Manuel S. Fonsec*
Se
tivesse nascido hoje era checo. Nasceu Sigismund Schlomo Freud, filho
de Jacob Freud e da sua terceira mulher, Amalia. Quando ele nasceu, o
pai tinha 41 anos, a mãe 21, numa linha "boi velho, capim novo", que
talvez prenunciasse um dos fetichismos a que a criança, um dia,
dedicaria o seu deliciado e insidioso olhar.
Mas
vamos a factos. O pai era um comerciante de lanifícios. Ou seja, um dos
pares dos nossos industriais têxteis do Vale do Ave. Digo isto só para
que se veja que as crises do têxtil já vêm de longe. O menino Freud
nasceu em 1856. Vivia feliz nas livres montanhas de Freiberg, mas
estalou uma crise nos lanifícios que atirou a família para os secos
braços da pobreza, primeiro para a desolação de Leipzig e depois para
Viena, onde viveram no ghetto judeu. De apartamento pobre em apartamento
pobre, mudaram-se seis vezes em quinze anos.
Amalia,
a mãe, ucraniana de origem (desconfio que é uma das poucas informações
de que Putin não dispõe) teve uma exacta meia-dúzia filhos. Era uma
força da natureza, era sentimental e era linda. Amava Sigismund, o seu
primogénito, nele depositando as mais altas esperanças. Ele era o menino
dessa mamã que lhe chamava "o meu dourado Sigi". Coração de mãe nunca
se engana e o filho pagou-lhe com a mais alta moeda teórica, elegendo a
figura materna como o primordial objecto de desejo de qualquer
rapazinho. Um desejo que vai acompanhado da vontade de que um raio vindo
do céu mate o pai.
Ouçam-no:
"Quando se é o favorito da mamã, leva-se para a Vida um sentimento de
vitória, que nos dá uma segurança de sucesso que, na verdade, raramente
falha." E faça-se justiça a Freud, a única tentativa de matar o pai que
se lhe conhece foi a de, aos oito anos de idade, ter ido, com líquida
determinação, urinar em cima da cama paterna.
Bem
vistas as coisas, se não fossem as cíclicas crises do têxtil, será que
alguma vez teríamos tido o maravilhoso escândalo narrativo, um escândalo
para-shakespeariano, que são os escritos de Sigi, o mais dourado dos
meninos?
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* Escritor português. O meu maior medo é que a morte seja tudo às escuras sem se poder ler.
Pouco interessa deixar de ser humano, desde que não deixe de ser leitor.
Ler é do mais feliz que tenho. Até porque escrever é triste.
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/11/
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