Enzo Bianchi*
Ir nestes dias aos túmulos das pessoas amadas é viver em
plenitude, é viver com menos mutilações, é um ato profético que diz que o
amor não acaba: é eterno!
Ó Senhor, concede a cada um a sua própria morte:
fruto daquela vida
em que encontrou amor, sentido e pena.
fruto daquela vida
em que encontrou amor, sentido e pena.
São versos de Rainer Maria Rilke, no seu Livro das horas (III,
O livro da pobreza e da morte), em que o poeta pede que a morte de cada
pessoa seja uma morte coerente, que lhe pertença, por nascer dela como
um fruto.
É uma oração muito bonita, que nos faz vibrar o coração. Mas,
precisamente como oração, é muito precária (ambas as palavras oração [preghiera, em italiano] e precária vêm do latim prex).
Quem sabe? Quem pode saber como a morte virá ao nosso encontro? Que olhos terá? Terá os nossos olhos (como pedia Cesare Pavese)?
Certamente, a morte está diante de nós, impossível de se remover
quando estamos na velhice, e volta à mente de modo particular nestes
dias de novembro, em que, não por acaso, lembramos os nossos mortos,
visitamos o lugar onde estão sepultados os seus restos mortais, fazemos
gestos de afeto, levando flores e acendendo velas, quase para consolar
os nossos pobres mortos.
Até mesmo a estação [outono, no hemisfério Norte] parece acompanhar
esses nossos pensamentos: as folhas caem, as árvores se despojam, até
simular a morte, a luz se torna tênue, breve e muitas vezes nebulosa,
opaca...
A morte se aproxima cada vez mais, mesmo que não saibamos prever:
será repentina e nos surpreenderá enquanto degustamos a vida ou o amor?
Virá ao nosso encontro na doença, que se torna assim um "aparelho" para
morrer, isto é, uma preparação e um acompanhamento para a própria morte?
Irá nos vencer depois de uma longa e penosa falta de consciência, e
sobretudo de incapacidade de viver relações e de sentir a presença dos
outros? Será uma morte até mesmo invocada, esperada com ânsia por causa
do sofrimento que nos acompanhará nas últimas, mas às vezes
longuíssimas, horas?
Logo se diz: não pensemos nisso! Em vez disso, é humano refletir,
preparar-se para que essa viagem sem retorno alcance com o seu sentido e
o seu significado o nosso coração: viagem de cada um, viagem de quem
amamos, viagem da qual, em qualquer caso, não estamos isentos.
Na minha experiência, vi pessoas que tinham medo da morte, depois,
vivê-la com paz, quando ela chegou; outras, que quase gritavam que não
tinham medo da morte, chegar à transição no desespero, no sofrimento
psíquico, até a blasfêmia da vida.
Sou idoso, ainda sou um amante de Jesus Cristo e me
parece, apesar de tudo, que conservo a fé (cf. 2Tm 4, 7). Portanto,
tenho esperança de poder encontrar, além da morte, os braços abertos de
Jesus Cristo, prontos para me acolher e me abraçar, deixando-me chorar
enquanto o aperto.
Mesmo assim – confesso-o –, tenho medo da morte, tenho temor do juízo
de Deus sobre a minha vivência, porque sei o quão pouco estive à altura
do amor recebido. Estou certo de que terei que pedir perdão a muitos
homens e a muitas mulheres por não tê-los amado o suficiente, por não
tê-los sabido amar.
Encontrarei além da morte aqueles que viveram comigo. Espero poder
estar com eles, renovando a amizade vivida aqui, vivendo em plenitude o
amor que aqui, talvez, eu vivi de modo equivocado, mas que – estou certo
disso – não será perdido e será recuperado, transfigurado.
Gostaria de me encontrar ainda na terra, uma terra nova (cf. Is 65,
17; 66, 22; 2Pe 3, 13; Ap 21, 1), mas ainda uma terra, porque eu a amei
tanto, tanto como a vida, tanto como os amigos. Acompanhei um amigo
moribundo, que me dizia: "Diga-me, repita-me que nos reveremos e
poderemos beber juntos. Diga-me, por favor!".
E com as lágrimas nos olhos, pude lhe responder: "Será assim, porque
eu não gostaria de ressuscitar se não encontrasse o que amei e encontrei
na minha vida! Se quem eu amei estiver de fora, eu também quero ficar
de fora!".
O que me faz esperar isso? Somente um amor mais forte do que os meus amores, um amor que venceu a morte.
Ir nestes dias aos túmulos das pessoas amadas é viver em plenitude, é
viver com menos mutilações, é um ato profético que diz que o amor não
acaba: é eterno!
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* Monge e teólogo italiano.
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado na revista Jesus, de novembro de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 11/11/2014
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