Thomas Piketty fala inglês com um sotaque francês carregado. Bem
humorado, o tom de leveza contrasta com os assuntos que aborda hoje e
que estão bagunçando o mundo da macroeconomia, das finanças públicas, da
política e das ciências sociais.
O economista lançou em agosto de 2013 “O Capital no Século XXI”, que
começou a fazer barulho nos Estados Unidos em abril deste ano e agora
chega ao Brasil.
O livro aborda o aumento da concentração de renda em muitos países, o
que agrava a situação das desigualdades sociais. Piketty quer alertar,
com sua análise, sobre a possibilidade de formação de oligopólios
econômicos que existiam há 200 anos em nossos tempos, fortalecidos por
uma falta de taxação de grandes fortunas.
O DCM conversou com Piketty um dia depois de sua palestra na FEA-USP.
Falamos sobre impostos para os mais ricos, a simpatia do economista por
governos de esquerda, as falhas do estado de bem-estar social, as
impressões sobre a economia e a política brasileira e também sobre o
governo Dilma.
Você disse que Karl Marx é maior do que Jesus Cristo. Acha mesmo isso ou era brincadeira?
Eu disse isso (risos)? Acho que foi de brincadeira, para responder às
perguntas. Temos inúmeros economistas inspiradores, incluindo Marx. Mas
eu prefiro, sinceramente, não fazer um ranking deles.
Você disse que a última reforma tributária no Brasil foi em
1960. Nós, brasileiros, estamos muito lentos para cuidar de nossos
impostos contra a desigualdade social?
Disse que a última grande alteração no Imposto de Renda brasileiro
foi em 1960, mas ocorreram algumas mudanças tributárias desde então. Mas
é verdade que vocês precisam de uma reforma ampla nos impostos pelo
menos há 15 anos. Adaptações tributárias com taxas progressivas e
proporcionais podem ser boas para a realidade de hoje, de um novo
século.
Nos anos de Lula e Dilma, não foram realizadas mudanças neste
sentido. Eu acho que isso prossegue como uma mudança importante e
necessária ao Brasil. O sistema tributário brasileiro não é nada
progressista, possui muita taxação indireta que poderia se converter em
impostos diretos adequados às rendas. Vocês também têm uma taxação muito
pequena na tributação sobre heranças e propriedades. Para fazer isso,
uma reforma nos impostos é uma necessidade.
Qual é a sua opinião da economia sob os governos do PT?
Eu acho que o Partido dos Trabalhadores fez um ótimo governo do ponto
de vista social, mas poderia fazer mais. E sinceramente não entendo o
pessimismo econômico de algumas pessoas com mais um governo de Dilma.
Criticam os eleitores mais pobres por terem votado após receber
benefícios estatais. Eu acho justo votar em Dilma Rousseff por receber o
Bolsa Família e não vejo, sinceramente, nenhum problema nisso, assim
como outras pessoas preferem outros candidatos. Mas parece algo das
pessoas aqui de São Paulo, enquanto outras regiões, como o norte e o
nordeste, pensam de maneira diferente.
O que um segundo mandato de Dilma Rousseff pode fazer de diferente?
Pode fazer uma reforma tributária com impostos progressivos, taxando
os mais ricos. O governo também pode buscar uma transparência maior do
ponto de vista da renda e da distribuição de riqueza. É uma boa maneira
de responder à onda de críticas sobre corrupção e falta de informações.
Tenho uma simpatia pelo PT, mas ele pode trabalhar de uma maneira
melhor.
Existe um preconceito sobre os impostos para os mais ricos?
Os integrantes do chamado 1% do extrato social utilizam a grande mídia
para impor sua opinião internacionalmente?
Sim, isso existe e é um problema. Quando você tem uma porção de
desigualdades, eles [os ricos] utilizam sua influência através da mídia,
principalmente através dos veículos financiados de forma privada, que
são guiados pelo dinheiro, e isso se tornou grande sobretudo nos Estados
Unidos. No entanto, mesmo com isso, acredito que as forças democráticas
se tornaram mais fortes e é um fato que, dentro da história da
desigualdade, a taxação descrita pelo meu livro provocará um embate de
movimentos de massa pacíficos para o futuro.
Você tem mais simpatia por governos à esquerda?
Depende. Depende de qual tipo de esquerda e de qual tipo de direita.
Me dê um exemplo da França, sua terra natal.
Na França nós temos uma direita que está se tornando extrema, e está
ganhando espaço. Disso eu não gosto. O ex-presidente [Nicolas] Sarkozy
está muito próximo de [Marine] Le Pen e eles estão querendo prejudicar
os direitos de trabalhadores. Por outro lado, uma esquerda stalinista
não é interessante. Para mim não é uma guerra entre dois lados, porque
isso muda a cada país e a cada período de tempo.
Considerando a situação europeia, qual sua opinião sobre o
capitalismo da Escandinávia, com forte presença do governo e forte
investimento em educação? Isso pode inspirar o Brasil ou nós precisamos
de um modelo econômico próprio?
Acho que não é possível apenas pegar a Escandinávia e levar a um país
tão diferente quanto o Brasil. Há coisas a aprender com as nações
nórdicas, como Finlândia, Suécia e outras da mesma região. Se você
compara países europeus diferentes, os mais desenvolvidos e competitivos
possuem altas taxas de impostos. Suécia e Dinamarca possuem 50% da
renda de seus PIBs com coleta de impostos. Enquanto isso, os países mais
pobres da Europa, como Bulgária e Romênia têm apenas 20% do PIB
comprometido com tributos.
Quando as pessoas me falam que deveríamos ter impostos menores para
nos tornarmos mais ricos, penso que a Bulgária e a Romênia deveriam ser
mais ricas do que a Suécia. Os impostos podem ser bons se você
investí-los bem, no uso de serviços públicos eficientes e em
infraestrutura.
Há muito o que aprender com essa experiência dos escandinavos,
especialmente se você tem um governo eficiente. Um Estado maior é bom se
ele for efetivo. A França poderia aprender muito com isso, porque ainda
somos muito desorganizados em nossos gastos públicos. No entanto, a
Dinamarca e a Suécia possuem um modelo difícil de se adaptar em um
capitalismo financeiro global, pois se tratam de países menores. Se você
quer combater uma crise econômica mundial, não é suficiente utilizar
apenas o modelo escandinavo.
Governos federativos grandes como os Estados Unidos e o Brasil, com
milhões de pessoas, possuem um sistema financeiro e bancário mais
complexo, difícil de ser regulado como é na Dinamarca. Isso funciona
para 10 milhões de população, mas para 200 milhões de brasileiros o
trabalho é mais difícil.
Estamos tentando fazer isso na Zona do Euro, mas não obtivemos
resultados satisfatórios até o momento. Para conquistar o progresso,
precisamos criar mais organizações democráticas e representativas
transnacionalmente e de forma política. Como temos barreiras físicas e
linguísticas, existe um grande desafio à frente. Estamos tentando criar
novos modelos. E acho que todo mundo deveria estar criando novos
modelos.
Você acredita que economistas da esquerda ganharam força com a crise mundial de 2008?
Eu acho que é mais complicado do que isso. Em alguns aspectos, a
crise gerou questionamentos sobre a regulação do mercado financeiro, que
é um argumento de esquerda. Mas, em outros, o papel do governo foi
posto em dúvida pela direita na Europa com o aumento das dívidas
públicas. Foi de fato uma crise muito diferente de 1929, com efeitos
diferentes. Acredito que a reação dos governos em 2008 foi mais rápida,
porque no passado eles eram menores.
O Brasil, que tem uma força estatal maior, se saiu bem, comparado com
anos anteriores da chamada “Grande Depressão”. Mesmo assim, é mais
complicado regular o mercado hoje e isso não significa necessariamente
aumentar o tamanho do governo. É mais efetivo mudar o sistema de
taxação, reduzir os impostos para algumas pessoas e aumentar para outras
que possam pagá-los. A transparência governamental é fundamental no
processo, sem necessariamente aumentar a arrecadação. Por todos esses
motivos, hoje a situação é mais complexa.
É por essa situação complicada que existe uma grande crítica ao estado de bem-estar social europeu?
Sim, e num certo aspecto eu acho justo criticar o tamanho do governo
nos países europeus. Quando você tem cerca de 15% até 20% da receita do
PIB, você precisa se perguntar sobre como utilizar esses recursos de uma
maneira mais eficiente. Como eu posso reformar os impostos para
torná-lo simples e transparente? Isso é totalmente legitimo e pode ser
usado para melhorar o bem-estar social sem desmontá-lo.
O governo precisa se tornar funcional, sobretudo para servir bem à
sociedade. E a esquerda não precisa ser tão defensiva neste aspecto,
porque reformar o Estado não significa diminuí-lo. A esquerda europeia
tende a achar que as críticas querem acabar com o governo. Algumas
pessoas de fato querem se desfazer do Estado, mas a reforma dos impostos
pode ser adaptativa.
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Reportagem por Pedro Zambarda de Araujo
Fonte: Diário do Centro do Mundo , 29/11/2014
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