O sociólogo Antonio David Cattani,
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com formação na
Paris-Sorbonne, diz ter escolhido um caminho diferente de 99% de seus
colegas. Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruçam sobre
questões relativas a pobreza e a miséria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemática da desigualdade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos.
A escolha já foi mais difícil de ser justificada. Desde que o francês Thomas Piketty tornou-se um best-seller
com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários
países, o que ocorre no topo da pirâmide social global tem ganhado um
pouco mais de espaço nos debates de economistas e sociólogos - ao menos
no exterior.
A entrevista é publicada por BBC Brasil, 10-11-2014.
Para Cattani, no Brasil a situação é um pouco
diferente da de outros países, porque aqui ao menos se avançou no
combate à pobreza. "Mas só isso não basta. Precisamos reduzir a
distância entre ricos e pobres para termos uma sociedade equilibrada,
com qualidade de vida e sem violência", defende.
Em A Riqueza Desmistificada (ed. Marcavisual) -
livro escrito durante um ano de estudos na Universidade de Oxford, no
Reino Unido - o pesquisador defende que a extrema riqueza precisa deixar
de ser um "tabu" para que possamos entender o papel dos
multimilionários na economia, na política e na sociedade brasileria.
Eis a entrevista
O que o caso Eike Batista diz sobre o modo como encaramos a riqueza em nossa sociedade?
Eike teve uma ascenção meteórica que envolveu o uso
de recursos públicos e, aparentemente, também informação previlegiada.
Mas havia um certo deslumbramento da opinião pública por ele. No auge de
sua carreira, centenas de pessoas pareciam dispostas a pagar US$ 1.000
ou US$ 2.000 para ouvir uma palestra sua. E não havia qualquer
questionamento sobre a forma como seu império foi construído - um
gigante com os pés de barro.
De certa forma isso ocorreu porque há um fascínio em torno da
riqueza, um deslumbre. Os grandes empresários, executivos, e ricos de
uma maneira geral são tratados como superiores. É natural que a riqueza
seja vista como algo positivo, que todos almejam. Isso é até legítimo.
Mas esse deslumbramento tem impedido uma análise mais rigorosa sobre
como algumas dessas fortunas são construídas - o que pode envolver
processos abusivos e predatórios, monopólios, vantagens junto ao poder
público e outros subterfúgios, como no caso de Eike.
Por que o sr. escolheu estudar os ricos?
Cerca de 99% dos estudos na área de ciências sociais se debruçam
sobre os pobres, a classe média e a classe trabalhadora. Poucos estudam
os ricos. Mas em um dos países mais desiguais do mundo o estudo da
riqueza é crucial. É o topo da pirâmide social que controla os meios de
comunicação, as grandes empresas, os negócios e processos políticos e
eleitorais, tomando decisões que afetam todo o resto da população. Ou
seja, os ricos e super-ricos ajudam a influenciar processos que
determinam a estrutura da sociedade.
Os pobres são milhões mas têm um poder mais limitado, não estão
organizados, estão sob a influência dos meios de comunicações. Às vezes,
meia dúzia de megaempresários influencia decisões econômicas que
alteram a vida de todos. O financiamento das empresas às campanhas
políticas, por exemplo, me parece inconveniente. Por que elas dão
milhões para esse ou aquele candidato? De alguma forma, querem retorno -
e isso não ajuda a melhorar a qualidade de nossa democracia.
Alguns dados apontam que 1% da população controla de 17% a 20% de
toda riqueza nacional. E os ricos, como os pobres, não são
autorreferentes ou autoexplicativos. Ou seja, a riqueza ajuda a explicar
a pobreza - e vice-versa. Por isso, temos de entender como se estrutura
essa sociedade de alto a baixo. Não que os estudos sobre os pobres não
sejam importantes, mas eles precisam ser complementados com análises de
economistas e sociólogos sobre o topo da pirâmide - e sobre de que forma
esse topo está acumulando sua fortuna.
Por que é tão difícil estudar o topo da pirâmide social?
A riqueza é tratada em nossa sociedade como um objeto de veneração,
um totem, algo superior que precisa ser respeitado. É um tema proibido.
Além dessa dimensão ideológica, há as dificuldades práticas. Os pobres
são acessíveis. Os pesquisadores podem entrar em suas casas e fazer as
perguntas mais inconvenientes sobre todos os aspectos de suas vidas.
Eles respondem porque esperam que isso possa ajudá-los a melhorar a sua
situação.
Já os multimilionários não respondem às pesquisas porque não têm
interesse em informar sobre a origem e a exata dimensão de sua riqueza.
Não querem que ninguém vá bisbilhotar seu patrimônio. E o resultado é
que os dados estatísticos sobre eles são extremamente fracos. Não dá
para confiar apenas na declaração de imposto de renda - até porque
poucos ricos são assalariados. E é difícil obter dados sobre o
patrimônio. Muitos multimilionários mantêm parte de sua riqueza no
exterior - têm imóveis em Paris, Londres ou Miami e escondem fortunas em
paraísos fiscais. Para completar, eles são protegidos por mecanismos
legais e jurídicos, como o sigilo bancário e de declaração do imposto de
renda.
Piketty tenta há alguns anos estudar o Brasil, mas um de seus
colaboradores relatou a BBC Brasil ter dificuldade em acessar dados da
Receita Federal...
Acho que no Brasil há regras específicas que garantem o sigilo desses dados e pouca colaboração das autoridades.
Quem são esses ricos?
É difícil quantificar isso. No Brasil, em geral as pesquisas
demográficas e sociais estabelecem um patamar de renda de R$ 6 mil, às
vezes R$ 10 mil por mês - elas dizem: todo mundo que está acima disso é
rico, é classe A. Mas precisamos estabelecer melhor as diferenças dentro
desse grupo. Quem ganha R$ 6 mil por mês pode ter um bom padrão de
vida, mas seu poder e o impacto na sociedade é muito diferente do que
quem ganha centenas de milhares de reais.
A partir de um certo patamar, o indivíduo em questão dispõe de uma
corte de serviçais, assessores tributaristas e advogados para ajudar a
multiplicar sua fortuna, assessores de marketing pessoal e
institucional. Faz parte do topo da pirâmide que verdadeiramente tem
poder. No caso dos super-ricos eu trabalho com um percentual de 0,1% da
população adulta, por exemplo.
Também há um patamar em que a riqueza gera riqueza continuamente -
mesmo em situação de crise, quando a economia real sofre. Uso um
conceito interessante que é o de "riqueza substantiva" - essa riqueza
tão grande que escapa até ao controle político. Quem é assalariado não
tem noção do que é ganhar milhões de dólares, mês após mês, ano após
ano. Nem quem tem uma pequena empresa, um apartamento na praia e um
mesmo automóvel do ano. Tem lá seu capital, alguns trabalhadores - mas
não tem uma riqueza que se multiplica continuamente.
O sr menciona no livro a série de TV Mulheres Ricas,
de 2012. Temos os colunistas sociais, revistas sobre ricos e famosos
... Até que ponto o mundo dos super-ricos está mesmo oculto, como o sr
diz?
Um famoso apresentador de TV pode tirar uma foto em seu iate para
mostrar como é bem sucedido. Mas essa publicidade é pouco relevante - e
eles só mostram o que interessa. O próprio Eike era uma
excessão. Há toda uma camada de ricos do setor financeiro, do
agronegócio que são discretissimos, não tem interesse nenhum em se
mostrar. Circulam incolusive em outra esfera, internacional.
Afinal, há algum problema em ser milionário ou bilionário?
Não é "justo" que um indivíduo talentoso e trabalha duro possa gozar dos
frutos de seus esforços?
A partir de um certo nível muitas fortunas não tem mais origem no
empreendedorismo, mas em situacões de poder. É esse o caso dos
monopólios, por exemplo, que reduzem a eficiência da economia como um
todo. Ao anular a concorrência, um determinado grupo impõe seu preço,
sua prática de negócios, se vale de mecanismos tributários para aumentar
sua riqueza.
É um mito essa ideia de que toda riqueza é produto de talento e
trabalho duro. Há fortunas que são, sim resultado de um esforço legítimo
e talentos empresariais. Mas há também herdeiros que não fazem bom uso
do que receberam, multimilionários de mentalidade rentista, riquezas
montadas a partir de privilégios e práticas ilegítimas. A riqueza
extrema também pode ser nefasta para os negócios, para a democracia e
para o próprio capitalismo. Ricos brasileiros têm quarta maior fortuna
do mundo em paraísos fiscais
O Brasil é um dos poucos países em que a desigualdade de renda teria diminuído nos últimos anos. Estamos no caminho certo?
Estamos no caminho correto das políticas públicas para redução da
pobreza, mas as distâncias entre os ricos e os demais ainda são imensas.
Há muito a fazer no tema da concentração de renda. O problema é que
quem está no topo da pirâmide quer manter seus privilégios. No Brasil, o
pobre paga proporcionalmente mais imposto, por exemplo. Não há impostos
sobre heranças e doações, como em muitos países desenvolvidos. Também
não há imposto sobre dividendos e rendimentos do capital. Quem ganha
milhões com dividendos não paga nada, enquanto um assalariado a partir
de dois mil, três mil reais já paga imposto de renda. Precisamos de uma
reforma na área tributária, além de um combate mais firme a paraísos
fiscais.
Por que é importante combater a desigualdade? Não basta combater a pobreza?
Enquanto não avançarmos nessa área, não teremos uma sociedade mais
equilibrada, com mais qualidade de vida e no qual todos tenham boas
oportunidades de trabalho para desenvolver suas capacidades. Há estudos
que mostram que a violência está diretamente relacionada às distâncias
sociais, por exemplo. Além disso, a partir de determinado patamar, a
concentração de renda prejudica a eficiência de uma economia, tira
dinamismo do mercado interno. É melhor ter uma fortuna reinvestida na
produção, gerando emprego, do que imobilizada em uma mansão luxuosa ou
em contas no exterior.
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Fonte: IHU online, 11/11/2014
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