Eliana Cardoso*
Há desassossego em cada pingo de chuva que cai em dois contos
notáveis: "Chuva" de Somerset Maugham e "Criação" de Don DeLillo. No
primeiro, uma epidemia de cólera obriga passageiros e tripulantes do
navio Sonoma a descer em Pago Pago. No segundo, reservas não confirmadas
e cancelamentos de voos detêm o herói na ilha antilhana onde ele se
encontra de férias. Cinquenta anos separam os dois contos. Muito
diferentes na forma e no conteúdo, ambos apresentam um retrato fidedigno
das ansiedades comuns à época em que foram escritos. E ambas as
histórias envolvem uma relação sexual ilegítima, que termina em tragédia
em "Chuva", mas fica pendente no fim de "Criação".
Originalmente intitulado "Sadie Thompson", "Chuva" é o conto mais
famoso de Somerset Maugham e faz parte de suas "Histórias das Ilhas dos
Mares do Sul". A sátira fina retrata a hipocrisia da moralidade
convencional com um fim devastador.
Maugham encontrou o material para "Chuva" numa viagem que fez com
Gerald Haxton, seu secretário e amante. Os dois navegaram até Pago Pago,
em Samoa, porto de abastecimento da Marinha americana nos anos 1920.
Entre os passageiros a bordo encontrava-se uma Miss Thompson, prostituta
de Honolulu, que fugira do Havaí após uma batida policial no
estabelecimento em que trabalhava.
Usando o sobrenome de Miss Thompson e dando-lhe o primeiro nome
Sadie, Maugham teceu a história que a envolve com dois casais, o Dr. e
Sra. Macphail e o reverendo e Sra. Davidson. Obrigados a quarentena em
Pago Pago, eles se alojam num hotel. A presença de Sadie Thompson se faz
notar pelo som de risos e música no seu quarto. Davidson se empenha em
reformar Sadie, enquanto a chuva, o calor e os mosquitos tornam a vida
na ilha intolerável.
O reverendo, em estado de êxtase espiritual, passa cada noite rezando
com Sadie depois que ela aceitou voltar para os Estados Unidos e
enfrentar a condenação por delito ali cometido. Na manhã em que Sadie
deveria embarcar para San Francisco, o Dr. Macphail, levado à praia,
onde um grupo de samoanos se reune em torno de um corpo, reconhece o
reverendo, que ainda segura a navalha com que cortou a própria garganta.
De volta do necrotério, os Macphails e a Sra. Davidson se surpreendem
ao ver Sadie como era antes da conversão se divertindo com um
marinheiro. Sadie cospe na direção da Sra. Davidson. Macphail zanga-se.
Quando ele pergunta a Sadie o que estava fazendo, ela o olha com
desprezo e, em tom de ódio desdenhoso, responde: "Vocês, os homens! Seus
porcos sujos, indecentes! Vocês são todos os mesmos, todos! Porcos!
Porcos!" O Dr. Macphail suspende a respiração ao entender o ocorrido.
Em "Chuva" - condenação amarga da intolerância religiosa - Pago Pago
representa uma realidade diferente e estranha para cada um dos
personagens. Maugham os equilibra com admirável precisão, uns contra os
outros, através de diálogos, que permitem diferentes pontos de vista. Os
Davidsons veem nos Mares do Sul um vasto caos pagão à espera de ser
colonizado e cristianizado. Para Sadie Thompson, as ilhas representam um
lugar onde recomeçar a vida. Macphail, um homem inteligente e modesto,
se admira com o mundo desconhecido das Ilhas Samoa. O narrador está
quase sempre próximo do ponto de vista de Macphail.
Das reações do Dr. Macphail depende a força da história. O ponto de
vista do médico consternado com a miséria e a doença de Pago Pago,
atormentado pela chuva incessante, controla a percepção do leitor da
interação entre Sadie e o reverendo Davidson. Sendo um agnóstico,
disposto a viver e a deixar viver, ele serve de contraponto ao
reverendo. E o leitor, como Macphail, ignora dicas do que está
acontecendo até o fim da história, quando ambos, à luz do suicídio de
Davidson, devem reinterpretar eventos passados. O uso magistral do ponto
de vista limitado garante o choque do fim surpreendente.
A surpresa no caso do fim de "Criação", o primeiro conto da coletânea
"Anjo Esmeralda" de Don DeLillo, ocorre - ao contrário do que se passa
no conto de Maugham - por causa da ausência de um desfecho. A
curiosidade ingênua do leitor (e depois?) ficará insatisfeita. O
narrador limpou a história do passado e do futuro, de qualquer contexto
psicológico e de qualquer consequência. Mas o narrador excepcional
mantém o leitor ligado até a última linha. E, finda a leitura, o conto
continua a ressoar dentro de sua cabeça.
Não escapa ao leitor atento a ironia do autor, que, tendo absoluto
controle da própria escrita e de seu efeito, fala das coisas fora da
esfera de influência de personagens e leitores. Um casal, no fim de um
cruzeiro nas Índias Ocidentais, não pode sair da ilha onde se encontra:
voos cancelados, reservas não confirmadas, uma economia em desarranjo.
Na primeira tentativa, voltam do aeroporto para o hotel na companhia de
Christa, sobre quem tecerão histórias mais tarde ao vê-la jantando
sozinha.
As idas e vindas ao aeroporto se repetem. Cada tentativa de deixar a
ilha termina com a volta do aeroporto para o hotel. O avião está cheio,
ou não vai partir, ou não chegou. A mulher mostra ansiedade em voltar
para casa, tendo reuniões, compromissos e a rotina de vida em geral. O
marido, mais ambivalente, narra os eventos com grande calma, ecoando o
acordo tácito do casal de que "o tom errado pode destruir uma paisagem".
A própria existência do lugar é de alguma forma dependente da linguagem
que eles usam para descrevê-lo.
Quando surge uma vaga, o marido se apressa em colocar sua mulher a
bordo e enviá-la para casa. Ele volta para o hotel e começa um caso
aparentemente inconsequente com Christa, ainda retida na ilha como ele.
Nada acontece a não ser o cigarro, o cognac e, o leitor assume, algum
sexo, de ação vagarosamente discreta.
A frustração, a suspensão do tempo e a sensualidade da paisagem
supostamente conspiram para que o episódio pareça inevitável. Ao mesmo
tempo, DeLillo instala a ansiedade e o desconforto na mente do leitor,
que pode reconhecer as persistentes inseguranças do passageiro moderno,
obrigado a aceitar a própria impotência, quando não pode deixar a ilha
tropical, cujo único aeroporto está lotado, dia após dia.
O protagonista-narrador, diante do desastre comum, é testemunha
confusa e desprendida, que, sem piscar, se presta ao relatório das
coisas incompreensíveis que ocorrem diante de seus olhos. De alguma
maneira, ele me lembra o narrador de "O Passageiro" de Kafka, em pé na
plataforma do bonde elétrico, inseguro em relação à sua posição no
mundo. E como o passageiro de Kafka, que descreve em minúcias à jovem
pronta a descer do bonde, o protagonista de DeLillo constata os prazeres
superficiais do novo, recitando as formas e cores do corpo de Christa.
"Cabelos e olhos e mãos. A neve fresca dos seios. [...] A voz era suave e
sutil. Os olhos eram tristes. A mão esquerda tremia às vezes."
Da transição desimpedida do normal ao ilícito deriva o leve
surrealismo de "Criação". Nada sabemos sobre as intenções do nosso
passageiro. Ele flutua no tempo e no espaço, e parece ignorar as
próprias motivações.
No centro da história está o desejo de ser temporariamente imerso em
algum tipo de utopia atemporal, estrangeira, pura e construída
artificialmente, "o sonho da Criação que brilha à beira da busca de cada
viajante sério". O protagonista se contenta em se entregar a essa
ilusão, sem saber se é por isso que se sente atraído pela lógica
sinistra do lugar.
A história, na superfície, é inconsequente. A clareza burilada das
descrições e a lucidez da prosa apenas insinuam as sombras que pairam
além da vista. Mas uma sensação de vulnerabilidade define o conto. O que
está em jogo é a erosão das fronteiras das quais depende a segurança e a
estabilidade dos indivíduos. E o leitor se pergunta o que conta como
confinamento e o que constitui a liberdade. E você, meu querido? Você
conhece a diferença?
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: eliana.anastasia@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 28/11/2014
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