proporção jamais vista.
Buruma: Sem dúvida, mas então precisamos deixar algo
muito claro: isso não é jornalismo, é uma outra coisa, algo
completamente diferente. Revelar dados não é jornalismo. Jornalismo é
quando o "Guardian" ou o "New York Times" exercem sua capacidade de
edição, de decidir o que é mais ou menos vital, o que deve ser
publicado, e como esses documentos serão explicados, seu contexto, sua
importância. Edward Snowden precisou de um jornalista e dos velhos
dinossauros da imprensa escrita para divulgar seus achados.
Valor: Passemos aos direitos humanos. Houve, nas últimas sete décadas, uma avanço inegável nessa área, não?
Buruma: Sim, mas talvez tenhamos ido longe demais. A
defesa dos direitos humanos se tornou quase uma religião, uma versão
laica das missões cristãs. A ideia de guerras modernas em outros países,
justificadas pelo ideário dos direitos humanos, é um equívoco prático,
com a inevitável transformação do que era ruim em algo muito pior. Veja a
Líbia. O resultado da deposição de Muamar Gadafi, em um primeiro
momento fato histórico difícil de não considerar positivo, foi a
produção de uma sociedade civil ainda mais violenta. Os direitos humanos
só podem ser de fato universais se você os estreita a pontos
racionalmente globais, como, por exemplo, o direito de não ser
torturado. Quanto mais você os alarga, mais difícil se torna a tarefa de
aplicá-los universalmente, ao menos de forma honesta.
Valor: O senhor mencionou a crença dos aliados
de que 1945 foi uma "guerra justa". Onde o senhor estabeleceria o limite
do uso da força com a justificativa da defesa dos direitos humanos?
Buruma: Direitos humanos e dogmatismo não podem
caminhar juntos. Há casos em que é preciso usar força militar para
impedir, por exemplo, genocídios ou limpezas étnicas, mas não pode ser
nunca a norma. Chegamos ao limite da ideia de que temos de intervir
sempre que se detectar abuso de direitos humanos. Essa pode ser até,
paradoxalmente, a semente para a criação de um novo Hitler.
Valor: Ao mesmo tempo, a justificativa de ações
militares em "guerras justas", guiadas pela necessidade de proteger a
população de povos estrangeiros de seus governantes, tem força moral
diminuída quando se enfrenta a crítica do desrespeito aos direitos
humanos em casa.
Buruma: Sim, e imagino que você esteja se referindo à
prisão de Guantánamo. Uma crítica honesta à administração Obama é
justamente a timidez em relação às violações de direitos humanos
praticadas pelos EUA. Não houve uma mudança política significativa de
rompimento com as diretrizes da era Bush. A principal diferença é que
Bush usava de forma cínica a noção de intervenção humanitária para
justificar ações militares. Os "neo-cons", curiosamente, usaram esse
viés missionário cristão e se apropriaram, de certa forma, do ideário da
velha esquerda, ocupando, nos EUA, o posto de internacionalistas da
hora, acreditando de fato que tinham o dever moral de intervir e
estabelecer democracias mundo afora. Alguns dos principais colaboradores
de Obama, como a chefe da missão dos Estados Unidos na ONU, Samantha
Power, comungam, pelo viés liberal, do mesmo ideário, mas trata-se, em
geral, de uma administração mais cautelosa, como se viu recentemente na
Síria.
Valor: E a democracia? Há de fato uma crise do modelo das democracias liberais?
Buruma: Os governos nacionais, desde o "ano zero",
foram gradualmente perdendo sua importância, submetidos ao interesse de
corporações globais poderosíssimas, que ultrapassam os limites
históricos da nação. Consequentemente, as pessoas que elegemos são cada
vez menos efetivas para lidar com o mundo à sua volta. Cria-se uma crise
de confiança: mais e mais pessoas acreditam que a democracia liberal e a
classe política não são mais aptas a nos governar. O resultado é a
emergência de magnatas como Berlusconi, na Itália, ou, em países com
economia em desenvolvimento, como Egito, Tailândia, Turquia e Ucrânia,
uma crescente oposição de interesses entre a elite urbana e as
populações interioranas. Há um consenso democrático de que todos os
egípcios, turcos e tailandeses devem ter o direito ao voto. Mas também
há uma enorme dificuldade de entender que o eleitor nos grotões desses
países elegerá candidatos de acordo com seu interesse regional, quase
sempre diverso do das elites urbanas e, muitas vezes, desrespeitando uma
das fundações da democracia: a garantia dos direitos das minorias,
outra herança importante do "ano zero".
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