Michael Löwy*
Com o
desaparecimento de Leandro Konder, a cultura marxista brasileira perdeu
uma de suas figuras mais significativas. Segundo Lucien Goldmann, uma
grande obra – literária ou filosófica – é aquela que consegue associar a
coerência com a riqueza. Profundamente generoso, humano e criativo,
Leandro se distinguia pela coerência de suas ideias, e pela
extraordinária diversidade e riqueza de seus interesses e curiosidades.
Seus escritos incluem não só brilhantes ensaios sobre a filosofia
marxista, mas também obras sobre Fourier, Flora Tristan, Kafka, Walter
Benjamin, a filosofia da educação, a questão do fascismo – sem falar de
seu clássico livro sobre A derrota da dialética e seus dois romances. Leandro era um espírito autenticamente universal:
um bicho raro nestes tempos de especialização acadêmica, fragmentação
do saber e encerramento das disciplinas em compartimentos estanques.
Leandro – Leo para os amigos – nunca abandonou, cedeu, recuou, ou capitulou, em sua adesão ao comunismo e à dialética marxista. Impenitente,
segundo a teologia, é aquele que nunca se arrepende de seus pecados.
Leo nunca se arrependeu do “pecado” de lutar contra o capitalismo, por
uma sociedade de justiça e liberdade humana. Seja na resistência contra a
ditadura militar – que o prendeu e torturou, obrigando-o a se exilar –,
nas fileiras do PCB, e mais tarde, do PT, e finalmente, do PSOL, ele
sempre esteve na primeira linha do combate pela democracia e pelo
socialismo. Sua arma, nesta luta, era tão ou mais poderosa que o melhor
fuzil: a pluma.
Seu outro
“pecado” era o humor, a ironia e auto-ironia com que apimentava seus
escritos, suas aulas e suas conversas com amigos. Um exemplo bem
conhecido era sua proposta de completar seu Curriculum Vitae (CV) com um Curriculum Mortis (CM), enumerando
todas as derrotas, fracassos e insucessos do autor… No CM de Leandro
Konder figura em bom lugar sua notória incapacidade de ser um acadêmico
conformista, um burocrata partidário, um intelectual bem pensante e um
pensador bem visto pelas autoridades competentes.
Conheci o
Leandro em meados dos anos 1970, por ocasião de sua estadia em Paris,
nos anos do exílio. Embora oriundos de “capelas” diferentes – ele o
Partidão, eu a POLOP – comungávamos no culto a São Jorge (György
Lukács). Passávamos horas a discutir as sutilidades da dialética
lukacsiana e da necessidade de salvar o marxismo das calamidades
positivistas e estruturalistas que o ameaçavam.
Muitos
outros encontros se seguiram, não só em Paris, mas também no Rio de
Janeiro, a partir do fim da ditadura. Nossas conversas se davam
frequentemente em companhia de um outro mosqueteiro da dialética,
o Carlos Nelson Coutinho. Além de Lukács, Gramsci, Goldmann, Kosik e
outros profetas do Antigo e do Novo Testamento Dialético, discutíamos
também sobre política brasileira. Partindo, no começo dos anos 1980, de
perspectivas bastante diferentes, acabamos nos aproximando muito,
partilhando esperanças e decepções. Esta aproximação se traduziu, por
exemplo, na redação de um texto comum, “O Socialismo Libertário de
William Morris”, que serviu de introdução à edição brasileira do romance
utópico de William Morris, Noticias de Lugar Nenhum (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002).
Nesses
trinta e tantos anos de leituras, conversas e discussões em torno de um
café, uma cerveja ou uma batidinha, aprendemos um com o outro.
Pessoalmente, aprendi muito com o Leandro. Não só sobre a história do marxismo no Brasil, mas também sobre Kafka, Lukács, Walter Benjamin. E sobre aquele “elemento pérfido” (Bernstein dixit)
do marxismo: a dialética, é claro! Nunca li um livro de Leandro sem
encontrar nele ideias, hipóteses, análises que me enriquecessem e me
ajudassem a refletir. Meu preferido é Walter Benjamin, o marxismo da melancolia. Neste
livro aparece o seguinte comentário: “Benjamin sabia da necessidade de
pensar agindo, de agir pensando.” O mesmo se aplica, palavra por
palavra, ao itinerário do intelectual militante Leandro Konder.
Semanas
atrás, por ocasião de uma curta estadia no Rio, Eleni (minha
companheira) e eu fomos visitar Leo e Cristina. Nosso amigo se movia com
dificuldade e a voz estava enfraquecida, mas o espirito nada tinha
perdido de sua agilidade e de sua força. Conversamos sobre a reedição de
suas obras: nossa cara Ivana Jinkings, da Editora Boitempo, estava
muito interessada e esperava por propostas. Eu não podia imaginar que
este seria nosso ultimo encontro…
O Leo vai
nos fazer muita falta… Mas suas ideias estarão no coração e no espirito
de muitas gerações de marxistas. Se algum dia a dialética tiver sua revanche no Brasil,
ela terá uma grande dívida para com o Leandro, combatente obstinado por
um marxismo dialético, aberto, humanista, democrático e revolucionário
(no sentido gramsciano da palavra).
* Michael Löwy,
sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito
de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências
Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (2014) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião (2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a coleção Marxismo e literatura da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2014/11/24/leandro-konder-1936-2014-marxista-impenitente/
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