Mas é preciso contar a estória.
* * *
Era agosto de 1976. Chega-me dos Estados Unidos um bilhete escrito numa folha de bloco rasgada ao meio:
“Caro Rubem Alves: seus pensamentos no livro 'Tomorrow’s Child' têm tido uma profunda influência sobre a minha vida. A sua capacidade de sintetizar... a clareza com que você se exprime são dons muito bonitos. Por isso sou-lhe muito agradecido. Afetuosamente, Ladon Sheats”.
O signatário não dizia quem era. Fiquei com o bilhete na mão, sem saber o que pensar. Alguns dias depois recebi carta de um amigo com as explicações.
“Caro Rubem: esse bilhete que você recebeu foi escrito de uma prisão em Alexandria.Ladon Sheats está cumprindo uma sentença por haver participado de uma demonstração contra as armas nucleares acontecida no Pentágono.”
Pondo em ordem minhas velharias encontrei aquele bilhete numa pasta. O prisioneiro me escrevia só para dizer “obrigado” por um livro que eu escrevera. Mas ao escrevê-lo jamais poderia imaginar que ele, o livro, iria para a prisão. Ele, o prisioneiro, havia levado a sério o que eu escrevera, mais do que eu mesmo.
Ladon Sheats era um cidadão norte-americano tradicional. Foi membro do SAC, Strategic Air Command, a sinistra organização da força aérea norte-americana que controlava os bombardeiros e mísseis atômicos a serem lançados contra a União Soviética, se preciso fosse. Fora do SAC, chegou a ser vice-presidente de marketing da IBM.
Mas de repente seus olhos se abriram e ele tomou consciência da monstruosidade daquela máquina de morte. Fez então aquilo que muitos místicos loucos já haviam feito — Buda, Jesus, São Francisco. Deixou tudo, demitiu-se da IBM, vendeu o que possuía e juntou-se a um grupo de pessoas que havia escolhido uma estranha forma para exprimir suas convicções espirituais: invadia pacificamente as instalações nucleares onde se guardavam os mísseis com bombas atômicas, sabendo que isso as levaria à prisão. Invadiam para serem presos. Era o seu jeito de tornar pública a sua repulsa àquela loucura. Tivemos, então, uma longa correspondência. Vou transcrever alguns trechos de suas cartas.
Eles haviam acabado de cumprir um mês de prisão por haverem invadido um lugar onde estavam os silos atômicos, próximo da fronteira do Canadá. Saídos da prisão resolveram fazer tudo de novo. A primeira pena fora muito branda... Aí ele me contou o que fizeram enquanto se preparavam para a segunda invasão:
“Durante o fim de semana nós nos entregamos a uma farra — salada de aspargos e espinafres frescos, pizza, cerveja etc. etc. e longas caminhadas na frescura da Primavera. A madrugada do dia 27 foi fantástica. Estávamos tão agradecidos por poder voltar ao lugar dos mísseis... localizado tão próximo a uma reserva de vida animal onde abundavam garças azuis, gansos canadenses, veados e miríades de criaturas da terra e do céu.
Ficamos então de pé sobre as tampas de concreto que cobriam os mísseis ... cantando, lendo as 'Sagradas Escrituras' e textos do seu livro 'Creio na Ressurreição do Corpo' que um casal havia descoberto durante seu último período de prisão. Os seus pensamentos alimentaram nossos espíritos, Rubem. Você estava lá conosco. Pensando na sua imagem do corpo como uma pipa e cantando um hino — foi assim que ‘pulamos o muro’, em comunhão com os ‘quero-quero’ que voavam livres entrando e saindo do lugar proibido onde se encontravam os mísseis. Os seus pios soaram como se fossem ecos à nostalgia que havia em nossos corações...”
Por esta segunda transgressão receberam uma pena de seis meses. Ao final desses seis meses ele me escreveu:
“20 de novembro, 1986: Rubem, numa questão de poucas horas minha jornada me levará para além dessas grades... para uma noite de Inverno quando eu alegremente poderei sorrir para as estrelas pela primeira vez desde maio. Irei de ônibus para o Texas para a celebração dos 78 anos de vida do meu pai. (...) Depois do Texas tudo é incerto. Pode ser que eu vá para Pittsburg para ajudar num abrigo para os sem teto... ou para um mosteiro no alto das Montanhas Rochosas para me alimentar de silêncio e solidão. Qualquer que seja o meu caminho, a música é a mesma. Como disse o poeta russo Y. Yevtuschenko, ‘Não é possível não dançar’. Rubem, você tem planos de vir a esse país em 1987? Eu dou risadas só de pensar que os nossos caminhos poderão se encontrar...” (continua)
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Era agosto de 1976. Chega-me dos Estados Unidos um bilhete escrito numa folha de bloco rasgada ao meio:
“Caro Rubem Alves: seus pensamentos no livro 'Tomorrow’s Child' têm tido uma profunda influência sobre a minha vida. A sua capacidade de sintetizar... a clareza com que você se exprime são dons muito bonitos. Por isso sou-lhe muito agradecido. Afetuosamente, Ladon Sheats”.
O signatário não dizia quem era. Fiquei com o bilhete na mão, sem saber o que pensar. Alguns dias depois recebi carta de um amigo com as explicações.
“Caro Rubem: esse bilhete que você recebeu foi escrito de uma prisão em Alexandria.Ladon Sheats está cumprindo uma sentença por haver participado de uma demonstração contra as armas nucleares acontecida no Pentágono.”
Pondo em ordem minhas velharias encontrei aquele bilhete numa pasta. O prisioneiro me escrevia só para dizer “obrigado” por um livro que eu escrevera. Mas ao escrevê-lo jamais poderia imaginar que ele, o livro, iria para a prisão. Ele, o prisioneiro, havia levado a sério o que eu escrevera, mais do que eu mesmo.
Ladon Sheats era um cidadão norte-americano tradicional. Foi membro do SAC, Strategic Air Command, a sinistra organização da força aérea norte-americana que controlava os bombardeiros e mísseis atômicos a serem lançados contra a União Soviética, se preciso fosse. Fora do SAC, chegou a ser vice-presidente de marketing da IBM.
Mas de repente seus olhos se abriram e ele tomou consciência da monstruosidade daquela máquina de morte. Fez então aquilo que muitos místicos loucos já haviam feito — Buda, Jesus, São Francisco. Deixou tudo, demitiu-se da IBM, vendeu o que possuía e juntou-se a um grupo de pessoas que havia escolhido uma estranha forma para exprimir suas convicções espirituais: invadia pacificamente as instalações nucleares onde se guardavam os mísseis com bombas atômicas, sabendo que isso as levaria à prisão. Invadiam para serem presos. Era o seu jeito de tornar pública a sua repulsa àquela loucura. Tivemos, então, uma longa correspondência. Vou transcrever alguns trechos de suas cartas.
Eles haviam acabado de cumprir um mês de prisão por haverem invadido um lugar onde estavam os silos atômicos, próximo da fronteira do Canadá. Saídos da prisão resolveram fazer tudo de novo. A primeira pena fora muito branda... Aí ele me contou o que fizeram enquanto se preparavam para a segunda invasão:
“Durante o fim de semana nós nos entregamos a uma farra — salada de aspargos e espinafres frescos, pizza, cerveja etc. etc. e longas caminhadas na frescura da Primavera. A madrugada do dia 27 foi fantástica. Estávamos tão agradecidos por poder voltar ao lugar dos mísseis... localizado tão próximo a uma reserva de vida animal onde abundavam garças azuis, gansos canadenses, veados e miríades de criaturas da terra e do céu.
Ficamos então de pé sobre as tampas de concreto que cobriam os mísseis ... cantando, lendo as 'Sagradas Escrituras' e textos do seu livro 'Creio na Ressurreição do Corpo' que um casal havia descoberto durante seu último período de prisão. Os seus pensamentos alimentaram nossos espíritos, Rubem. Você estava lá conosco. Pensando na sua imagem do corpo como uma pipa e cantando um hino — foi assim que ‘pulamos o muro’, em comunhão com os ‘quero-quero’ que voavam livres entrando e saindo do lugar proibido onde se encontravam os mísseis. Os seus pios soaram como se fossem ecos à nostalgia que havia em nossos corações...”
Por esta segunda transgressão receberam uma pena de seis meses. Ao final desses seis meses ele me escreveu:
“20 de novembro, 1986: Rubem, numa questão de poucas horas minha jornada me levará para além dessas grades... para uma noite de Inverno quando eu alegremente poderei sorrir para as estrelas pela primeira vez desde maio. Irei de ônibus para o Texas para a celebração dos 78 anos de vida do meu pai. (...) Depois do Texas tudo é incerto. Pode ser que eu vá para Pittsburg para ajudar num abrigo para os sem teto... ou para um mosteiro no alto das Montanhas Rochosas para me alimentar de silêncio e solidão. Qualquer que seja o meu caminho, a música é a mesma. Como disse o poeta russo Y. Yevtuschenko, ‘Não é possível não dançar’. Rubem, você tem planos de vir a esse país em 1987? Eu dou risadas só de pensar que os nossos caminhos poderão se encontrar...” (continua)
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* Filósofo. Educador.
Fonte: Correio Popular online, 10/01/2014
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