O dramaturgo romeno Matéi Visniec
Na Bahia, dramaturgo romeno compara anos de regime comunista, quando era
fácil identificar o comunismo, com a sociedade de consumo atual
"No país onde nasci, antes do fim do comunismo, era muito difícil conseguir fazer com que nossa palavra circulasse. Percebi ali que a palavra é uma forma de resistência, de se colocar contra a ditadura. A poesia era sempre mais forte que o poder. E, em um país onde não há liberdade, a cultura é um oxigênio social".
Cansado da censura, em 1987 Visniec decidiu viver na França. A ideia que tinha de liberdade em países democráticos, no entanto, foi frustrada pelo estilo de vida capitalista que vigorava no país da Europa ocidental. "Entendi que nos grandes países democráticos existem ouras formas de ditadura, e precisamos resistir também a outras formas de lavagem cerebral", contou o autor cujos textos trazem figuras famosas como Chekhov, Stalin e Godot, personagem de Samuel Becket. "A minha impressão é que o meu papel não mudou, seja no totalitarismo da Romênia e também no totalitarismo do consumo."
O autor, que dividiu a mesa com o diretor teatral Marcio Meirelles, sob mediação de Gil Vicente Tavares, agradeceu à sua editora no Brasil (É Realizações) por ter traduzido vinte peças suas. "Isso é uma forma de dizer que existe uma comunidade internacional da resistência, com pessoas que fazem circular a cultura e constroem pontes através dela. Graças a isso tenho hoje muitas peças presentes nos palcos do Brasil", disse sobre História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais e Espelho para Cegos, inspirada em Teatro Decomposto e montada por Meirelles. "Quando o li foi como se eu visse meu pensamento fora de mim. Com alguém falando muito melhor aquilo que penso em palavras", afirmou Meirelles.
"Mas, nas grandes sociedades de
consumo,
às vezes não podemos ver onde está o mal.
Na época de Stalin,
era muito fácil criticar
e identificar o mal. Mas como fazer isso hoje?
Com a manipulação pela imagem, a indústria
da televisão? Porque é muito
mais fácil ter
uma tela sem ter uma civilização por trás"
Ao longo de fala de duas horas, o autor lembrou episódios de sua resistência através dos anos. No mais longínquo deles, Visniec tinha 10 anos e se preparava para uma festa nacional de homenagem a Ceausescu. "Os alunos tinham obrigação de cantar poesias para glorificar o ditador. Eu comecei a cantar meu texto e depois eu tive um branco, esqueci o poema. Aquilo foi muito grave. Havia mais de mil pessoas esperando, e eu tive um bloqueio", lembrou. "Aquilo, de certa maneira, foi uma forma de resistência. Eu não queria glorificar o presidente."
Além de recordar o momento em que decidiu ser autor e não ator – "Entendi naquele momento que não queria mais subir no palco" -, ele comparou as formas de "resistência cultural" quando vivia na Romênia e, depois, na França. "Quando era jovem e escritor na Romênia, era muito fácil porque o mal era visível, sabíamos o que tínhamos de criticar, os símbolos do regime totalitário estavam presentes: o presidente, o partido, a polícia política", disse. "Mas, nas grandes sociedades de consumo, às vezes não podemos ver onde está o mal. Na época de Stalin, era muito fácil criticar e identificar o mal. Mas como fazer isso hoje? Com a manipulação pela imagem, a indústria da televisão? Porque é muito mais fácil ter uma tela sem ter uma civilização por trás".
A menção à televisão retomou uma vivência que o autor teve na manhã de sexta-feira, 31. Em um passeio turístico pela cidade baiana, ele viu "paisagens maravilhosas, praças, igrejas e bairros mais pobres". Perguntou se dentro dessas casas as pessoas pobres têm uma televisão. Recebeu um "sim". "Então, pensei: estamos construindo o mundo, com milhões de pobres em casinhas minúsculas, mas todos com uma TV. Essa droga, a invenção do século, é uma forma de manipulação incrível. A televisão deveria chegar a uma casa depois da prosperidade, da água quente".
Além de dramaturgo, Visniec é também jornalista. Longe de pensar que um ofício se opõe ao outro, ele defende as duas correntes como forma de sobrevivência. "Eu sempre vi a literatura como maneira de conhecer o mundo e me conhecer. Os jornais nunca vão poder dar respostas interessantes. A literatura vai ajudar a descobrir o homem em sua complexidade, com suas contradições. O que a literatura faz, ninguém pode fazer", disse. "Mas o autor em mim tenta consertar talvez o jornalista que existe dentro de mim. Mesmo nas peças em que falo de guerra e fome humana, há esperança".
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Reportagem por Marsílea Gombata — publicado 02/11/2014
* A repórter viajou a convite da organização da Flica.
Fonte: Revista CC 02/11/2014
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