Card. Seán O'Malley, ofm cap*
A parábola do pobre Lázaro e do homem rico acontece
diariamente no nosso mundo. Quando ainda era um jovem padre, estive num
campo de refugiados, durante a guerra civil em El Salvador. O campo
estava cheio de crianças, cujos estômagos tinham inchado por
malnutrição. Um dia perguntei a uma das Irmãs, que trabalhava no campo,
porque é que não se abatiam algumas das cabeças de uma manada que
pastavam num campo contíguo ao nosso, para alimentar as famílias do
campo de refugiados. Ela explicou-me que isso não era possível, porque
aquele gado estava destinado a ser transformado em comida para cães, a
enviar para os Estados Unidos. Vezes demais a vida humana é
desvalorizada pela nossa cultura contemporânea - o direito mais básico à
vida está subordinado a exigências exageradas do eu autónomo.
Acreditamos que o ser humano deve ser o sujeito, mas,
vezes sem conta, ele não passa de mero objeto. O que tem de se tornar o
centro do nosso Evangelho social é o ensinamento que a Igreja faz,
hoje, sobre a pessoa humana criada à imagem de Deus, redimida pelo
sangue de Cristo e chamada a uma vocação de santidade.
Hoje, as verdades sobre Cristo, sobre a Igreja e sobre
a pessoa humana devem ser proclamadas com alegria e ousadia na
catequese. Estas verdades representam o conteúdo da nossa fé e são elas
que nos tomarão livres. A liberdade autêntica está baseada na verdade e
é essa verdade que nos permite amar. A verdadeira liberdade coloca-nos
no caminho da santidade e na senda da civilização do amor.
Quando o nosso Santo Padre João Paulo II esteve em
Madrid, dirigindo-se a um milhão de jovens, disse-lhes: «Respondam à
violência cega e ao ódio desumano com o poder fascinante do amor.» Todos
sabemos que o mal tem o seu fascínio e atrativo, mas, muitas vezes,
perdemos de vista o facto de que o amor e a bondade também têm o poder
de atrair e que a virtude é cativante. Transmitir a fé quer dizer
ajudar as pessoas a terem uma verdadeira relação com Cristo, que seja
capaz de as apetrechar para viverem uma boa vida, uma vida moral, uma
vida justa. Assim, parte da nossa função como mestres da fé consiste em
ajudar as pessoas que nos são confiadas a tornarem-se virtuosas.
Platão considerava que a virtude é conhecimento. Chaim Ginott, um
sobrevivente dos campos de concentração, lembrou-nos que médicos,
enfermeiros, cientistas e soldados faziam parte do mecanismo do
holocausto e mostrou-nos que o conhecimento não é necessariamente uma
virtude, pois, demasiadas vezes, a ciência e a tecnologia foram postas
ao serviço do mal.
Peter Kreeft disse que, na nossa sociedade
contemporânea, reduzimos todas as virtudes a uma só: ser simpático.
Kreeft lamenta que, pela primeira vez na história, o relativismo moral e
o subjetivismo sejam, não uma aberração de rebeldes, mas a ortodoxia
reinante do sistema intelectual vigente. Quantas vezes académicos
universitários e a comunicação social rejeitam qualquer crença numa
moral universal e objetiva. (...)
Stanley Hauerwas disse que aprender a ser moral é como
aprender a falar uma língua. Não se ensina uma pessoa a falar
ensinando-lhe primeiro as regras da gramática. A maioria de nós
aprendeu a falar uma língua ao ouvir outros falá-la e imitando-os.
Aprende-se a falar à medida que se é iniciado numa comunidade de
língua, observando os mais velhos, imitando por mímca os que falam bem.
É assim que Hauerwas descreve a função da Igreja, como sendo a tarefa
de nos expõe a grandes exemplos de vida cristã. (...)
Temos de apetrechar os nossos jovens com o que é
necessário para que possam ser discípulos. Precisam conhecer não só as
verdades da nossa fé, mas também como viver essas verdades. Quase todos
aprendemos a ser verdadeiros cristãos imitando alguém, seguindo o
exemplo de um membro mais velho da família ou da paróquia, respondendo
«sim» à chamada e tomando para nós próprios uma vida que se tornou real
e acessível através do testemunho de outrem. Os jovens cristãos
precisam de mentores - já a Didaqué apelara a mentores para acompanhar os neófitos na Igreja primitiva.
Vivemos num mundo obcecado por celebridades. Para os
nossos jovens, os heróis e as heroínas foram substituídos pelas
celebridades. Quantas vezes essas celebridades, por muito que sejam
bonitas, cantem bem, sejam bons atores ou desportistas, vivem vidas
superficiais, egoístas e caóticas.
A Igreja sempre nos apresentou a vida dos santos. Para
nos fazer verdadeiramente compreender que o chamamento à santidade é
universal, o Santo Padre canonizou muitas pessoas. Os santos dão-nos um
esboço da luta que é necessária para ultrapassar a fraqueza e o pecado
humanos, e abraçar a vontade de Deus nas nossas vidas.
É muito saudável que os nossos jovens oiçam falar hoje
dos nossos santos e heróis contemporâneos, como Dorothy Day que, depois
de ter feito um aborto e ter tido outra criança fora do casamento, se
tornou numa das pessoas mais notáveis da história da Igreja do nosso
país.
Os nossos jovens querem ver os ideais do Evangelho
vividos na nossa vida. Uma das piores consequências do escândalo de
pedofilia na Igreja é que, nela, se possa instalar um cinismo em
relação ao chamamento à santidade. Corremos o risco de sermos soterrados
pelo mau exemplo de padres e bispos, e é preciso que lembremos as
pessoas que sempre houve santos e pecadores na Igreja. A missão da
Igreja é chamar todos à conversão. Temos os nossos sucessos e os nossos
fracassos. Os santos são a história de sucesso que os nossos jovens
precisam de conhecer. E como até os santos foram pecadores, a sua
história ajuda os jovens a ver que nós, seus mentores, nos debatemos no
mesmo caminho de santidade.
Temos também de parar com o mau costume de apresentar a
Igreja de tal maneira que as pessoas julguem que podem ser cristãos e
continuar arredios. A privatização da religião nos nossos dias de
individualismo new age é um veneno para a mensagem evangélica da comunidade, de interligação dentro do Corpo de Cristo.
Nos meus tempos de seminarista, li uma entrevista com
Flannery O'Connor sobre o que era crescer como católica no Sul dos
Estados Unidos. A famosa autora contou que, em criança, a sua melhor
amiga era uma batista, sua colega de carteira. Certo dia, Flannery
convidou a amiga para ir à Missa. A pequenita pediu licença à mãe e lá
foi com ela à igreja católica. Flannery estava ansiosa por conhecer a
reação da sua amiga. «Então, o que é que achaste?» A amiga
respondeu-lhe: «Uau, algo de especial se passa convosco católicos: a
música é péssima, o sermão, uma maçada e, mesmo assim, têm a casa
cheia!»
Infelizmente, já não podemos contar com que 75% dos
católicos cumpram o preceito dominical. Temos de preparar as pessoas a
fazerem parte duma comunidade praticante. Há muitos anos, era eu bispo
nas Ilhas Virgens Americanas e fui convidado pelo rabino para visitar a
sinagoga. É uma lindíssima construção de arquitetura local, com areia
branca fina no chão. Tem mais de 300 anos. Ao dar a volta à sinagoga,
peguei num velho livro de orações hebraicas e abri-o numa página onde
uma linda oração começava com as palavras: «Mais do que Israel guardou o
Sábado, o Sábado guardou Israel.» E eu pensei para comigo: «Que grande
verdade! Nós, católicos, poderíamos dizer a mesma coisa: mais do que
nós cumprirmos o preceito dominical foi ele que nos manteve unidos como
povo, como Igreja, centrados em Deus, na sua Palavra e na missão que
Ele nos confiou.»
Numa cultura viciada no entretenimento, os nossos
jovens católicos acham, por vezes, a Missa de domingo uma experiência
menos que satisfatória, tal qual a pequena amiga batista da Flannery
O'Connor. O desafio que enfrentamos é sermos mestres de oração. Ensinar
os nossos jovens a fazer a experiência da oração, a fim de que, ao
juntarem-se para a Eucaristia dominical, tenham uma noção do porquê que
ali estão e de como é que se reza.
Não existe vida católica, santidade, discipulado, sem
oração. Qualquer escola católica, qualquer programa de educação
religiosa tem de ter uma componente de oração que possa ajudar os
nossos jovens católicos a serem parte de uma comunidade praticante. É
congregados à volta do altar que reconhecemos Cristo no partir do pão e
onde, participando na Eucaristia, nos tomamos um com Cristo e com os
irmãos. (...)
Um exercício igualmente válido consiste em criar
oportunidades para juntar os nossos jovens em grande número, onde
possam ser testemunhas uns para os outros. É sempre uma alegria ver os
nossos jovens católicos na Marcha Pró-Vida, em Washington. Ganham
verdadeiro entusiasmo com essa experiência de fé e do Evangelho da
Vida, na companhia de milhares dos seus pares. Associada a uma visita
ao Centro Cultural João Paulo II e ao Museu do Holocausto, isso pode
tornar-se numa importantíssima experiência para os nossos jovens
católicos. Precisamos de organizar coisas fora do contexto da sala de
aulas, para lhes dar a oportunidade de verem que aquilo que aprendem
nas aulas tem repercussões na maneira como os crentes vivem e
interagem.
Andrew Greeley disse que, «a todos os níveis, a Igreja
tem de se dar conta que a Beleza (através da qual a Bondade e a
Verdade estão presentes) é a sua melhor ferramenta... para atrair os
fiéis para perto da Igreja de Deus - de quem a Igreja é sacramento».
O nosso desafio é ajudar o povo a vislumbrar a beleza de Deus, a beleza do Evangelho. Na sua Carta aos Artistas,
o Santo Padre [João Paulo II] escreve: «A beleza é uma chave do
mistério e um chamamento à transcendência. É um convite a saborear a
vida e a sonhar o futuro. É por isso que a beleza das coisas criadas
nunca pode satisfazer plenamente. Faz vir ao de cima essa saudade
escondida de Deus que um amante da beleza, como Santo Agostinho,
conseguia expressar de incomparável maneira: "Tarde te amei, ó beleza
tão antiga e tão nova, tarde te amei!"».
Queremos ajudar os nossos jovens a fazer a experiência
dessa beleza. Temos de a experimentar nós próprios na nossa vida
interior. Quem transmite a fé tem de ser, primeiro, discípulo de
Cristo, o Mestre. Temos de amar a Igreja. Jesus é o Noivo, não o viúvo.
O noivo não existe senão em relação à sua noiva. Sempre gostei do
antigo texto cristão, O Pastor de Hermas. É um livro de
revelações concedidas a Hermas, em Roma, através de duas figuras
celestes: a primeira, uma velha senhora, e a segunda, um anjo com a
forma de pastor.
A velha senhora representa a Igreja. À medida que se
sucedem as visões, ela torna-se mais nova e mais bonita. À medida que
Hermas faz a sua caminhada de conversão, a beleza da Igreja
torna-se-lhe mais evidente. O caminho para a santidade é um caminho para
a fonte de toda a bondade e verdade, de absoluta beleza. Dostoievski,
pela boca do seu personagem o Príncipe Myshkin, em O Idiota, di-lo muito bem: «A beleza salvará o mundo.»
Queremos partilhar com as gerações futuras aquilo que
descobrimos: nomeadamente, que quem é católico tem uma vida boa e vive
com a certeza de ter uma vocação pessoal e uma missão comunitária. A
nossa tarefa é ajudar as pessoas a entrever a Beleza que salva e ajudar
a alimentar esse desejo de Beleza.
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* Arcebispo de Boston
In Anel e sandálias, ed. Paulinas
FONTE: http://www.snpcultura.org/educar_para_virtude_e_beleza.html 26.01.14 - Site de Portugal
Imagem da Internet
In Anel e sandálias, ed. Paulinas
FONTE: http://www.snpcultura.org/educar_para_virtude_e_beleza.html 26.01.14 - Site de Portugal
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