[Raph] Uns dizem que tudo começou com Hobbes e
Rousseau, mas a história mais aceita é a que diz que foi durante a
Revolução Francesa a origem da separação ideológica entre os que
sentavam à esquerda ou à direita no plenário da Assembleia Constituinte:
os girondinos sentavam-se na direita e defendiam os atuais detentores
do poder econômico, enquanto os jacobinos e os cordeliers sentavam-se
na esquerda e defendiam a reforma do sistema. Séculos depois,
atualmente costuma-se classificá-los entre socialistas e neoliberais...
No entanto, seria mesmo possível reduzir o pensamento político de um
indivíduo ou grupo de indivíduos a esta dimensão restrita de “esquerda”
e “direita”? Em suma, o que são, afinal, a direita e a esquerda?
[Teo] Primeiramente,
gostaria de parabenizar pela excelente iniciativa e agradecer o convite
para participar do debate. Antes de responder propriamente a questão,
gostaria de apresentar um interessante recurso que nos ajuda a pensar
este dilema: a Análise Institucional. O movimento institucionalista
desenvolveu-se na França em meados do século passado e tem o Brasil
hoje como um dos locais em que ele pôde fixar-se, tendo alcançado
interessantes resultados, sobretudo na área da saúde mental. Como
afirma Gregorio Baremblitt em seu livro Compêndio de Análise Institucional e Outras Correntes,
a sociedade é formada por uma rede de instituições, estas as
composições lógicas, que segundo o grau de formalização que adotem
podem ser leis, normas, e quando não enunciadas de maneira manifesta
podem ser hábitos, costumes, crenças, etc. Há diversos tipos de
instituições, como a família, a divisão do trabalho, a educação, a
religião, a justiça, todas com a função de regular a vida humana
segundo seus próprios modos de organização. Quando uma determinada
ideia está bem consolidada, sendo amplamente aceita e repetidamente
executada, dizemos que se trata do instituído. Quando surge uma nova ideia que deseja substituir a anterior, chamamos de instituinte. A Análise Institucional trata-se, deste modo, do estudo e prática da dinâmica instituído-instituinte.
O instituído é uma força conservadora, que tenta se manter presente,
enquanto o instituinte é uma força revolucionária que tenta suplantar o
instituído. Neste contexto, é muito importante entender que não se
trata de bom ou mal, ou qualquer tipo de julgamento moral. Não é porque
algo é novo que é bom, como não é porque algo é tradicional que
significa ser melhor. O que hoje temos como instituído, um dia foi uma
força instituinte que conquistou seu lugar, e o que hoje vemos como
instituinte, muito provavelmente virá a se tornar um dia o instituído. É
neste sentido que podemos entender as questões históricas e
ideológicas entre Direita (instituído) e Esquerda (instituinte).
Desde que a burguesia assumiu o lugar principal na sociedade e o
capitalismo se tornou instituído, podemos pensar a Direita como os
defensores desta ordem, e a Esquerda como aqueles visam combatê-la (ou
ao menos tentar torná-la menos perversa, embora existam discordâncias
se podemos chamar estes últimos realmente de esquerda). Deste modo, só
faz sentido pensar em direita e esquerda no contexto de nossa
sociedade. Ainda que o capitalismo tenha se reformulado cada vez que
enfrentou uma crise e as características da burguesia dos tempos de
Marx (a detentora dos meios de produção) não seja tão parecida com a
atual (muito mais sustentada no capital especulativo), ainda há algo em
comum: a geração de lucros para si.
Ser de Direita, neste sentido, é concordar com o capitalismo e suas
instituições. É acreditar nos valores do individualismo, da
meritocracia e da primazia do lucro. Em alguns casos ainda é possível
ver sujeitos que defendam seus valores mais radicais, como o
tradicionalismo da família (ser contra modelos diferentes de família que
o heterossexual nuclear), o machismo (ser contra a igualdade de
direitos entre homens e mulheres), entre outros. Felizmente, a
extrema-direita não é absoluta, então é possível encontrar muitas
pessoas de pensamento direitista com que podemos estabelecer um bom
diálogo.
Ser de Esquerda, como disse Deleuze em uma excelente entrevista, é uma questão de percepção. Não é questão de ter boa alma, ou algo do gênero, mas perceber que as minorias somos todos nós.
É perceber que os direitos dos trabalhadores, dos negros, das
mulheres, dos homossexuais, dos pobres são direitos fundamentais. É
perceber que o capitalismo é um sistema que explora os recursos
naturais do planeta até causar sua completa destruição. É perceber que
mesmo que o modelo liberal possa ter pontos positivos, é para as classes
mais altas que ele é recompensador, pois para quem está em baixo na
pirâmide social, a miséria não é algo a se orgulhar. É perceber que a
meritocracia e a competitividade são valores falsos, e que eles jamais
podem estar acima do bem comum. É perceber que o acesso a justiça,
saúde e educação de qualidade deve ser para todos, e não apenas para
quem pode pagar seu alto preço. É perceber que as promessas do
capitalismo são falsas, pois há uma desigualdade constitutiva em que
para existir acumulação de capital, necessariamente há exploração e
segregação. É perceber que ter poder e riqueza no sistema capitalista
não é reflexo de atitudes éticas, sendo justamente o contrário comum na
selvageria do mercado. É perceber que o aumento da criminalidade tem
relação com a desigualdade social e a exposição do sujeito ao mundo da
felicidade pelo consumo. É perceber que, a despeito do individualismo,
precisamos encontrar soluções coletivas para um bem-estar coletivo.
E ao percebermos que o governo é a representação da ordem e do
instituído, percebemos que não há governos genuinamente de esquerda.
Existem alguns governos favoráveis às causas da esquerda, mas a
esquerda não se identifica com um partido ou um político, nem pode se
deixar ser capturada por eles. Ser Esquerda é ser uma força instituinte
numa sociedade em que o instituído é o capital e os seus meios de
exploração. Após a queda do comunismo e a dificuldade do socialismo
ideal se realizar, ser de Esquerda tem menos a ver com levantar
bandeiras socialistas (embora a participação do socialismo foi e ainda é
fundamental) do que estar disposto a pensar e lutar por alternativas.
[Carvalho] Em sua origem,
os conceitos de “direita” e “esquerda” refletiam a organização
incidental, nos assentos de uma sala, de dois grandes grupos
razoavelmente distintos. De um lado os monarquistas conservadores,
defensores do Ancien Régime pertencentes à nobreza e ao clero [1], e de outro os republicanos revolucionários, a maioria membros da próspera classe burguesa.
Esta distinção permaneceu mais ou menos constante até a segunda metade
do século XIX, quando os marxistas fizeram a proeza de lançar a
burguesia para o outro lado do espectro, e assumiram a esquerda para
si.
Basta observar essa inversão para compreender que não é fácil conceituar os termos. Ora, se a burguesia liberal era a personificação da esquerda em um século e da direita no outro,
sobramos com duas opções: ou admitimos que a utilização desses termos
ao longo do tempo é, assim como foi na origem, meramente
circunstancial, servindo apenas como rótulos ou coletes coloridos para
organizar os “times” adversários em campo; ou então tentamos
identificar uma ou mais características recorrentes nas ideologias
políticas dos dois últimos séculos a fim de compará-las com os grupos
originais franceses e delinear seus caminhos pela história.
Para falar a verdade, eu nem acho que a primeira opção anule a
segunda, por serem ambas razoáveis. Tanto considero verdade que os
termos sejam rótulos simplistas, quase sempre utilizados por critérios
de conveniência, como também entendo que, justamente pela simplicidade,
essa dicotomia tem o seu valor didático, além do valor simbólico da
referência histórica que carrega.
Assim sendo, o critério de classificação que considero mais
relevante para compreender a política geral possui a vantagem de que
tanto pode ser utilizado de forma independente quanto em correlação com
a organização espacial dos grupos na Assembleia dos Estados Gerais, e é
aquele que simplesmente divide os movimentos políticos entre
revolucionários e conservadores, estes à direita e aqueles à esquerda.
Como qualquer classificação binária, ela é limitada e certamente não é
capaz de descrever toda a complexidade do pensamento político de um
grupo de pessoas, tampouco de um único indivíduo,
mas dá indicações muitíssimo relevantes sobre a tonalidade geral e
sobre as prováveis consequências práticas de cada um dos ideários.
De modo resumido, podemos dizer que as ideologias conservadoras são
aquelas que se legitimam com base na experiência do passado, enquanto
as revolucionárias o fazem em nome das perspectivas de futuro.
Conservadores têm a tendência natural de se opor a propostas de
mudanças, exceto as lentas e cuidadosas, admitem a natureza humana como
intrinsecamente falha, e buscam preservar as instituições, tradições e
hábitos que, mesmo imperfeitos, tenham sobrevivido aos testes do
tempo. Em contrapartida, revolucionários são os que pretendem
modificar profunda e drasticamente todas essas mesmas coisas, através
da ação política, em nome de algum futuro utópico.
Colocando dessa forma, até pode parecer que os dois lados são
igualmente importantes para o processo de evolução da sociedade, haja
vista que o pensamento revolucionário tenderia a “criar movimento” (ou
“progresso”), enquanto o pensamento conservador seguiria na linha de
“manter a ordem” [2], constituindo uma espécie de yin-yang da política.
Entretanto, ainda que eu não negue se tratar de uma ideia sedutora,
também acredito que ela passa uma falsa impressão de simetria.
Sem dúvida, considero bastante compreensível que pessoas em
situações sociais desvantajosas sintam-se mais ansiosas por mudanças e
por isso se deixem encantar por ideologias revolucionárias que prometem
um belo futuro igualitário, mas a maioria dessas pessoas não faz ideia
– nem mesmo os próprios ideólogos – de quais serão as reais
consequências dessas transformações. São sempre conjecturas, algumas
mais e outras menos razoáveis, cujos efeitos práticos a história nos
mostra que apenas eventualmente envolvem progresso, mas quase sempre às
custas de muita destruição. Enfim, a verdade é que, no mundo real,
conservadores e revolucionários deixam marcas muito diferentes na
história, e mesmo quando computamos os erros de ambos, a mão esquerda
resta sempre mais suja de sangue do que a direita.
***
[1] Isso vale até a dissolução dos Estados Gerais. A partir da
Assembleia Nacional quase todos os nobres e clérigos foram excluídos do
processo e “a direita” foi ocupada por revolucionários moderados que
somente desejavam substituir a monarquia absolutista por uma
constitucional.
[2] O historiador político Francois Goguel, ao descrever a política
francesa, chamava o conjunto dos partidos de esquerda de “partido do
movimento” e dos de direita de “partido da ordem”.
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Fonte: http://textosparareflexao.blogspot.fr/2014/11/o-que-sao-afinal-direita-e-esquerda.html
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