quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A família na Bíblia: Léxico para sair da solidão

Cardeal Gianfranco Ravasi*
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Neste percurso sobre a família guiado pela Bíblia partiremos de alguns vocábulos das suas duas línguas principais, o hebraico e o grego. À primeira vista existe um termo hebraico específico para designar a “família”, “mishpahâ”, que se lê 300 vezes no Antigo Testamento. 

Mas se se analisa um dicionário de hebraico bíblico, descobre-se que o seu significado alarga-se até compreender o clã, a parentela, a descendência, a tribo e até a etnia. 

Daqui deriva que a família bíblica, embora nascendo de um núcleo constitutivo, o casal, não é “nuclear” nem uma mónada fechada em si mesma, mas tem uma energia vital que se ramifica em relação com a sociedade. 

É também por isto que o outro vocábulo fundamental é “bayit/bêt”, presente 2092 vezes, mas com um arco de significados que partem da “casa” material e se alargam à “família” por ela hospedada, à sua descendência e ao próprio povo (a “casa de Israel/Judá”). 

O mesmo acontece no Novo Testamento, onde os dois vocábulos paralelos “óikos/oikía” ressoam 207 vezes, acompanhados por um conjunto de cerca de 40 termos derivados: ainda que o significado seja antes de tudo “casa”, compreendem também quem nela habita, isto é, a família. 

Um famoso escritor argentino caro ao papa Francisco, Jorge Luis Borges, afirmava que «cada casa é um candelabro sobre o qual a vida arde em chamas separadas».

E, com efeito, pode imaginar-se – caminhando como fazia Borges pelas ruas da sua capital (o livro de que é extraído o verso citado intitula-se “Fervor de Buenos Aires”) – que os mutos dos palácios ocultam no seu interior muitas chamas, isto é, vidas isoladas nas suas solidões ou dramas, famílias unidas no amor ou revolvidas pelas divisões, ricas ou curvadas sob o espectro da pobreza ou da falta de trabalho. 

A Bíblia, todavia, recorda-nos que deveremos deter este isolamento e abrir a solidão a um contacto, a uma comunhão, a um encontro. É sugestivo que as casas do passado tinham as portas abertas para o pátio, onde as pessoas se cruzavam, dialogavam, murmuravam. 

Pelo contrário, o emblema dos nossos condomínios anónimos é a porta blindada que separa totalmente do exterior, ao ponto de uma pessoa só poder morrer e durante semanas os vizinhos não darem conta. 

O léxico bíblico da família impele-nos, por isso, a impedir o isolamento no medo, por vezes até legítimo, na solidão, na indiferença recíproca. «Ai do solitário que cai», adverte Qohélet/Eclesiastes (4,10), não tem outro para o levantar».

No isolamento subsiste também o risco do egoísmo, como brutalmente clamava o escritor francês André Gide: «Famílias, odeio-vos! Lares herméticos, portas trancadas, ciumenta possessão da felicidade!». 

Reencontrar a vocação da família a ser a célula de um corpo mais vasto, um horizonte aberto que acolhe e se expande: é este o espírito de base da verdadeira comunidade familiar.
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Card. Gianfranco Ravasi
In "Famiglia Cristiana"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Fonte: Publicado em 27.11.2014 -http://www.snpcultura.org
Foto:  A família feliz | Pablo Picasso | C. 1917 | Museu Picasso, Paris, França | D.R

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