Para Shlomo Sand, ser judeu hoje é integrar um "clube exclusivo",
situação que o incomoda
Entrevista - Shlomo Sand
O escritor israelense Shlomo Sand faz duras críticas a seu país e explica os conceitos que baseiam o livro "Como deixei de ser judeu"
De Paris
Historiador e professor da Universidade de Tel Aviv, o escritor
Shlomo Sand se define como um "judeu laico e ateu". Mas isso é
possível? Por julgar que não, ele escreveu o livro Comment j’ai cessé d’être juif
(Como deixei de ser judeu), publicado este ano em francês. No livro,
que será lançado em português pela editora Benvirá, Sand escreve que tem
consciência "de viver numa das sociedades mais racistas do mundo
ocidental, na qual o racismo está presente nas leis, nas escolas, na
mídia".
Segundo Shlomo Sand, o barril de pólvora prestes a explodir não vai
conhecer a paz "enquanto não houver uma verdadeira pressão internacional
sobre o Estado de Israel". "Para salvar Israel de si mesmo, o mundo
deve acordar, sobretudo os Estados Unidos", diz.
Nesta entrevista, feita por telefone na França, onde se encontrava de
passagem, ele diz que Hitler venceu a guerra ideológica pois,
exatamente como os nazistas, "os sionistas consideram a identidade
judaica como algo à parte, uma etnia e mesmo às vezes com bases
raciais". Diz que algo tribal, racista venceu "porque os sionistas
definem o Estado israelense não como o Estado de todos os cidadãos, mas
dos cidadãos judeus". E informa: "Na Universidade de Tel Aviv há
laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que
os judeus são um povo-raça", diz.
CartaCapital: Depois de escrever dois
best-sellers sobre a invenção do "povo judeu" e da "terra de Israel", o
senhor lançou este ano na França Comment j’ai cessé d’être juif. É possível deixar de ser judeu e por que o senhor não quer continuar a sê-lo?Shlomo Sand:
Aos olhos do antissemita não se deixa de ser judeu porque para ele isso
é uma coisa racial, da essência da pessoa e não se pode deixar de
pertencer a uma raça. Aos olhos do sionista é a mesma coisa. Recebi
muitas cartas de sionistas que me diziam ser impossível, já que a visão
deles é essencialista, ser judeu está no sangue. Penso que ser judeu na
História é ser um crente muito, muito especial. O Judaísmo é a mãe dos
monoteísmos, é uma religião muito importante, que deu origem a dois
outros monoteísmos, o cristianismo e o islã. Mas como venho da segunda
geração de ateus laicos me perguntei sempre "Por que sou judeu?. "Sou
realmente judeu?". Escrevi o livro por duas razões.
CCC: Quais?SS:
Vivo num Estado que se define como "Estado Judaico". Ora, um quarto da
população não é considerada judia e não pode tornar-se judia, senão pela
conversão. Como sou um cidadão de um Estado que se define como judaico,
sou um cidadão privilegiado porque o Estado não pertence aos seus
cidadãos árabes nem cristãos. Como minhas origens são judaicas, isto é,
sou descendente de pessoas que sofreram muito tempo essa política
segregacionista que perseguiu os judeus, não quero ser judeu num Estado
Judaico. Se esse Estado fosse de todos os cidadãos israelenses, não
teria escrito esse livro.
A segunda razão é que penso que a identidade judaica laica é vazia,
não tem um peso cultural, linguístico, etc. Os judeus laicos no mundo
não falam a mesma língua, não comem os mesmos alimentos, não ouvem as
mesmas músicas. Woody Allen não sabe o que é a música israelense de
hoje, não sabe o que se come em Israel, não pode falar minha língua.
Queria compreender o que é um judeu laico excluindo a memória. Sempre me
defini como judeu dizendo que enquanto houvesse um antissemita no mundo
eu seria judeu. Mas parei de me definir assim. Pode-se virar cristão,
virar judeu religioso, virar socialista, brasileiro, ou francês, mas
como virar judeu laico? Existe uma forma de se virar judeu laico sem ter
nascido de mãe judia? No momento em que compreendi que faço parte de um
clube exclusivo que não pode receber novos membros, decidi que não
quero pertencer a um clube exclusivo em pleno século XXI.
CC: Em Israel, a menção "judeu" vem inscrita na carteira de identidade. O
senhor escreve: "Em Israel e no estrangeiro, os sionistas do início do
século XXI rejeitam o princípio da nacionalidade israelense para somente
admitir uma nacionalidade, a judia". Um pouco depois: “Cada vez mais,
tenho a impressão de que sob certos aspectos Hitler saiu vitorioso da
Segunda Guerra Mundial". Pode explicar?SS: Hitler
ganhou a guerra ideológica, de certo modo. Ele tinha decidido que os
alemães judeus não eram alemães, que eram uma raça à parte, uma etnia à
parte, um povo à parte. O alemão judeu não estava de acordo com isso,
sentia-se alemão, era um cidadão alemão, tinha uma nacionalidade alemã. E
por que Hitler ganhou ideologicamente? Porque os sionistas consideram a
identidade judaica como algo à parte, uma etnia e mesmo às vezes com
bases raciais. Na universidade de Tel Aviv, onde trabalho, há
laboratórios que pesquisam desesperadamente o DNA judeu para provar que
os judeus são um povo-raça que partiu há dois mil anos da terra que se
chama Israel, passando por Moscou e fazendo outros percursos até
retornar à Palestina. Digo que algo tribal, racista, ganhou porque os
sionistas definem o Estado israelense não como o Estado de seus cidadãos
mas dos cidadãos judeus. Não discuto a existência de Israel, discuto a
identidade etnocêntrica da política israelense.
CC: O senhor se diz laico e ateu. Como é possível
isso num país que se define como um Estado Judaico, construído a partir
da história de um povo que crê numa religião revelada e no destino de
povo eleito de Deus?SS: Não é possível e
por isso me sinto mal em Israel. Queria mudar toda a cultura política
israelense. Queria “dessionizar” o Estado de Israel. Digo no meu livro
que o Estado de Israel não consegue definir quem é judeu por critérios
laicos. Eles têm dois modos de definir quem é judeu: pela biologia, pela
genética, ou pela religião. Pelos critérios religiosos, um judeu é
alguém que se converteu à fé judaica ou quem nasceu de mãe judia. E o
Estado pertence somente a essas pessoas. Assim sendo, um judeu
brasileiro que mora em São Paulo pode ser cidadão de Israel. Mas Israel
não é o Estado de meus alunos árabes que trabalham comigo na
Universidade de Tel Aviv. Se Israel vai continuar a manter uma
identidade etnocêntrica semi-religiosa com uma visão muito profunda das
raças e com uma visão profunda de povo escolhido, penso que não preciso
ser profeta para dizer que isso vai destruir Israel. Não há futuro para
um Estado assim.
CC: O senhor considera que Israel, fundado dentro dos
princípios da religião que reconhece um “povo judeu” e o vê como “povo
eleito” de Deus, é um Estado teocrático?SS:
Não, porque não é a verdadeira fé em Deus que está no centro da
política. São os nacionalistas que se utilizam da religião. O princípio
do Estado é etno-religioso mas não é a religião que está no centro. As
elites laicas têm necessidade da religião para se afirmar e por isso
Israel se torna cada vez mais um Estado etnocrático.
CC: Os judeus franceses são intransigentes com os
negacionistas que negam a existência dos fornos crematórios e o
genocídio judeu. Em Israel, nega-se a Nakba, a expulsão e o massacre dos
palestinos pelos sionistas, em 1948. Esses dois negacionismos têm
pontos em comum?SS: Não, o primeiro era
um projeto de eliminação do outro e no projeto colonialista judaico o
objetivo era de empurrar o outro para longe. Em 1948, houve massacres
mas não eram uma característica da colonização sionista. O projeto do
nazismo era eliminar o outro, não apenas expulsá-lo. Negar o sofrimento
dos judeus durante a Segunda Guerra mundial na Europa é condenável mas
negar a Nakba é também condenável, mesmo se são realidades diferentes.
Meu dever hoje é lutar contra o esquecimento da Nakba. Com esse
ocultamento, não se pode construir a paz.
CC: O Estado da Palestina,
reconhecido por 135 países entre os 193 que fazem parte da ONU, é ainda
viável? Por que Israel não quer um Estado palestino nas fronteiras
estabelecidas pela ONU em 29 de novembro de 1947?SS: O Estado de Israel é reconhecido com suas fronteiras de antes da guerra de 1967. Eu
também reconheço a existência desse Estado com as fronteiras de 1967.
Se um Estado palestino ao lado de Israel é ainda viável, não sei. Mas
não vejo outra solução. Moralmente, como não sou nacionalista, desejaria
a solução de um Estado para as duas identidades. Mas como não creio que
isso é realizável, defendo a solução de dois Estados com as fronteiras
de 1967. Mas não creio que em Israel se possa realizar isso porque a
inércia no sionismo é a colonização. O sionismo nunca parou a
colonização do fim do século XIX até hoje. Mesmo entre 1948 e 1967 havia
uma colonização sionista em Israel. Tomaram as terras de palestinos
israelenses e deram aos judeus israelenses. Por que Israel não aceita um
Estado palestino? Porque os sionistas pensam que o centro desse Estado é
o centro da antiga "pátria dos judeus", Hebron e Jericó. Esse é o
centro do imaginário bíblico que teria sido a pátria dos judeus. Para
muitos, sobretudo para as elites políticas e intelectuais, renunciar a
isso é muito difícil. Enquanto não houver uma verdadeira pressão
internacional sobre o Estado de Israel, não haverá paz. Para salvar
Israel de si mesmo o mundo deve acordar, sobretudo os Estados Unidos.
Eles podem pedir que Israel respeite o direito dos palestinos, saia dos
territórios ocupados e favoreça a criação do Estado palestino. Em
Israel, não vejo um movimento político capaz de realizar esse projeto.
CC: O senhor pensa que o movimento pelo
boicote (BDS) a Israel, criado por Noam Chomsky, Desmond Tutu, Stéphane
Hessel, Ken Loach, entre outros, pode ser eficaz para lutar contra a
segregação e o apartheid dos palestinos em Israel?SS: Aceito hoje em dia qualquer pressão sobre Israel, menos o terrorismo.
CC: O escritor Amos Oz denunciou este ano
os “neonazistas hebreus”, como ele chama os extremistas judeus que
realizaram uma onda de atentados racistas contra os cristãos e os
muçulmanos. O que o senhor pensa da expressão?SS : Como
nunca comparei o sionismo ao nazismo, não comparo os extremistas
sionistas aos nazistas porque não é comparável e isso é importante.
Enquanto não existe um projeto de genocídio, nada pode ser comparado ao
nazismo. Os extremistas racistas me enojam, mas na história não somente
os nazistas foram racistas. Tenho certeza de que no Brasil há racistas,
sempre houve racistas que não queriam viver com os negros ou com os
índios e não são comparáveis aos nazistas. Não se pode comparar o
extremista sionista execrável aos nazistas.
CC: Os israelenses gostam de escrever que
Israel é a única democracia do Oriente Médio. O que o senhor pensa
disso? O senhor escreve que gostaria de "tornar compatíveis as leis
constitucionais de Israel com os princípios democráticos".SS: Existe
um jogo liberal em Israel, por isso o definiria não como uma democracia
mas como uma etnocracia liberal. Israel não poderia nem mesmo adotar os
princípios da monarquia britânica, nem os da democracia brasileira
porque não há igualdade de todos os seus cidadãos. Não acredito que
existam democracias perfeitas. Mas há Estados mais democráticos que
outros. A democracia não é somente uma certa liberdade de expressão,
liberdade dos partidos políticos. Antes de tudo, uma democracia é um
Estado de todos os seus cidadãos. Um Estado democrático não pode
pertencer a uma parte de seus cidadãos. E como Israel se define como um
Estado judaico e não como um Estado israelense, não pode ser
democrático. E como o poder israelense procura o bem dos judeus e não o
dos israelenses, ele não pode ser considerado democrático. Um quarto da
população não é parte integrante desse Estado. O Estado deve ser um
lugar de identificação, deve servir a todos os cidadãos. Por outro lado,
de forma relativa, Israel é um país liberal. O fato que eu possa ser
professor da Universidade de Tel Aviv com minhas ideias mostra que o
Estado é pluralista e liberal. Não podem me demitir.
CC: Como seu livro foi recebido em Israel?SS : Relativamente
bem, não foi um best-seller como os outros dois sobre a invenção do
povo judeu e a invenção da terra de Israel, mas foi bem. A Universidade
de Tel Aviv fez um grande debate sobre o livro. E o subtítulo era claro:
“Como deixei de ser judeu, aos olhos dos israelenses”. Isso porque não
aceito a legitimação etnocrática e racial desse Estado.
CC: Sua posição tem consequências políticas ou práticas?SS : Eu
sou circuncidado, não posso mudar isso. Nunca me senti judeu, era
israelense de origem judaica. Mas não conseguia compreender isso por
causa do antissemitismo no mundo. Hoje, acho que o mundo ocidental é mil
vezes menos antissemita que antes. Ora, o mundo ocidental apoia um
Estado etnocrático no Oriente Médio e eu quero que isso mude, que o
mundo possa apoiar duas repúblicas, uma palestina e uma israelense, para
fazer um acordo histórico com o povo que empurraram para o Oriente
Médio.
CC: Já que se fala de circuncisão, o que o senhor pensa de se mutilar o corpo de uma criança com argumentos religiosos?
SS: Não sou contra a circuncisão com uma condição: que seja decidida por uma pessoa adulta para ela mesma, a partir de 18 anos. Mas sou contra realizá-la em seres humanos que não decidiram nada.
SS: Não sou contra a circuncisão com uma condição: que seja decidida por uma pessoa adulta para ela mesma, a partir de 18 anos. Mas sou contra realizá-la em seres humanos que não decidiram nada.
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Reportagem por Leneide Duarte-Plon
—
publicado
28/11/2014
Fonte: Carta Capital online, acesso 28/11/2014
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