Renato Janine Ribeiro*
Já escrevi aqui sobre a corrupção, porém não gosto de me repetir, nem
de me limitar à indignação. Mas vale a pena, no curso das operações
Lava-Jato e Juízo Final, firmar alguns pontos fundamentais.
Primeiro: "república" é coisa pública, bem comum. A conduta mais
antirrepublicana que há é vulnerar, atacar, destruir o bem comum. Ou
seja, nada é mais inimigo da república do que a corrupção, que privatiza
ilegalmente o que pertence a todos. É um erro, que devemos à escola,
pensar que o contrário da república é a monarquia. Distinguir repúblicas
e monarquias é coisa do século XIX, quando estas últimas eram o que
hoje chamamos de ditaduras.
Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, quase todas as
monarquias são constitucionais. As monarquias escandinavas visam mais o
bem comum do que muitas "repúblicas" do resto do mundo. Devolvamos à
República seu sentido forte: há república quando se visa o bem comum.
Ser contra a república não é questão de opinião, de achar bonito um rei.
É crime, é praticar atos desviando de sua finalidade o viver em comum.
O corrupto não é ladrão:
ele mata e mutila vidas
Segundo: na América Latina nos acostumamos ao patrimonialismo, uma
das versões ibéricas do que hoje chamamos corrupção. Consiste em o
governante tratar a coisa pública como se fosse seu patrimônio privado.
Toda confusão do público e do privado, quando favorece o detentor do
poder político, vai dar em patrimonialismo. Por exemplo, se um
governante usa os carros oficiais para transportar familiares (a não ser
que haja razões claras, consensuadas, de segurança para tal). Nossos
governadores e presidente, que moram em palácios e não gastam nem com a
comida ou a roupa, dão exemplo disso. Mas este é só um detalhe.
Porque, terceiro: não é verdade que "somos todos corruptos". Não
somos, não. Estou convencido de que a grande maioria é honesta. Não
vamos desresponsabilizar os corruptos por sua corrupção dizendo que ela
pertence à "cultura brasileira". Nossa sociedade pode ser um tanto
leniente com isso, mas mesmo isso está mudando. Já comentei aqui a
modelo que contou à "revista Trip" que usava sua beleza para não levar
multas dos guardas. Falou isso num tom de flerte, mas mesmo assim os
leitores caíram matando. Nossa leniência diminuiu muito, e isso é ótimo.
Também temos mais informações sobre desvios de dinheiro, além de menos
tolerância por isso.
Quarto, talvez mais importante: não é verdade que todos os atos de
corrupção se equivalem. Sim, é errado agradar o policial ou o atendente,
mas montar um "clube" para furtar centenas de milhões de dólares da
Petrobras é coisa muito diferente. Não é apenas uma questão de tamanho. É
uma diferença de concepção. Os pequenos erros morais de cada dia não
estão na mesma lógica do assalto organizado aos cofres públicos.
Precisamos desenvolver este ponto. Suponho que a lógica seja a inversa:
não é porque vários corrompem policiais que uns pouquíssimos atacam o
erário público. Talvez seja porque esses pouquíssimos roubam tanto que
aqueles outros perdem a crença na honestidade, na decência. O que
inspira uma cultura ampliada de desistência do bem comum é o mau exemplo
dos poucos.
Mas, mais que isso, penso que um grande desafio à ética é: em que a
roubalheira dos grandes se distingue dos pecadilhos dos pequenos? Eu
mesmo, por enquanto, não tenho resposta completa, e lanço este desafio
aos colegas que também trabalham com a ética. Mas penso que precisamos
distinguir o furto do bem privado e o desvio do bem público. A ideia de
que o corrupto é "ladrão", tão pertinaz em nossa sociedade, se inspira
na sua comparação com quem furta indivíduos. Mas as vítimas do corrupto
não são individuais, são a sociedade inteira. Daí que, talvez, seja mais
correto pensar que eles não se limitam a furtar dinheiro (no caso,
público), mas - acima de tudo - impeçam o bom uso desse dinheiro, por
exemplo, em saúde, educação, outros serviços essenciais. Impedem que
doentes sejam salvos, em hospitais que não deixaram existir ou
funcionar. Impedem que crianças e adolescentes sejam educados, em
escolas que devido a eles não existem ou não funcionam. Seu crime é
contra a vida, que eles abreviam ou mutilam. Abreviada, a vida dos que
morrem antes da hora. Mutilada, a dos que vivem mal. Por que não
considerar assassinos os corruptos? Pelo menos, no nível simbólico.
Talvez por isso, faça sentido a reforma legal que, na esteira das
manifestações de 2013, tornou hediondo o crime de corrupção. Voltarei a
este tema no futuro, mas observo que o hediondo, propriamente dito, é
uma pessoa ver o sofrimento de outra e ser indiferente a ele, ou até
sentir prazer graças a ele. Isso é desumano. Isso é desumanidade. Mas
isso só acontece em alguns crimes presenciais - geralmente, crimes
cometidos por pobres. Ora, a corrupção é um crime não-presencial; mais
que isso: indireto, abstrato. O corrupto não vê a sua frente as crianças
desnutridas, as pessoas miseráveis porque privadas de educação, os
mortos de doenças curáveis que são vítimas da corrupção. Por isso, a
rigor, seu crime não é hediondo.
Mas ele mata mais, muito mais, que o pé de chinelo enlouquecido pela
falta de oportunidades e sobra de drogas. O corrupto provavelmente teria
pena de sua vítima se a visse, até porque ele não atira nem apunhala.
Ele não mata com seus atos, mas com sua omissão. É omitindo comida,
remédios e educação que ele chacina. Mas não será um sinal de nosso
desenvolvimento moral começarmos a chamar de hediondo também esse tipo
de atitude, em que a pessoa pode até ser caridosa no micro, mas - no
macro - destrói a república e mata ou mutila vidas?
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Foi diretor de avaliação da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
entre 2004 e 2008.Publicou diversos livros, com destaque para “Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo”, “A última razão dos reis”, “A Universidade e a Vida Atual”, “O Afeto autoritário – televisão, ética, democracia”, “A sociedade contra o social”, ganhador do Prêmio Jabuti de Ensaio em 2001, e “Politica – para não ser idiota”, em parceria com Mário Sérgio Cortella.
FONTE: Valor Econômico online, 24/11/2014
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