Luisa Geisler*
Escritora analisa a escassa presença feminina em prêmios e antologias
e aponta machismo no meio literário
RIO
- Dois mil e quatorze foi o ano da hashtag #leiamulheres2014. Foi o ano em que
se discutiu uma antologia que listou 101 autores contemporâneos imperdíveis com
apenas 14 mulheres. Foi o primeiro ano em que o Prêmio São Paulo de Literatura
chancelou uma mulher na categoria Livro do Ano. Marina Colasanti também acaba
de ganhar o Jabuti de Melhor Livro de Ficção do Ano. Estamos em novembro, mas
ninguém vai problematizar a presença feminina na literatura na ceia de Natal.
Já dá para dizer que 2014 foi o ano das mulheres na literatura brasileira.
O
#leiamulheres2014 surgiu em janeiro. Quis tentar. A ideia era simples: eu
conseguia citar nomes de autores mais rápido que de autoras. Conhecia mais
obras escritas por homens. Não coloquei fogo em livro algum, não bani nada.
Priorizei a minoria da minha estante.
Algumas
pessoas perguntaram se eu não estaria “me limitando”. Eu respondia que já devo
ter passado um ano inteiro lendo 90% de autores homens. No entanto, a ideia de
ler apenas 90% de homens ao longo de um ano soava como “o normal”. Eu me identifico
como feminista, mas a intenção era mais geral: dar um passo rumo à diversidade
literária. Leituras têm que vir da maior variedade possível de experiências
humanas. E sair da zona de conforto não faz mal.
A
maioria dos meus interlocutores dizia não reparar no gênero de escritores e fim
de conversa. Não é engraçado que citem mais autores homens entre os favoritos?
Que ao “não olhar o nome de quem escreve”, escolhamos tantos homens?
O
site americano VIDA mantém porcentagens de gênero sobre resenhas em grandes
publicações literárias. Ao longo de 2012, apenas 22% dos livros resenhados no
“New York Review of Books”, 25% no “The Times Literary Supplement” e 23% no
“The Nation” eram livros escritos por autoras.
Então,
a Dublinense lançou a antologia “Por que ler os contemporâneos?”, na qual
resenho um homem (!). Questionou-se a presença de 14 mulheres entre 101 autores
“para entender o século”. A antologia reflete o que se resenha, o que se lê e o
que se discute. A antologia é machista porque o meio literário é machista. E
nada disso é consciente.
Aliás,
machismo dificilmente é consciente. Nunca é uma cúpula de homens rindo
maleficamente e planejando: “Vamos calar todas as mulheres por serem tão
inferiores!”
Claro
que, vá lá, mulheres sejam menos publicadas. No Brasil, 72% dos autores
publicados são homens, segundo a pesquisa de Regina Dalcastagné em “Literatura
brasileira contemporânea — Um território contestado”. Ainda assim, se o mero
fato de um grupo escrever garantisse representatividade, a antologia da
Dublinense teria o dobro de mulheres (28). A questão é que, como no caso do
site VIDA, a maioria das estatísticas pende para o lado masculino. As mulheres
escrevem tão mal assim?
Já
me disseram que eu “escrevo como um homem”, como um aplauso. Ouvi isso, com tom
de elogio sincero, um olhar de li-teu-livro-e-analisei-com-calma. Já ouvi: “não
gosto de livros escritos por mulheres, mas gostei desse” ou “não achei que
mulheres podiam escrever assim”. Elogios sinceros. Ninguém com uma mochila
cheia de tabelas e planos para mandar as mulheres de volta para a cozinha.
Meu
favorito é “você não escreve como as outras mulheres”. “Na verdade, eu escrevo
como mulher, sim. Você que é babaca mesmo”, é a resposta que tenho pronta.
Ana
Luis Escorel disse — ao ser a primeira mulher vencedora do Livro do Ano do
Prêmio São Paulo de Literatura — que o que importa é o texto. O contexto da
frase é um pouco diferente, mas tomo liberdades. Às vezes, o texto não é o
suficiente. Mulheres são menos lidas, menos resenhadas. Ia dizer menos
premiadas, mas a Marina Colasanti ganhou o Jabuti de Melhor Livro de Ficção do
Ano.
Porém,
não é a norma. Por exemplo, desde sua criação, o Prêmio Portugal Telecom
premiou mulheres em 2008 (Beatriz Bacher), 2011 (Marina Colasanti) e 2013
(Cíntia Moscovich). São três autoras para 31 autores vencedores.
As
causas são históricas, estruturais e estúpidas. E não importam. Importa que
existe desigualdade hoje. Se pudermos concordar que, sim, existe machismo no
meio literário (na vida, no universo), 2014 valeu a pena. Já diz o clichê que
aceitar é o primeiro passo. Não precisamos concordar com motivo(s) para saber
que a diferença existe. Existem lacunas ainda maiores em questões
raciais, de orientação sexual e de gênero, tantas outras e suas
interseccionalidades. Sobre essas, sou melhor ouvindo do que falando.
A
maioria das pessoas aceita que é injusto, mas não repensa hábitos. Como
leitores, talvez devêssemos assumir parte da responsabilidade. Em especial
porque a perda é grande.
Não
sugiro cotas. Sugiro ler mulheres, e só.
Não
um ato motivado por feminismo ou por uma hashtag de um ano. Por
consciência como leitor. Se uma pessoa come apenas carne, sabe-se que é um
consumo desequilibrado. Para mim, se tudo que se lê é escrito por um recorte da
população, é tão desequilibrado quanto. Talvez 2014 tenha sido o ano das
mulheres. Torço para que seja uma tendência rumo à igualdade, mais do que uma
exceção.
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Luisa
Geisler é autora do romance “Luzes de emergência se acenderão automaticamente”
(Alfaguara). Seu livro de estreia, “Contos de mentira” (Record) foi finalista
do Prêmio Jabuti em 2012
Fonte: Jornal o Globo online, 22/11/2014
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