A influência de Gianni Vattimo (foto)
chega de um lado e do outro do Atlântico. O pensamento deste filósofo
italiano, uma vez definido como gay, católico e comunista, continua
oferecendo chaves para entender a realidade contemporânea. Aos 78 anos e
com um sentido de humor intacto, Vattimo conversou com o jornal Página/12 sobre o Papa Francisco e a Igreja Católica,
o fortalecimento do bloco de países progressistas na América do Sul e a
crise de representatividade na Europa. “A política não existe mais,
apenas a administração em nome de leis econômicas. Todo este esforço da
ex-erquerda em tornar-se cada vez mais centro e direita não funciona. A
economia não funciona. Há um crescimento do desemprego e da dívida”,
explicou em referência à crise na Itália e em outros países europeus.
Segundo Vattimo, a recessão, que atinge principalmente os países do Mediterrâneo, colocou em evidência as desigualdades no interior da União Europeia (UE). “O que se vê neste momento na Europa meridional – Itália, Espanha, Grécia, Portugal
– é a redução da região a um território colonial, onde se investe muito
capital estrangeiro, não para o desenvolvimento local, mas, sim, para
extrair essa receita. Desde o auge da globalização, na Itália
tivemos um aumento terrível do desemprego e uma desvalorização dos
bens, prontos para ser comprados por muito pouco dinheiro por chineses e
norte-americanos”, afirmou o autor de El pensamiento débil, em visita a Argentina para uma série de conferências organizada pela Associação de Docentes da Universidade de Buenos Aires (Aduba) e a Federação de Docentes das Universidades Nacionais (Fedun).
“Não há inflação porque não existe dinheiro circulante. É uma
situação de estancamento, onde não há desenvolvimento da produção, nem
aumento de salários. Consome-se cada vez menos no interior do país.
Produzimos para os países que nos exploram”, acrescentou. De acordo com Vattimo, o bloco comunitário se tornou um instrumento funcional para determinados centros de poder e à hegemonia de Berlim. “A própria estrutura da UE,
que era uma grande ideia, inclusive eu fui um europeísta convencido,
revelou-se como tão bem pensada que não pode ser modificada de nenhuma
maneira. Quando se diz que a Itália ameaça sair da UE é uma bobagem. Seria a ruína total. A UE é um apêndice do Tratado do Atlântico Norte,
uma estrutura de controle muito forte. Talvez se possa mudar um pouco a
política econômica, mas tudo depende de um equilíbrio mundial. Por
isso, a luta da Argentina contra os fundos abutres faz muito sentido
para nós, porque se trata de nos libertar da dependência do dinheiro e
das finanças”, apontou Vattimo, que destacou que é muito mais realista
propiciar microrrevoluções do sistema do que esperar uma revolução
radical de alcance global.
A partir de sua perspectiva, o rigor aplicado pela UE
está criando sua própria armadilha. E, enquanto isso, as políticas de
austeridade cada vez mais distanciam os cidadãos de seus dirigentes. “A Alemanha
terá uma crise, já está reduzindo a taxa de crescimento. Então, é
necessário tornar menos rígidos os limites financeiros, que basicamente
não servem para ninguém, apenas para o equilíbrio interior da UE.
A única saída para Europa é uma saída keynesiana, de muito emprego
público e muitos investimentos. A Europa é uma burocracia de
intermediação entre os interesses dos bancos e a disciplina dos Estados.
A UE funciona um pouco como os sindicatos dos Estados
Unidos, que são organizações que garantem a disciplina do trabalho para
os empresários”, avaliou o intelectual.
Por outro lado, qualificou como completamente oposta a situação na América Latina,
onde vem se configurando um modelo alternativo de entender e exercer a
política. “A nós, da Europa, o que ocorre na região nos parece ser o
futuro. Hoje não há uma referência de oposição à ordem capitalista no
mundo. Inclusive, com todos os problemas de transformações, estes
países, sim, são referências. É difícil imaginar um projeto totalmente
comunista, por exemplo. Porém, a América Latina está
caminhando em uma utopia positiva frente à miséria da política europeia e
norte-americana. A Europa está muito rígida ao redor de uma política
atlântica, norte-americana, de banqueiros. Se há no mundo um bloco
diferente, que equilibra este poder desproporcional dos bancos, é
América Latina”, afirmou Vattimo.
“Há uma América Latina que se unifica e se torna um
bloco de países progressistas que pressiona para impedir guerras, por
exemplo. São movimentos distantes, mas que permitem ver uma mudança de
clima. Nos anos 1950, nós, esquerdistas, cantávamos ‘irá chegar o grande
bigode’, que era Stalin. Ninguém realmente pensava em
uma Itália estalinista, mas havia um sonho de alternativa. Isto é muito
importante para a vida interior dos Estados, porque as pessoas
frequentam cada vez menos as urnas. Chávez, Castro, Lula
são exemplos de um mundo que pode ser diferente. As pessoas podem se
animar um pouco em fazer política. O clima democrático europeu quase não
existe mais. As pessoas não acreditam na classe política, nem nas
mudanças”, lamentou.
Vattimo acusou os mercados por pressionar os
governos europeus e sustentou que na Itália há uma democracia em termos
formais. “Há uma forma de terrorismo financeiro que no caso da Itália
consiste em impor um limite para o déficit de 3%, que é preciso cumprir
porque, caso contrário, dizem que não teremos dinheiro para pagar os
empregados públicos no próximo mês. Nos últimos anos, houve uma campanha
de terror financeiro: se não pagássemos a dívida, íamos entrar em
default. Na Grécia, as pessoas já não sabem como fazer para sobreviver.
Se não mudar a política econômica, irá ocorrer um aumento dos conflitos
sociais. A saída para tudo isto parece ser o fascismo. Temos apenas
formalmente um governo democrático. É formado pelo velho Partido Comunista, que não existe mais, e pela democracia cristã, inclusive apoiado por Berlusconi”, advertiu.
Por último, analisou o impacto de Francisco na Igreja Católica e o comparou a João Paulo I, um dos papas mais reformistas. “O próprio Sínodo
é uma novidade no sentido de que foi convocado para indagar sobre as
ideias efetivas que circulam no mundo católico. Continua sem ser
admitido o casamento gay, mas há muitas coisas que começam a mudar. Por
exemplo, o problema da comunhão e os divorciados, que implica em uma
concepção menos literal e material do sacramento. Há uma maneira de
pensar que é diferente. Por outro lado, há um compromisso político e
cultural da parte do Papa. Ele não é tão amigo dos poderes. Continuo pensando que tem boas intenções, como demonstra com o Banco Vaticano. A razão pela qual foi assassinado João Paulo I, que é algo muito provável, é que começou a falar de Deus como uma mãe e a investigar o Banco Vaticano”, ressaltou o autor de No ser Dios, sua autobiografia, editada em 2006, em que aborda abertamente a questão gay.
Sobre este tema, Vattimo lembrou que a Igreja, no momento, encontra-se prisioneira dos próprios tabus que alimentou para consolidar seu poder. “O fato de que o Papa ou o Sínodo possam ver positivamente o amor homossexual é escandaloso e importante, porque a Igreja
sempre teve como seu ponto forte a questão da castidade. Isso não é um
problema moral ou de natureza, é um problema de poder”, esclareceu.
“Historicamente, o tabu sexual, da família e a fidelidade funcionou para a Igreja como um suporte de ordem civil. Jesus obviamente nunca se ocupou do matrimônio, nem gay, nem heterossexual. Desde seu nascimento, a Igreja
teve que assumir responsabilidades civis. Porém, também herdou tabus
anti-gregos. Os gregos eram bastante tolerantes com a homossexualidade e
a bissexualidade. A Igreja é a Igreja romana, a favor do direito romano e continua defendendo essa tradição. E encontra-se – concluiu Vattimo – prisioneira desta situação”.
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A reportagem-entrevista é de Patricio Porta, publicada por Página/12, 04-11-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU onlinbe, 06/11/2014
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