Luísa Alemndra*
Como é que
este texto, onde se articula um diálogo amoroso entre um homem e uma
mulher, se presta à articulação de um diálogo entre Deus e o ser
humano?
…No âmago da sabedoria e da poesia bíblica, sussurrada em
diálogos e monólogos, somos convidados a escutar os sons do sonho e da
realidade, onde o amor de um homem e de uma mulher se dizem sob a forma
de uma parábola poética
que se oferece à nossa perspicácia. De facto, as Escrituras estão
atravessadas por diálogos e monólogos. No entanto, são sempre diálogos
situados no seio de uma narrativa englobante, onde aqui e ali emerge um
narrador que preside à narração. Um exemplo, relevante neste âmbito
sapiencial, é o caso do Livro de Job, onde todos entramos pela mão de um
narrador que nos diz: «Vivia na terra de Uz um homem chamado Job…» (Jb
1,1). Não é este o caso do Cântico dos Cânticos, onde o diálogo não
aparece introduzido ou cadenciado por um narrador. Ninguém nos diz:
«Ele disse…» ou «ela respondeu…». Ninguém nos informa quando ou mesmo
se essas palavras foram pronunciadas. Nós somos conduzidos na leitura
sem mediação alguma, e uma vez ultrapassado o limiar do título
encontramo-nos expostos a palavras vivas, que não podemos neutralizar,
dizendo que pertencem a esta ou àquela personagem da história bíblica…
A palavra, mas também a atração que impele os interlocutores do
Cântico dos Cânticos um para o outro, é igualmente determinante para a
diferença que sela o seu diálogo. A sua união realiza-se a um nível
poético, nas metáforas que eles inventam um para o outro e um sobre o
outro. Não estamos no mesmo nível de discurso, em que se situa Adão
quando oferece um nome aos animais mudos (cf. Gn 2,20). O Adão e a Eva
do Cântico dos Cânticos dão a si mesmos nomes de animais. Ele diz: «A
uma égua entre os carros do Faraó eu te comparo, ó minha amiga» (Ct
1,9); «Minha pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos,
deixa-me ver o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz. Pois a tua voz é
doce e o teu rosto, encantador» (Ct 2,14). Ela responde: «O meu amado é
semelhante a um gamo ou a um filhote de gazela. Ei-lo que espera, por
detrás do nosso muro, olhando pelas janelas, espreitando pelas
frinchas» (Ct 2,9). Aqui a linguagem constrói-se num face a face, vital
no diálogo amoroso.
Na simetria deste diálogo, cada um se recebe da palavra do outro.
Cada um é criador e pessoa, sem uma qualquer vantagem ou supremacia
sobre aquele diante de quem está. Neste diálogo, não há lugar para
dominação ou subordinação, nem qualquer estereótipo sobre um ou o outro
sexo. Este diálogo amoroso emerge como um santuário de liberdade, onde
os que se amam se expressam através de metáforas vivas e figuras
inéditas. Amam-se numa atmosfera de liberdade e de igualdade, de um
face ao outro, de um para o outro, num amor onde o carnal é espiritual e
o espiritual é carnal, deixando à visibilidade das palavras a
possibilidade de ser porta que nos aclara a invisibilidade de um amor
que sustém e impele.
Estas palavras fazem com que este livro, normalmente fora do
centro material da nossa atenção, constitua um extraordinário centro
simbólico, onde o enigma que se propõe coincide com o enigma de toda a
Escritura. O diálogo amoroso do Cântico é na verdade o de um homem e de
uma mulher, espelho do que nós somos. Porém, no drama e na felicidade
humana de uma existência dialogada, este diálogo propõe-se, também, como o espelho de toda a Escritura; palavra e existência dialogada entre Deus e o ser humano.
Num diálogo que une a diferença entre um «tu» e um «eu», masculino e
feminino, o Cântico dos Cânticos articula as palavras de uma aliança e de um amor transversal e fundador de toda a Escritura.
Por isso, a pergunta: mesmo que o Cântico dos Cânticos nos remeta, apenas, para a realidade de um profundo amor humano, quem ama como se ama no Cântico dos Cânticos? Ninguém! Somos tentados a responder! Ninguém, senão o Deus da aliança; ninguém senão o amor que precede todos os amores. Percebemos, então, que o
amor humano cantado nas palavras do Cântico dos Cânticos transporta no
seu âmago a linguagem de uma aliança e do amor que redime e precede
todos os amores. Nesta compreensão, a linguagem literal do amor
humano adensa-se e plenifica-se, tornando-se síntese do humano e do
divino. A mesma síntese que em Cristo une a humanidade e a divindade,
revelando, simultaneamente, o Deus e o ser humano. Este entrelaçamento
de amores (divino e humano) é um dado intrínseco e transversal a toda a
Revelação Bíblica.
Nesta Revelação, o Livro do Cântico dos Cânticos encontra o seu
lugar ímpar e distinto, porque nos canta um amor entre o homem e a
mulher, capaz de evocar simultaneamente o amor e relação entre Deus e
Israel, Cristo e a Igreja. Arrebatados pela polifonia do humano e
divino do Cântico, somos levados a dizer como Paulo: é grande este mistério
(Ef 5,32). É insondável o plano de Deus sobre a existência humana e o
amor com que ele cobre toda a humanidade. É misterioso este amor que
precede todos os amores. O amor que salva está perto do amor que é
salvo; proximidade que não permite colocar-se um face ao outro, ou um
contra o outro, porque que ambos – amor divino e humano – existem para
ecoar conjuntamente.
… É verdade, que nós, os leitores modernos, somos mais sensíveis
hoje a uma dimensão antropológica, minimizada pelas primeiras
interpretações alegóricas do judaísmo e cristianismo. Parecemos mais
aptos a entender que não existe uma negligência do divino só porque nos
detemos no humano da Palavra. Aceitamos, efetivamente, que as palavras
humanas do Cântico constituam um lugar teológico. Porém, nem sempre
estamos conscientes de que o modo como lemos os cantos, de amor
maravilhado do amado e da amada, é determinante no modo como percebemos
a unidade e o poder de um outro amor que sustem o mundo e conduz a história: o amor capaz de atravessar e superar as sombras de todas as infidelidades e fragilidades humanas.
Por isso, pode dizer-se, sem receio, que sem a experiência que o leitor crente tem do amor de Deus
é impossível a inteligência plena do poema do Cântico dos Cânticos.
Porque só o amor entende o amor. Em Jâmnia, no final do séc. I, Rabbi
Aqiba, uma grande figura do judaísmo farisaico, conhecia este amor.
Por isso, no meio de uma acesa disputa judaica sobre a sacralidade do
Livro do Cântico dos Cânticos, ele ergueu um testemunho que o tempo
nunca apagará: «Que
jamais alguém, em Israel, conteste e diga que o Cântico dos Cânticos
mancha as mãos. Porque o mundo inteiro não é digno do dia em que o
Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Na verdade, todas as Escrituras
são santas, mas o Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos».
--------------------------------* Luísa Alemndra
Biblista
Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
5.ª Jornada de Teologia Prática, Lisboa, 14.11.2014 (excertos)
Fonte: http://www.snpcultura.org
Publicado em 16.11.2014
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