quinta-feira, 6 de novembro de 2014

“A única saída é keynesiana”, afirma Gianni Vattimo

A influência de Gianni Vattimo (foto) chega de um lado e do outro do Atlântico. O pensamento deste filósofo italiano, uma vez definido como gay, católico e comunista, continua oferecendo chaves para entender a realidade contemporânea. Aos 78 anos e com um sentido de humor intacto, Vattimo conversou com o jornal Página/12 sobre o Papa Francisco e a Igreja Católica, o fortalecimento do bloco de países progressistas na América do Sul e a crise de representatividade na Europa. “A política não existe mais, apenas a administração em nome de leis econômicas. Todo este esforço da ex-erquerda em tornar-se cada vez mais centro e direita não funciona. A economia não funciona. Há um crescimento do desemprego e da dívida”, explicou em referência à crise na Itália e em outros países europeus.





Segundo Vattimo, a recessão, que atinge principalmente os países do Mediterrâneo, colocou em evidência as desigualdades no interior da União Europeia (UE). “O que se vê neste momento na Europa meridional – Itália, Espanha, Grécia, Portugal – é a redução da região a um território colonial, onde se investe muito capital estrangeiro, não para o desenvolvimento local, mas, sim, para extrair essa receita. Desde o auge da globalização, na Itália tivemos um aumento terrível do desemprego e uma desvalorização dos bens, prontos para ser comprados por muito pouco dinheiro por chineses e norte-americanos”, afirmou o autor de El pensamiento débil, em visita a Argentina para uma série de conferências organizada pela Associação de Docentes da Universidade de Buenos Aires (Aduba) e a Federação de Docentes das Universidades Nacionais (Fedun).

“Não há inflação porque não existe dinheiro circulante. É uma situação de estancamento, onde não há desenvolvimento da produção, nem aumento de salários. Consome-se cada vez menos no interior do país. Produzimos para os países que nos exploram”, acrescentou. De acordo com Vattimo, o bloco comunitário se tornou um instrumento funcional para determinados centros de poder e à hegemonia de Berlim. “A própria estrutura da UE, que era uma grande ideia, inclusive eu fui um europeísta convencido, revelou-se como tão bem pensada que não pode ser modificada de nenhuma maneira. Quando se diz que a Itália ameaça sair da UE é uma bobagem. Seria a ruína total. A UE é um apêndice do Tratado do Atlântico Norte, uma estrutura de controle muito forte. Talvez se possa mudar um pouco a política econômica, mas tudo depende de um equilíbrio mundial. Por isso, a luta da Argentina contra os fundos abutres faz muito sentido para nós, porque se trata de nos libertar da dependência do dinheiro e das finanças”, apontou Vattimo, que destacou que é muito mais realista propiciar microrrevoluções do sistema do que esperar uma revolução radical de alcance global.

A partir de sua perspectiva, o rigor aplicado pela UE está criando sua própria armadilha. E, enquanto isso, as políticas de austeridade cada vez mais distanciam os cidadãos de seus dirigentes. “A Alemanha terá uma crise, já está reduzindo a taxa de crescimento. Então, é necessário tornar menos rígidos os limites financeiros, que basicamente não servem para ninguém, apenas para o equilíbrio interior da UE. A única saída para Europa é uma saída keynesiana, de muito emprego público e muitos investimentos. A Europa é uma burocracia de intermediação entre os interesses dos bancos e a disciplina dos Estados. A UE funciona um pouco como os sindicatos dos Estados Unidos, que são organizações que garantem a disciplina do trabalho para os empresários”, avaliou o intelectual.

Por outro lado, qualificou como completamente oposta a situação na América Latina, onde vem se configurando um modelo alternativo de entender e exercer a política. “A nós, da Europa, o que ocorre na região nos parece ser o futuro. Hoje não há uma referência de oposição à ordem capitalista no mundo. Inclusive, com todos os problemas de transformações, estes países, sim, são referências. É difícil imaginar um projeto totalmente comunista, por exemplo. Porém, a América Latina está caminhando em uma utopia positiva frente à miséria da política europeia e norte-americana. A Europa está muito rígida ao redor de uma política atlântica, norte-americana, de banqueiros. Se há no mundo um bloco diferente, que equilibra este poder desproporcional dos bancos, é América Latina”, afirmou Vattimo.

“Há uma América Latina que se unifica e se torna um bloco de países progressistas que pressiona para impedir guerras, por exemplo. São movimentos distantes, mas que permitem ver uma mudança de clima. Nos anos 1950, nós, esquerdistas, cantávamos ‘irá chegar o grande bigode’, que era Stalin. Ninguém realmente pensava em uma Itália estalinista, mas havia um sonho de alternativa. Isto é muito importante para a vida interior dos Estados, porque as pessoas frequentam cada vez menos as urnas. Chávez, Castro, Lula são exemplos de um mundo que pode ser diferente. As pessoas podem se animar um pouco em fazer política. O clima democrático europeu quase não existe mais. As pessoas não acreditam na classe política, nem nas mudanças”, lamentou.

Vattimo acusou os mercados por pressionar os governos europeus e sustentou que na Itália há uma democracia em termos formais. “Há uma forma de terrorismo financeiro que no caso da Itália consiste em impor um limite para o déficit de 3%, que é preciso cumprir porque, caso contrário, dizem que não teremos dinheiro para pagar os empregados públicos no próximo mês. Nos últimos anos, houve uma campanha de terror financeiro: se não pagássemos a dívida, íamos entrar em default. Na Grécia, as pessoas já não sabem como fazer para sobreviver. Se não mudar a política econômica, irá ocorrer um aumento dos conflitos sociais. A saída para tudo isto parece ser o fascismo. Temos apenas formalmente um governo democrático. É formado pelo velho Partido Comunista, que não existe mais, e pela democracia cristã, inclusive apoiado por Berlusconi”, advertiu.

Por último, analisou o impacto de Francisco na Igreja Católica e o comparou a João Paulo I, um dos papas mais reformistas. “O próprio Sínodo é uma novidade no sentido de que foi convocado para indagar sobre as ideias efetivas que circulam no mundo católico. Continua sem ser admitido o casamento gay, mas há muitas coisas que começam a mudar. Por exemplo, o problema da comunhão e os divorciados, que implica em uma concepção menos literal e material do sacramento. Há uma maneira de pensar que é diferente. Por outro lado, há um compromisso político e cultural da parte do Papa. Ele não é tão amigo dos poderes. Continuo pensando que tem boas intenções, como demonstra com o Banco Vaticano. A razão pela qual foi assassinado João Paulo I, que é algo muito provável, é que começou a falar de Deus como uma mãe e a investigar o Banco Vaticano”, ressaltou o autor de No ser Dios, sua autobiografia, editada em 2006, em que aborda abertamente a questão gay.

Sobre este tema, Vattimo lembrou que a Igreja, no momento, encontra-se prisioneira dos próprios tabus que alimentou para consolidar seu poder. “O fato de que o Papa ou o Sínodo possam ver positivamente o amor homossexual é escandaloso e importante, porque a Igreja sempre teve como seu ponto forte a questão da castidade. Isso não é um problema moral ou de natureza, é um problema de poder”, esclareceu.

“Historicamente, o tabu sexual, da família e a fidelidade funcionou para a Igreja como um suporte de ordem civil. Jesus obviamente nunca se ocupou do matrimônio, nem gay, nem heterossexual. Desde seu nascimento, a Igreja teve que assumir responsabilidades civis. Porém, também herdou tabus anti-gregos. Os gregos eram bastante tolerantes com a homossexualidade e a bissexualidade. A Igreja é a Igreja romana, a favor do direito romano e continua defendendo essa tradição. E encontra-se – concluiu Vattimo – prisioneira desta situação”.
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A reportagem-entrevista é de Patricio Porta, publicada por Página/12, 04-11-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU onlinbe, 06/11/2014

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