Tatiana Salem Levy*
Havia tempos, um livro não me fazia chorar tanto quanto "Things I
Don't Want To Know" (Coisas que não quero saber), de Deborah Levy. No
ano passado, eu tinha lido seu extraordinário romance "Swimming Home",
finalista do Man Booker Prize 2012, e sucumbido de tal forma à força de
sua escrita que não resisti quando soube que estaríamos no mesmo
festival literário na Inglaterra. Comprei dois livros seus e lhe pedi
para autografá-los.
Um deles indicava na capa o teor de seu conteúdo: uma resposta ao
ensaio "Por Que Escrevo", de George Orwell. Fui tomada por um pensamento
terrivelmente utilitarista: um texto teórico de uma autora que eu
admirava poderia render uma boa coluna. Um mês depois, de manhã bem
cedo, na sala de leitura de um hotel situado no topo de uma montanha,
esqueci completamente o motivo que me levara ao livro, repousei o lápis
na mesa ao meu lado e não parei de chorar nem quando os outros hóspedes
passaram por mim, em direção ao restaurante. Deviam se perguntar quem
era a louca que soluçava às 7 da manhã, de estômago vazio, num lugar tão
tranquilo. Não consegui sublinhar nem uma linha, anotar nem uma ideia.
Estava tão imersa na beleza do texto que nenhum pensamento prático me
vinha à mente.
No ensaio de 1946, Orwell lista quatro motivos que levam alguém a se
tornar escritor: 1. Egoísmo puro; 2. Entusiasmo estético; 3. Impulso
histórico; e 4. Propósito político. Na ordem inversa, Deborah Levy
responde a cada um desses motivos, não de forma organizada e objetiva,
mas segundo o que Orwell afirma antes de listá-los. Diz ele: "Não acho
que alguém possa avaliar os motivos de um escritor sem saber alguma
coisa da sua vida anterior. (...) antes que comece a escrever, ele já
terá adquirido uma atitude emocional da qual nunca conseguirá escapar
completamente. (...) se escapar de todas as suas influências iniciais,
terá matado seu impulso de escrever". Deborah não escapa. Por isso, não
poderia responder por que escreve se não retornasse à sua infância na
África do Sul - ou se a própria África não retornasse até ela.
Tudo começa numa escada rolante. Em várias escadas rolantes. Numa
primavera em que ela estava em guerra consigo mesma, e toda vez que era
levada escada acima lágrimas caíam sem nenhuma razão aparente. Decide,
então, se isolar em Maiorca, na mesma pensão familiar, barata e
sossegada, onde escreveu seu primeiro romance.
Enquanto narra a sua estada na ilha, como a noite em que, física e
emocionalmente perdida, sai com traje de banho no meio do frio e é
encontrada por Maria, a dona da pensão, Deborah deixa que a memória vá
ganhando forma. Revisita, por exemplo, um caderno de notas de 1988,
quando foi convidada para escrever sobre uma performance dirigida pela
atriz Zofia Kalinska, na Polônia. Percebe que, ao longo da vida, levou
em conta os conselhos dados por Zofia aos outros atores: "A forma nunca
deve ser maior do que o conteúdo, especialmente na Polônia. Isso tem a
ver com a nossa história: supressão, os alemães, os russos. Temos
vergonha, porque temos muita emoção". Zofia observa ainda que um ator
deve falar para fora, o que não significa falar alto, mas exprimir um
desejo. "Quando você está pronto para segurar esse desejo e
transformá-lo em linguagem, pode sussurrar, que a audiência vai
ouvi-lo."
É da sua incapacidade de falar alto, e da sua necessidade de se
expressar, que Deborah trata na segunda parte, "Impulso histórico". Num
jantar com um lojista chinês de Maiorca, ele lhe pergunta - apesar de
conhecer a resposta - se é escritora. Diante da longa hesitação, ele
inquere: por que os ingleses não sabem falar outra língua? Deborah
retruca que não é completamente inglesa e começa a contar de onde veio.
Então, somos levados para a África do Sul da primeira metade dos anos
60, em pleno apartheid.
Ela tem 5 anos e pela primeira vez vê a neve cair do céu. Com o pai,
vai até o jardim fazer um boneco. À noite, policiais batem à sua porta e
exigem que ele os acompanhe. Da janela, a criança vê o pai partindo com
"homens que torturam outros homens e às vezes tatuam suásticas em seus
punhos". Ela ouviu as conversas com a mãe e sabe disso. Ainda assim,
pergunta ao boneco de neve: o que vai acontecer? Maria, sua babá, cujo
nome verdadeiro é Zama, tenta consolá-la: "Se você não acredita no
apartheid, pode ser preso. Você tem que ser corajosa hoje e amanhã, como
outras crianças têm que ser corajosas, porque seus pais também foram
levados".
O mundo surge com sua violência extrema diante dos olhos da menina.
Deborah vê tudo, mas não pode falar sobre nada. Não pode dizer na escola
por que seu pai está na cadeia. Não pode revelar o verdadeiro nome de
Doreen, a filha de Maria, com quem costuma brincar, porque na África do
Sul os negros recebem nomes ocidentais, como os escravos outrora
recebiam, para facilitar a vida dos brancos que chamam por eles.
Tampouco mencionar que Doreen, ou Thandiwe, vive em sua casa, pois os
negros não podem viver com os brancos. Nem que seus pais conhecem Nelson
Mandela. Não pode dizer que é judia ou será perseguida pela professora.
São tantas as coisas sobre as quais não se pode falar na África do Sul
dos anos 60 que a menina emudece.
Dois anos depois, o pai ainda não voltou. Na escola, ninguém a
compreende, pois ela fala baixo demais, tem que repetir várias vezes as
mesmas palavras. É chamada à diretoria por não obedecer às ordens da
professora, e sua mãe acaba por enviá-la a Durban, para uma temporada
com a madrinha, Dory. Aqui, só aumentam as violências indizíveis.
Deborah não pode contar aos pais que os padrinhos possuem armas para se
proteger de uma possível invasão de ladrões negros nem dizer aos
padrinhos que sua filha Melissa, uma suposta Barbie de carne e osso, a
levou para conhecer o namorado indiano no subúrbio. Melissa, que na
altura tinha 17 anos, termina por se tornar o modelo da menina que,
quando crescesse, queria fumar cigarros e estudar taquigrafia que nem
ela. Mas por ora devia aprender a falar alto. "Fala mais alto", Melissa
insiste.
À medida que as proibições de falar aumentam, a menina se cala. E, à
medida que se cala, vê crescer dentro de si a necessidade de se
expressar. Todos, inclusive o pai, numa carta, dizem para ela falar alto
o que atravessa a sua mente. Ela prefere escrever. No caderno, surgem
as coisas que ela não queria saber: o pai desapareceu, Thandiwe chorou
no banho, os dedos de Joseph foram cortados, Mr. Sinclair bateu em suas
pernas. Muitos anos vão se passar até a menina publicar um texto sobre
esses episódios. Quando isso acontecer, a força inicial ainda vai estar
lá. A mesma força que a inundava nos quatro anos em que esperou pelo
pai; a mesma potência de vida diante dos fatos brutais que teimavam em
esmagá-la; a mesma vontade de viver, o mesmo encantamento com o mundo e o
desejo de agarrá-lo.
Nesse relato pessoal, Deborah narra como, ainda criança, absorvia os
acontecimentos, vivia as dores em silêncio. No fundo, ela parecia saber
que, por mais que demorasse, em algum momento conseguiria falar. Seu
texto me fez pensar em "O Retorno", da portuguesa Dulce Maria Cardoso,
narrado a partir do ponto de vista de um rapaz que vê o pai ser levado
na Angola recém-independente. O romance é a espera e a dúvida acerca do
regresso desse pai, enquanto o próprio narrador tem que "voltar" para a
metrópole da qual faz parte sem nunca ter estado nela. Essas duas
histórias revelam uma enorme habilidade em mostrar de que forma as
crianças e os adolescentes vivem momentos tão dramáticos, construindo
uma espécie de vida à parte.
O que me emocionou no livro de Deborah Levy foi ver a força pulsando
na menina, depois na adolescente que, imitando Sartre e Simone de
Beauvoir, ia fumar e escrever num café, alguns anos após ter trocado a
África pela Inglaterra. Nisso residia seu egoísmo puro, em querer
esquecer o passado e se tornar inglesa, parecer mais esperta e triste do
que de fato era. Por fim, a mesma força na escritora que, para conjugar
os quatro elementos mencionados por Orwell, teve que aprender a "falar
para fora, falar um pouco mais alto, depois mais alto e, então, falar
apenas com a minha própria voz, que não é nada alta". Deborah aborda
questões profundamente políticas e históricas pela margem, pelos cantos.
Por isso mesmo, consegue ser tão contundente. Sem fazer alardes, fala
das violências que a atormentam. Da necessidade de ultrapassar as
funções sociais impostas às mulheres e continuar escrevendo.
Tenho pena que esse livro ainda não esteja disponível no Brasil.
Enquanto isso, fica a dica: "Nadando de Volta Para Casa", publicado
recentemente pela Rocco. Era esse o romance que ela escrevia em Maiorca,
enquanto se perguntava: "O que fazemos com o conhecimento com o qual
não suportamos viver? O que fazemos com as coisas que não queremos
saber?" As coisas que ela não quer saber estão lá. Transformadas, claro.
Pronunciadas numa voz muito baixa, mas muito nítida.
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora.
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 07/11/2014
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