RESUMO Pesquisas apontam crescimento acelerado dos que se
declaram sem religião nos EUA, parcela que hoje corresponde a 20% da
população adulta. Para estudiosos, tanto o aumento da descrença quanto
eventuais reações conservadoras religiosas estão diretamente vinculadas
ao ambiente político do país.
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Pela Constituição do Tennessee, um cidadão não pode concorrer a cargo
público se não acreditar em Deus; mas em Nashville, a capital do Estado,
um grupo de 150 pessoas se reúne semanalmente na Assembleia dos
Domingos, um fórum de ateus praticantes, que conta com mil inscritos.
Nos encontros, de uma hora de duração, revezam-se os "mestres de
cerimônias". "Não queremos que uma figura carismática se repita na
condução", explica um dos organizadores, o designer gráfico Landry
Butler, 47. Durante o encontro, uma dona de casa lê, de um púlpito,
escritos de Margareth Mead e J. R. R. Tolkien; uma assistente social
relata sua evolução como mãe solteira e seu trabalho com pacientes de
Alzheimer; e um grupo desfila um repertório que vai de "Start Me Up",
dos Rolling Stones, a "The Cave", dos Mumford & Sons. "Quantas
chances você teria de cantar em público regularmente sem ser um
artista?", indaga o vocalista Adam Newton, 39.
Divulgação | ||||||||||
"INRI (Lo Des)", 1998 |
Nashville ainda é conhecida como "a fivela do Cinturão da Bíblia",
formado pelos Estados mais religiosos do Sul dos EUA -título que disputa
com Dallas, no Texas.
Um fazendeiro que viajou 75 km com a mulher para não perder o evento
dominical dos não crentes relata uma conversa que ouviu na fila para
fazer compras em um entreposto agrícola. O vendedor contava a uma
freguesa que um dos candidatos a xerife, escolhido em eleição direta,
não frequentava nenhuma igreja. A mulher reagiu dizendo: "Esse não leva o
meu voto, deve ser imoral". O fazendeiro calou-se. "Fiquei no armário",
diz.
Apesar da compreensível cautela do visitante, o fato é que ateus,
agnósticos e os "sem religião" estão saindo do armário em um dos países
mais religiosos do mundo. O número de adultos menores de 30 anos que se
encaixam nesta última categoria já é mais que o triplo do observado no
Brasil.
O crescimento é recente e acelerado: em 2007, 15% dos americanos não
tinham religião, contra 20% em 2012, segundo pesquisa do Pew Research
Center. No Brasil, entre 2000 e 2010, os sem religião oscilaram de 7%
para 8%.
O índice de norte-americanos sem religião sobe de 20% para 32% se
considerada somente a faixa de 18 a 30 anos. Entre brasileiros, 8% dizem
não ter religião e apenas 10% dos que têm de 15 a 29 anos se enquadram
nessa categoria, segundo o IBGE (2010). Ateus no Brasil são 0,8% da
população -enquanto o cálculo do Pew, que soma ateus e agnósticos, é de
6% da população americana.
Nesse cenário, ateus famosos começam a tratar do assunto -ainda tabu- em
público, caso do ator Brad Pitt ou do criador do Facebook, Mark
Zuckerberg. Promovem-se conferências anuais para os não crentes,
chamadas "Skepticons" (conferência dos céticos), e "paradas do orgulho
ateu" são organizadas pelas redes sociais.
"Hoje é mais fácil ser ateu também por causa internet. De repente,
começamos a nos achar na rede, a marcar encontros e a nos expor", diz P.
Z. Myers, 57, cientista e professor de biologia da Universidade de
Minnesota, autor do best-seller "The Happy Atheist" (o ateu feliz),
lançado no ano passado.
Com essa onda, coexiste a maioria da população, que preserva um fervor
religioso pouco comum em países ricos: a frequência semanal a igrejas e
templos nos EUA ainda é quatro vezes superior à europeia. Os que
acreditam no criacionismo são 44%, enquanto 55% dizem rezar diariamente.
Editoria de Arte | ||
São o rebanho de uma nação cuja história foi forjada pela presença
inaugural de puritanos e outros grupos religiosos em fuga da Europa, que
estreitavam os laços com Deus na busca da nova terra prometida. Um país
em que se popularizou uma imagem retratando Jesus, entre George
Washington e outros patronos da nação, segurando a Constituição como se
fossem os Dez Mandamentos.
Especialistas concordam que o enfraquecimento da religiosidade nos EUA
tem relação direta com a política. "George W. Bush [2001-09] prestou
grande ajuda à causa ateísta", ironiza Myers.
"O que vemos é uma reação a anos em que forças religiosas se colocaram
do lado errado da história, apoiando guerras, atitudes machistas,
homofobia e doutrinas cada vez mais associadas à crença. No quesito
'relações públicas', foi um desastre para a religião", diz o professor,
que tem mais de 150 mil seguidores no Twitter e um blog, premiado pela
revista "Nature", no qual mistura ciência, feminismo e ativismo
antirreligioso.
O estudioso britânico Nick Spencer, diretor de pesquisa do centro de
estudos Theos, frisa que os EUA são "um raro país ultracientífico, onde
grandes descobertas tecnológicas acontecem desde o século 19, que ainda é
muito religioso". Autor do recém-lançado "Atheists: the Origin of the
Species" (ateus: a origem das espécies), Spencer lembra que, como
pastores e religiosos abraçaram a revolução americana e participaram do
processo de independência, os "pais fundadores" asseguraram na primeira
emenda da Constituição a liberdade de culto, proibindo o Estado de
legislar sobre o tema e de se assumir oficialmente como cristão.
Foi, na realidade, no século 20, em oposição ao socialismo e seus
regimes de ateísmo forçado, que os governos americanos passaram a
abraçar com mais convicção a identidade cristã.
Em 1952, por exemplo, foi criado pelo presidente Harry Truman (e
aprovado pelo Congresso) o Dia Nacional de Oração, celebrado até hoje em
1º de maio -data em que diversos países comemoram o Dia do Trabalho,
escolhido pela Internacional Socialista para marcar um atentado contra
grevistas em Chicago, em 1886. Os americanos, no entanto, celebram seu
"Labor Day" em setembro.
O juramento à bandeira, repetido em repartições públicas, escolas,
quartéis e no Congresso americano, foi modificado em 1954, em plena
Guerra Fria, para acrescentar a expressão "uma nação sob Deus". E a
célebre inscrição "In God we trust", nas cédulas de dólar, nasceu em
1956, no governo do general Dwight Eisenhower.
Eram os anos do auge do macarthismo, quando o Senado promoveu
investigações sobre atividades consideradas "un-american", e o senador
Joseph McCarthy (cujo nome veio a batizar a era), via comunistas por
todos os lados -do Departamento de Estado a Hollywood.
Divulgação | ||
Em seu primeiro discurso famoso, de 1950, quando denunciou diplomatas de
seu país como "comunistas infiltrados", McCarthy disse que a "grande
diferença entre o mundo ocidental cristão e o mundo comunista" não era
política, "mas moral". "Hoje estamos em uma batalha final, de tudo ou
nada, entre cristãos e ateus", anunciou. Pouco depois, pessoas
consideradas comunistas, homossexuais e ateus entraram em "listas
negras" -centenas foram presas.
CONTRACULTURA
Não tardaria muito para que a crise de identidade da Guerra Fria, com a
contestação do conflito no Vietnã, o florescimento de movimentos de
liberação sexual e a onda da contracultura, nos anos 1960, passassem a
colocar em xeque esse processo de exacerbação persecutória e religiosa.
Nas décadas seguintes, situações como a aprovação do aborto pela Suprema
Corte, em 1973, e a maior visibilidade dos gays, associada à epidemia
de Aids, terminaram por acirrar conflitos e despertar uma nova reação.
Uma espécie de segundo macarthismo desenhou-se a partir do final da
década de 1980, época em que líderes religiosos cada vez mais assertivos
passaram a condenar a "ruína moral da América". Evangélicos, que vinham
conquistando espaço nos meios de comunicação, mostravam-se mais
diretamente preocupados com o ativismo político. Chegou-se a ensaiar um
impeachment contra um presidente adúltero (Bill Clinton, 1993-2001) e o
primeiro episódio da clássica série de TV "The West Wing", sobre os
bastidores da Casa Branca, trazia um grupo de evangélicos cobrando
compromissos de um presidente democrata.
A reação religiosa-moralista fez a então superstar Janet Jackson ser
praticamente banida da TV por ter exibido, acidentalmente ou não, um
mamilo durante o show no intervalo da final do Super Bowl, o campeonato
de futebol americano, em 2004. E o marqueteiro do então presidente
George W. Bush, Karl Rove, estimulou a realização de plebiscitos contra o
casamento gay, como garantia de que muitos eleitores sairiam de casa
para votar contra -o que favoreceria a reeleição do mandatário naquele
ano, que de fato aconteceu.
"Os evangélicos abandonaram o mutismo e encontraram sua voz, às vezes
problemática e grotesca. Como resposta, assistimos a um recrudescimento
do ateísmo. Não em nome da ciência, mas porque Deus voltou à arena
política americana", diz Spencer.
Alguns ateístas têm adotado a política dos decibéis a mais praticada
pelos evangélicos -mas para metralhar religiões. Myers diz que "gosta do
confronto" e que "precisamos denunciar as loucuras dos crentes". Nessa
trincheira também se aloja Sam Harris, um dos principais ativistas ateus
do país, presente na lista dos livros mais vendidos desde setembro, com
sua segunda obra, "Waking Up" (acordando). A primeira, "O Fim da Fé",
de 2004, virou best-seller e fustiga não apenas religiões cristãs mas
especialmente o islã.
Foi no programa de Bill Maher -um show de humor político e entrevistas
há 20 anos no ar na TV americana- que Harris se meteu em uma arenga a
respeito da islamofobia de parte dos ateus que, como ele, fomentam o
confronto.
Maher, que já produziu um documentário hostil às religiões
("Religulous", de 2008), disse que "a esquerda americana, em nome do
multiculturalismo, é muito tímida em denunciar os absurdos do mundo
islâmico". Acrescentou que o islã se tornou "como a Máfia, que mata quem
ousa falar mal dela". Harris pegou a deixa e foi mais longe: "O islã é a
mãe de todas as más ideias do presente", atacou.
Ben Affleck, o ator e diretor de "Argo", disse que Maher estava generalizando e que "os EUA já mataram mais muçulmanos do que qualquer grupo fundamentalista muçulmano, mas nós não somos acusados disso". O vídeo do embate viralizou em 24 horas.
Maher também fez piada com os pacatos ateus da Assembleia dos Domingos.
"A graça de ser ateu" -disse ele- "é não ter que ir a uma igreja.
Frequentar essa assembleia é um contrassenso. É como convidar um membro
do Tea Party para uma feira de ciências".
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* RAUL JUSTE LORES, 38, é correspondente da Folha em Washington.
FERNANDO ZARIF (1960-2010) foi um artista plástico paulistano.
Fonte: Folha online, 16/11/2014
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