Mona Brandt, de 24 anos, estuda comunicação na faculdade de cinema em
Potsdam, a 30 minutos de trem de Berlim. Sua universidade se chama
Konrad Wolf em homenagem a um famoso diretor da Alemanha Oriental que
foi surpreendido na infância quando Hitler tomou o poder, em 1933, e o
pai, um escritor judeu e comunista, decidiu exilar-se com toda a família
em Moscou. Se a vida inspirou filmes a Konrad, a de seu irmão mais
velho, Markus "Mischa" Wolf, parece ficção: ele foi chefe do serviço de
inteligência internacional da Stasi, a polícia secreta da Alemanha
Oriental. Mestre de espiões que se infiltravam no Ocidente, "Mischa" era
o "homem sem rosto" até sua identidade ser revelada, em 1978, pelo
serviço secreto sueco. Para Mona, que nasceu em Berlim em janeiro de
1990, a poucos metros dos escombros do muro derrubado dois meses antes, o
cotidiano de uma nação partida em duas soa como um livro de John Le
Carré.
A Alemanha de sua geração é o país que emergiu em 9 de novembro de
1989: uma potência econômica de mais de 80 milhões de habitantes,
Produto Interno Bruto (PIB) de € 2,8 trilhões, tetracampeã de futebol,
vanguarda em energia renovável, que hoje debate como ocupar seu lugar na
geopolítica mundial sem soltar os fantasmas do passado.
"Cresci em uma cidade completamente normal, todos vão para onde bem
entendem. Parece absurdo que pouco tempo antes de eu nascer havia gente
que não podia fazer isso. Para mim, essa realidade é tão distante como a
Segunda Guerra. É história", conta Mona, que se lembra quando percebeu
pela primeira vez uma das marcas no chão da cidade do Berliner Mauer,
espécie de cicatriz no asfalto que indica por onde passava o Muro de
Berlim 25 anos atrás. E do episódio na escola, da amiga que ficou triste
ao ser chamada de "ossi", termo pejorativo para identificar quem veio
do Leste. Mona não entendeu. "Perguntei o que significava aquilo, 'vir
do Leste', e ela me explicou."
O mapa da Alemanha dividida entre República Democrática Alemã, a
Oriental, e República Federal da Alemanha, a Ocidental, está gravado na
memória da geração anterior, assim como as consequências da separação.
Andrea Brandt, de 53 anos, diretora de uma agência de trabalho
voluntário, escuta em silêncio o relato da filha Mona. Para ela, os 150
quilômetros de um muro que podia chegar a 3,5 metros de altura foram
muito concretos. Andrea nasceu em Berlim Ocidental três meses depois da
noite de 13 de agosto de 1961, quando barricadas e arame farpado
dividiram subitamente a cidade em duas. "O muro é de agosto, eu nasci em
novembro. Cresci com ele, mas sabia que era algo antinatural", conta. O
regime da RDA procurava estancar a fuga de milhões com a barreira
física e da noite para o dia quem morava "do lado de lá" ficou assim.
Pelos 28 anos seguintes.
Existem diferenças econômicas não sanadas do
tempo da separação. O Leste é desindustrializado ainda
e tem maior taxa
de desemprego
O muro encapsulou Berlim Ocidental e a transformou em um enclave
capitalista dentro da RDA - uma espécie de ilha, cercada de muro por
todos os lados. Ali viviam 2 milhões de pessoas que esbarravam
continuamente em cartazes ameaçadores avisando que estavam saindo do
setor americano da cidade, lembrança de que Berlim havia sido fatiada em
quatro pelas potências aliadas, depois da Segunda Guerra. Havia também
os bairros administrados pelo Reino Unido e pela França. A zona
soviética foi a que ficou do lado de lá das paredes pichadas do muro e
formou Berlim Oriental, capital da RDA. Ali morava 1,2 milhão de
pessoas. "Precisou de tempo para que as diferenças entre os alemães se
atenuassem. A socialização era diferente, havíamos crescido em ambientes
distintos. Os alemães do Leste eram mais desconfiados, vinham de um
mundo onde havia a Stasi. Foi ótimo quando o muro caiu, mas o processo
não foi fácil", relata Andrea.
O "processo" se iniciara muito antes. Em 1986, Mikhail Gorbatchov
dava impulso às políticas de recuperação econômica e transparência da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS. A perestroika e a
glasnost, logo se viu, foram as sementes dos movimentos de ruptura do
Leste Europeu. A tensão alemã irrompeu em Leipzig, em 4 de setembro de
1989, quando um grupo de mil alemães orientais se reuniu em frente da
Igreja de São Nicolau para protestar contra o governo duro de Erich
Honecker. A partir daí, Leipzig abrigou manifestações contra o regime
todas as segundas-feiras, sempre às 18 h.
Logo a Hungria anunciou a abertura de sua fronteira com a Áustria. Em
Praga, mais de 4 mil alemães orientais buscaram refúgio na Embaixada da
Alemanha Ocidental. Em 16 de outubro, mais de 120 mil pessoas tomaram
as ruas de Leipzig. Em 4 de novembro, centenas de milhares se juntaram
em Alexanderplatz, a mítica praça de Berlim Oriental, na maior
manifestação da história da RDA. O mundo acompanhava perplexo aqueles
movimentos. Ninguém imaginava o que aconteceria no começo da noite de 9
de novembro, uma quinta-feira.
Não eram 19 h e Günter Schabowski, membro da mais alta instância do
partido do governo da RDA, concedia entrevista a jornalistas
internacionais. A intenção era anunciar medidas mais liberais sobre a
permissão de saída do país. Um jornalista perguntou quando entrariam em
vigor. "Ah, imediatamente", respondeu o burocrata. A entrevista era
transmitida pela TV. Os jornalistas mandaram flashes às redações dizendo
que a RDA estava abrindo as fronteiras. Milhares de alemães correram
aos postos de fronteira sob o olhar de guardas atônitos. Depois vieram
com picaretas, escalaram o muro na Porta de Brandenburgo e o mundo não
seria mais o mesmo depois daquelas marretadas.
Nem bem os pequenos carros quadrados, os Trabants, congestionaram
Berlim Ocidental, o sociólogo americano Francis Fukuyama decretou "O Fim
da História", livro de ciência política que virou best-seller, para
horror das esquerdas. O embaixador Rubens Ricupero, que na ocasião
servia na missão das Nações Unidas em Genebra, entende a queda do muro
como um acontecimento de significação dupla. Fundamental para a história
de Berlim e da Alemanha no pós-guerra, seus desdobramentos iriam muito
além das fronteiras germânicas e do processo de reunificação. De maneira
rápida e imprevisível, poria fim, em dois anos, aos 70 anos da
revolução comunista.
Um de seus efeitos seria permitir a expansão europeia até o número
atual de 28 países, engolfando o antigo mundo socialista e espalhando-se
de Portugal, no Atlântico, até o mar Báltico, em uma ponta, e da
Finlândia, no círculo boreal, à Grécia, na outra. "É um feito notável.
Nem no Império Romano, nem na época de Carlos Magno, a Europa chegou
perto disso. E isso só foi possível graças à queda do Muro de Berlim e à
reunificação", diz Ricupero.
Aos seus olhos, o grande feito que dura e afeta todos, inclusive o
Brasil, foi que a queda do muro foi apenas o pré-anúncio do colapso do
comunismo como forma de organização econômica, social e política da
sociedade. "Com a derrocada do modelo socialista, a forma predominante
no Ocidente, que era, politicamente, a democracia representativa, e do
ponto de vista econômico e social, a economia de mercado, se tornou
senhora absoluta do terreno. Não tem mais nenhum competidor e isso
permanece até hoje, embora existam muitos tipos de democracias e de
capitalismo."
Não há números definitivos sobre o custo financeiro da reunificação
alemã, mas ninguém duvida que não foi nada barato. Um relatório do banco
alemão KfW estima que € 1,6 trilhão foram destinados ao Aufbau Ost, a
reconstrução do Leste. Tudo teve que ser recuperado e, em alguns casos,
reconstruído. Estradas, redes de esgoto e de energia elétrica, metrôs,
telefonia, escolas, hospitais. A Alemanha Oriental investiu pouco nisso
tudo, até por falta de recursos.
Juntar dois países que haviam seguido trajetórias tão diferentes em
um só foi tarefa gigantesca e de enorme complexidade. Tudo tinha que ser
repensado. O tratamento de água de uma Berlim usava cloro; da outra,
não; e levou tempo para juntar tudo. Durante a Guerra Fria, somente
companhias aéreas britânicas, americanas e francesas podiam voar para
Berlim Ocidental, sobrevoando a antiga RDA. A Lufthansa não era
autorizada. Quando o muro caiu, foi delicado convencer algumas empresas
de que a situação tinha mudado e não podiam continuar com o monopólio do
espaço aéreo.
Friedrich Däuble, cônsul-geral da Alemanha em São Paulo, entrou no
serviço diplomático em 1984. "Os problemas da Alemanha dividida eram um
tema central. Para nós, havia Moscou de um lado e Washington, do outro",
conta. Os americanos eram aliados, com os russos tinham dificuldades. O
primeiro posto de Däuble no exterior foi na Venezuela. Estava em
Caracas quando o muro caiu. "Sentíamos que algo podia acontecer."
Gorbatchov mandava recados claros ao governo duro da RDA. Em um discurso
famoso às vésperas da queda do muro, o líder russo disse que "aqueles
que chegam muito atrasados são punidos pela vida". "Era óbvio que ele
dizia a Honecker que a política conservadora da RDA não tinha futuro",
diz.
A soma de investimentos colocados no Leste
em 23 anos é superior ao que se investiu
no lado ocidental em 43 anos
Honecker caiu, o muro caiu, e Däuble foi chamado de volta à Alemanha.
A capital ainda era Bonn, mas havia muito a ser feito em Berlim. Desde
questões bizarras, como quem iria se responsabilizar a partir dali por
cuidar dos monumentos soviéticos, até temas delicados, como negociar a
retirada das tropas soviéticas do território alemão.
A integração física, com os ciclópicos investimentos em obras de
infraestrutura, parece, 25 anos depois, uma faceta bem-sucedida da
Alemanha reunificada. Foram gastos bilhões de euros em trilhos,
estradas, ruas, hidrovias - quase € 40 bilhões em projetos de
transporte. Só nas famosas Autobahnen foram feitas obras em 13 mil
quilômetros de rodovias, sendo quase 2,5 mil quilômetros de novas rotas.
Construíram 230 mil quilômetros de ruas e 34 mil quilômetros de
ferrovias.
A unificação significou uma enxurrada de investimentos no Leste
alemão. Entre 1990 e 2013, foram investidos € 7,61 bilhões em casas,
escolas, edifícios, monumentos e outras obras urbanas no lado oriental. O
dinheiro vinha da chamada "taxa de solidariedade", cobrada de todos os
alemães que pagam impostos sobre renda, podendo alcançar até 10% sobre o
total de taxas recolhidas dos mais endinheirados. A solidariedade veio
de um lado e a balança do aporte de recursos pesou para o outro. A soma
de investimentos colocados no Leste em 23 anos é superior ao que se
investiu no lado ocidental em 43 anos (€ 7,37 bilhões, entre 1971 e
2013). O Leste é apenas um terço do território da Alemanha.
O esforço alemão em equiparar as metades teve por efeito colateral
diminuir os investimentos nos Estados ocidentais. Sem recursos para
manutenção, a irretocável infraestrutura alemã mostra sinais de
desgaste. Imagens de rodovias esburacadas aparecem no noticiário e
chocam os alemães, já escandalizados com os atrasos do novo aeroporto de
Berlim, que nunca é inaugurado. O rico Estado da Baviera quer fechar a
torneira e pede o fim dos repasses ao Leste. "Eu entendo o pessoal do
Ocidente. Solidariedade não pode eternamente ser uma via de mão única e
tem sido assim nos últimos anos", diz a alemã oriental Sabine Mehwald,
responsável pelo serviço para cidadãos e visitantes do Ministério dos
Transportes.
Nascida em um vilarejo na ex-Alemanha Oriental, Sabine lembra como se
fosse ontem os últimos dias da vida no Leste. Ela cursou estudos
românicos na Humboldt, a famosa universidade de Berlim Oriental, e fala
português fluentemente. O mais velho de seus dois filhos tinha 11 anos
em 1989, lembra-se da "vida no Leste" e até hoje é um leitor voraz. A
filha é de 1987 - "conhece apenas o Oeste", lamenta a mãe. "O muro era
um horror e não poder fazer o que se quer é horrível. Mas eu nunca quis
viver na Alemanha Ocidental. Queria viajar, ir à África, conhecer o
Brasil, escrever minha tese sobre Jorge Amado - acabei escrevendo sobre a
revolução em Angola. Tive uma boa vida familiar, não sou vítima. Também
na RDA podia se viver uma vida digna."
Há diferenças econômicas não sanadas do tempo da separação. O Leste
ainda é desindustrializado. Depois da reunificação, o governo federal
tentou estimular indústrias e empresas a se instalar nos antigos Estados
do Leste, mas isso foi apenas parcialmente bem-sucedido e o Leste se
ressente. A ex-Alemanha Ocidental ainda é a grande região industrial
alemã. No emprego, as diferenças são fortes. Na Alemanha, a taxa de
desemprego está em torno de 6,5%. Em Berlim, alcança 11% e em algumas
regiões da antiga Alemanha Oriental é o dobro da média e bate em 14%,
apesar de todos os programas de incentivos.
Os alemães ocidentais puderam poupar, comprar casa, investir em
ações, montar seu patrimônio familiar, garantir a aposentadoria e deixar
herança aos filhos. Quem nasceu do lado do lá do muro não tem reservas.
Os salários entre uns e outros estão próximos, mas ainda não foram
equiparados nem no serviço público. Curiosamente, é o endereço da
repartição pública que define o salário do funcionário. Dependendo de
onde o servidor foi registrado, pode ganhar 10% a mais ou a menos que
seus colegas.
Na política, no entanto, as diferenças parecem digeridas. O maior
indicador disso são as origens das mais altas autoridades do país. A
chanceler Angela Merkel, no poder há nove anos, criou-se em uma região
ao norte de Berlim que, na época, pertencia à parte oriental. O
presidente alemão Joachim Gauck nasceu em Rostok, na RDA, e teve papel
importante nos protestos que levaram à queda do muro.
É nas relações internacionais que a Alemanha de hoje mais patina.
Esse é um dos grandes debates domésticos. "Costumo dizer que a Alemanha é
uma potência envergonhada", afirma um analista. Que é uma potência,
ninguém discute. Com a unificação, havia menos recursos disponíveis para
programas de desenvolvimento e assistência humanitária para países em
desenvolvimento, mas voltou a ser um ator importante nesse front. O
problema é como o país se coloca em sua política externa. A questão é
delicada.
O passado militarista, que causou duas guerras mundiais e traumas não
superados dentro e fora das fronteiras alemãs, faz que a abordagem de
Angela Merkel seja especialmente cautelosa em qualquer conflito
internacional. Mas a atuação internacional tímida destoa do papel de
megapotência econômica. Em entrevista recente, o ministro das Relações
Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, reconheceu que a diplomacia alemã
"está enfrentando demandas como nunca antes". O presidente Gauck, em
janeiro, disse que o país tinha que sacudir a relutância do pós-guerra e
assumir um papel global maior. Que papel o país ocupará na geopolítica
contemporânea é debate alemão.
No primeiro semestre deste ano, a crise entre Rússia e Ucrânia estava
diariamente no noticiário. É a primeira grande crise com Moscou depois
da Guerra Fria. A ideia daqueles tempos voltarem apavora os alemães.
Naqueles dias, quem sempre esteve à frente dos soviéticos eram os EUA,
mas nos acordos para controlar a crise da Ucrânia Berlim tem tido papel
fundamental. A queda do avião da Malaysia Airlines, em março, foi um
divisor de águas, imagina-se. Morreram muitos europeus, inclusive
alemães. A Alemanha assumiu posição protagonista, avaliam analistas, e
Washington teve papel mais periférico. "Depois da queda do avião, a
pressão do presidente Barack Obama sobre Vladimir Putin foi forte e
ajudou, mas foi a Alemanha quem tomou a linha de frente e conduziu as
negociações com a Rússia", diz um observador.
"Há uma hesitação na população alemã de fazer que o país lidere em
questões internacionais. A guerra é um trauma. Por outro lado, você não
pode ser um ator econômico forte e não ter nenhum esforço político",
opina Walter Kaufmann, chefe do departamento do Leste e Sudeste europeus
da Fundação Heinrich Böll, ligada ao movimento verde alemão. "Putin
está testando limites. Sabe que a União Europeia é um bloco cheio de
contradições e está jogando. Por isso, é muito importante ter um ponto
de vista claro do que fazer."
No front global, a Alemanha tem à frente o risco de estagnação
econômica, o que é um problema para quem tem sua força econômica calcada
na demanda externa. Além disso, tem que enfrentar problemas de
magnitude planetária. "O regime capitalista, tal como existe hoje no
Ocidente, provou ser incapaz de resolver os três maiores desafios que a
humanidade enfrenta na atualidade", observa o embaixador Ricupero. "O
aquecimento global, a tendência a uma crescente desigualdade dentro das
sociedades capitalistas mais avançadas e o desemprego são três desafios
que nenhum sistema capitalista, e a bem dizer, nenhum outro, conseguiu
resolver."
Daquele inverno de Berlim, há 25 anos, quando Mona estava para
nascer, Andrea Brandt se lembra das ruas lotadas de alemães curiosos e
excitados com o futuro. "Lembro de sentar na cama e pensar que o meu
bebê poderia viver em uma cidade inteira e não em duas partes", diz.
Neste ano, em que três datas fortes marcam a história alemã - 100 anos
do início da Primeira Guerra, 75 anos do começo da Segunda Guerra e um
quarto de século da queda do Muro de Berlim -, os alemães dizem ter
razões para celebrar apenas a terceira efeméride. Comemoram com
delicadeza - uma instalação sobre onde ficava o muro, com oito mil
balões brancos e 16 quilômetros de extensão, percorre o centro da
cidade.
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