Muita coisa precisou dar certo para a atriz e diretora
teatral Clarice Niskier existir: viagens, exílios, êxodos, migrações,
chuvas e tempestades... “Tinha que ser. Os pássaros migraram, os
elefantes na África, os tsunamis e nós estamos aqui. Você atravessou
corretamente a rua, um carro não me pegou, o avião pousou e estou aqui.
Se eu não levar em conta tudo isso, se isso não me trouxer entusiasmo,
então não tem mais nada”, diz ela, que compreendeu este pensamento com o
orador indiano Maharaji. Da mesma forma, muita coisa precisou acontecer
para a entrevista com Clarice ser possível, para a revista ser editada,
para a publicação estar em suas mãos, para você estar aí, lendo-a
agora.
Neste mês, a atriz, de 55 anos, estreia o monólogo A lista, escrito pela canadense Jennifer Tremblay. Pelo que tudo leva a crer, repetirá o enorme sucesso alcançado com o espetáculo A alma imoral, há oito anos em cartaz, baseado no livro de Nilton Bonder. Em um ato quase insano, devido ao desgaste emocional que as duas peças provocam, Clarice manterá os dois espetáculos em cartaz, ambos no teatro Eva Herz, em São Paulo. Enquanto A alma reflete sobre o certo e o errado, a moral e o imoral, A lista fala da indiferença, do egoísmo, ao mostrar a vida de uma mulher casada, dona de casa, mãe de três filhos, e moradora de um vilarejo no interior do Canadá. Com uma vida regida pela lista de tarefas que assumimos no dia a dia, a personagem se atormenta ao tentar entender se seria ela a culpada pela morte de sua vizinha.
Nada incomum, para quem conhece a artista, que ela tenha aceitado tamanha empreitada. Faz parte de sua vontade de levar adiante uma mensagem. Já era assim quando, aos 18 anos, esta carioca decidiu estudar Jornalismo com a utopia de mudar o mundo. Atuou na área, fez matérias de denúncia social, mas não conseguiu o intento. Por outro lado, há mais de 30 anos, foi “meio que carregada” para o teatro, se apaixonou pela obra de Brecht e, desde então, sabe que vem ajudando o outro e a si própria a se transformar.
Clarice é tímida, calada e observadora. É também brincalhona com quem tem intimidade. E se incomoda quando participa de alguma conversa com alguém que é muito fechado em suas opiniões. Há três décadas, tem uma rotina parecida: faz aula de voz, de corpo, estuda teatro, ensaia e se apresenta. Viaja pouco e raramente sai de férias. “Amo esta vida.”
Judia budista – diz que uma religião a aproxima da outra –, Clarice Niskier procura, acima de tudo, se manter aberta para uma alegria infinita. Só assim, quando a dor chega, tem menos medo dela. “As dores podem te levar para o fundo do poço se você não tiver, dentro de você, um jardim realmente florido. Porque, se você o tem, vêm as pragas, as tempestades, mas você tem força.”
A lista expande, ainda que de forma diferente, uma discussão primordial presente em A alma imoral: a compreensão do ser humano, tanto de si mesmo como do próximo. Provocar essas reflexões continua sendo o que te movimenta como artista?
Acho que essa é a utopia do ser humano. A nossa utopia como artista. A gente luta para manter essa questão, que você está levantando, sempre aberta. Meu desejo é que nunca ninguém deixe de perguntar isso que você está perguntando. Isso já é um bom sinal. Sinal de que há espaço, de que há abertura, que há uma esperança, que há uma possibilidade, que há pessoas pensando sobre. E que esse potencial que a gente traz, dentro da gente, da não indiferença, da não violência, é uma conquista que o ser humano pode alcançar. É uma conquista da civilização. Há textos, há autores, filósofos, artistas, gente comum, enfim, pensando e se perguntando por que o processo civilizatório parece ter sido interrompido. É muita barbárie. Parece que o processo civilizatório parou. Mas a verdade é que ele não parou. Está num momento bastante complicado, mas não posso dizer que ele parou. Estamos aqui, vivos e fazendo essas perguntas, e montando peças e mantendo a estrada aberta.
Permitindo que exista o caminho...
Vou te contar uma história muito marcante para mim: eu meditava em um templo budista no Rio de Janeiro, onde fui iniciada da corrente indiana Theravada. É um templo que fica em Santa Tereza. Ele fica perto de uma comunidade em que havia muita violência e, antes da pacificação, era uma guerra sem fim ali. Um dia, nós estávamos meditando, éramos 11 pessoas mais um monge – que tinha vindo do Sri Lanka e estava sendo o líder espiritual daquele templo naquele momento –, e começou um tiroteio. Me dispersei completamente. Abri os olhos e ficava vendo aquelas dez pessoas de olhos fechados, o monge com uma cara serena, e eu ficava me perguntando: “Meu Deus do céu, nós estamos aqui. Um tiroteio lá fora. A gente devia levantar! Talvez pessoas estejam precisando da gente”. Achei tudo um pouco alienado. Não sei, me senti mal.
Mas você parou de meditar?
Não parei de meditar, fiquei com os meus questionamentos, até que tocou o címbalo e eu questionei o monge. “É positivo? De que serve a gente ficar aqui meditando?” E ele me deu a seguinte resposta: estávamos ali meditando porque aquela estrada estava aberta, o templo estava aberto e, um dia, uma pessoa, como eu, sentiu necessidade de iniciar nesse caminho. Existia um caminho para eu chegar. Subi as escadas daquele templo, sentei ali um ano atrás, comecei a me iniciar e tinha sido muito importante para mim. Muitas vezes, historicamente, as gerações não têm como avançar, mas é muito importante que, pelo menos, mantenham a estrada aberta. E era o que nós estávamos fazendo ali: mantendo aberta uma estrada de paz.
Mas neste processo civilizatório atual que você mencionou, as pessoas estariam, em sua opinião, mais preocupadas em fugir da dor do que se entregar à vida?
Infelizmente, elas fogem da dor. Uma coisa é você parar de sofrer por bobagem. Agora, outra é fugir da dor de viver. A vida tem esse lado. As perdas são reais. Ponto. Assim como tem toda a alegria ligada à vida, tem toda a dor ligada à vida. Por que as pessoas precisam se dopar, se alienar, tomar remédio? Fica ansioso, toma remédio. Está triste, toma remédio. Está sem sono, toma remédio. Está não-sei-o-quê, toma remédio. Não posso concordar com uma coisa dessas, sabe? Faço psicanálise, converso, faço terapia, ioga e meditação, busco compreender as causas do sofrimento. Não posso estar medicada 24 horas para fugir da dor. Como é que você vai crescer e evoluir se não passar pela dor? Como é que você vai se humanizar? Aí que tem tudo a ver com a pergunta inicial: um ser humano só pode vivenciar o seu potencial solidário, o seu potencial da não indiferença, da não violência, se ele conhecer a dor, porque assim ele pode reconhecer a dor do outro. Sinto que eu, como ser humano, devo aceitar isso não com resignação, mas no sentido de que é um fato, é real. Assim como o Sol está no céu de dia e a Lua está de noite, a dor existe. Eu não procuro ela, mas ela vem.
E como você lida com a dor absorvida da vida e aquela absorvida da profissão?
Estou acostumada (risos). É um desequilíbrio necessário. É uma sensibilização constante. Mas preciso disso como um camelo precisa de água para atravessar o deserto. Não compreendo a nossa vida sem um entusiasmo. Não compreendo a vida sem a paixão. Então, acho que essas turbulências que as peças nos causam são muito necessárias para a gente se perceber viva. Porque, à medida que vou entrando em uma zona de conforto e fico estabelecida nela, alguma coisa em mim se entristece. E eu sou dada a tristezas. Sou uma pessoa bem feliz no meu dia a dia, porque sou simples, mas, por um tempo, o teatro me coloca em um lugar no qual elaboro a minha tristeza, elaboro as minhas observações sobre o mundo. Sou uma pessoa tímida, gosto de escrever, de observar as coisas e muito do que observo me causa tristeza. E o teatro é um lugar onde posso dar um testemunho, com alegria, sobre o que observo com o intuito de transformar aquilo.
E certamente você já conseguiu mudar muitas pessoas, que, consequentemente, vão passando a mensagem adiante, não?
Estamos todos mantendo uma estrada aberta em que o mundo vai sendo melhorado e piorado simultaneamente. Li muito um livro do Dalai Lama com o Jean-Claude Carrière (A força do budismo). É um diálogo dos dois. E o Dalai Lama está provando a Carrière que o mundo melhora a cada dia, que o mundo está melhorando. Aí, o Jean-Claude Carrière critica, questiona e fala: “Sim, mas a Medicina e outras coisas...”, aí ele vai levantando coisas. E ele tem razão! Por um lado, melhorou muito. A gente poderia ficar fazendo uma lista de coisas incríveis que o mundo melhorou. Nossa, melhorou muito, realmente! E, por outro lado, piorou. Por outro lado, a gente está sempre ameaçado.
De que maneira?
A gente está sempre sem futuro. O que mais me estressa hoje é o fim do futuro. A gente tem ou não tem futuro? A humanidade vai acabar? É toda hora isso! Aquela questão de 2012... Tenho um filho adolescente – ele tem 15 anos hoje – e, quando chegou em 2012, a gente estava voltando de um programa e ele me perguntou: “Mãe, o mundo vai acabar mesmo no final de 2012?”. Eu pensei: “Caraca, que infância é essa? Que adolescência é essa que está sempre ameaçada de que o futuro não existe?”. Eu, quando era criança – nasci em 1959 –, estava ouvindo sobre o movimento hippie; em 1968, [sobre] o movimento estudantil. O futuro era um lugar extraordinário! A gente tinha futuro até não poder mais. Então, meu filho tem pouco futuro. Por quê? Tem pouca água, tem pouco rio. Isso me estressa de uma maneira. Chega, gente! É foda!
Mas seria a negação do futuro a justificativa para ocultar os erros do presente?
Olha, entendo o seguinte – se estou entendendo alguma coisa (risos): quanto mais você vive o presente, mais futuro você tem, porque vida gera vida e morte gera morte. Isso não quer dizer que a morte não esteja no final da vida, mas é uma vida vivida. Se estou aqui com você, agora, dando esta entrevista feliz da vida, entregue, esta entrevista gera vida. Quanto mais presente eu estiver aqui, mais futuro vou ter. Isso é o que compreendo. Acho que estão terminando com o futuro para que a gente não veja o presente que a gente não está vivendo. Há alguma coisa que está querendo que a gente se aliene no nosso dia a dia. Se aliene dessa energia vital, se aliene de nossa alegria de viver. Tem alguma coisa nos puxando para o apagão do aqui e agora. Então, se estou entendendo alguma coisa, eu vou, no leito de morte, sorrir com a vida vivida verdadeiramente. O [Donald] Winnicott tem uma frase que diz: “Eu quero estar vivo na hora da minha morte”. E tem também, no livro A alma imoral, a fala de Nilton Bonder: “A qualidade da nossa velhice está intimamente ligada à qualidade da nossa vida hoje”. São coisas interligadas. “Ah, mas a vida é injusta.” É. A vida é injusta. Mas o que nós estamos falando não tem nada a ver com isso. Trata-se de que eu fiz o processo honestamente e que, ao fazer um processo honestamente, mesmo que eu leve uma rasteira, mesmo que aconteça um fracasso, eu tenho força interior para seguir em frente, para dar continuidade a um processo.
É o não pensar somente no resultado final, certo?
Sim, eu vivo processos. É tão verdade o processo de A alma, que eu tenho que fazer A lista. Porque A alma está me ensinando que todo lugar onde o homem cresceu e se desenvolveu, um dia, se torna estreito. Então, não posso ficar fazendo A alma feliz da vida, tranquila, em uma clareira, nessa zona de conforto para sempre. Tenho que marchar, mostrar a minha cara ao tapa. O mundo é redondo. E A alma continua. Esse trabalho, A lista, não é o trabalho hierarquicamente após A alma. A lista é o processo da Clarice que segue adiante, enquanto faz a A alma. É um aprofundamento de linguagem, é um aprofundamento da minha relação com o Amir Haddad. É a mesma equipe, é o mesmo diretor.
Então não há uma necessidade de romper, de se despedir de A alma?
Não, não tenho nenhuma. Eu faria A alma imoral a vida inteira. Então, é por isso que digo a ela: “Quando você quiser que eu pare, eu paro”. A Alma é uma peça que me ensina, me alimenta. Amo de paixão fazê-la. Eu não canso. Eu mesma fico impressionada (risos).
A densidade do espetáculo A lista parece mostrar que você, como atriz, depois de oito anos em cartaz com A alma imoral, não conseguiria mais fazer algo sem tamanha profundidade de linguagem e discussão humana. É assim?
É bonita a sua pergunta, porque, de fato, entro em vários conflitos. Mas sempre converso muito com quem está me convidando, questiono, vou fazendo de uma maneira que eu vá me sentindo confortável com aquela brincadeira. Porque adoro uma brincadeira, adoro fazer uma bobeira. Eu, na intimidade, sou muito mais boba e muito mais palhaça do que podem imaginar, sabia? Sou tímida no social, mas na intimidade sou uma palhaça, gosto de brincar. Desde que faço A alma imoral, a Rede Globo me chamou para uma novela chamada Ciranda de pedra. Eu fiz. Foi ótimo. Fiz Maria Stuart – que foi uma peça seríssima, maravilhosa –, com a Júlia Lemmertz. Era de [Friedrich] Schiller. Foi sensacional fazer junto com A alma. Fazer Schiller e Nilton Bonder foi uma experiência! É tão profundo quanto. Depois, fiz O lugar escuro, da Heloisa Seixas – que é tão profundo quanto –, sobre o Mal de Alzheimer. Eu fiz um filme, No retrovisor, do Marcelo Rubens Paiva. Umas cenas bonitas de mãe – tão profundo quanto! Mas agora fiz uma coisa que era mais uma brincadeira: o Cláudio Torres está fazendo uma série sensacional que vai estrear ano que vem na HBO sobre a Boca do Lixo. Eu fiz! Ele me chamou para fazer uma das atrizes da Boca. É a Marília que, na verdade, não é uma atriz. Ela é esposa de um produtor chinês da Boca e a pegam para fazer uma madre superiora em um filme pornô. Fiz uma madre superiora em um filme pornô, fumando um charuto. Foi divertido, foi legal.
Mas você se questionou muito se faria ou não essa personagem?
Claro. Eu me pergunto: “Será que posso fazer isso?” Me sinto, assim, com muita responsabilidade perante o público que gosta tanto da Alma. Mas eu respondo: “Pode, Clarice, você é uma atriz”. Então, tento não acreditar que, agora, tenho um papel além do próprio papel de uma atriz. Sou uma atriz com as minhas características, com a minha sensibilidade, com as minhas preferências. Uma atriz que ama, profundamente, o dia a dia no teatro. Sou vocacionada para o dia a dia teatral.
Mas quando você se bloqueia ou pensa “faço ou não faço”, é mais por medo do olhar do outro ou é uma punição sua?
Tem as duas coisas. Sinceramente, as duas coisas. Tenho medo do olhar do outro, de dizerem: “A alma imoral virou madre superiora lésbica em uma pornochanchada”. Gente, uma coisa não tem nada a ver com a outra! Mas dá esse medo, esse pânico do mal-entendido. Claro que dá! Aí a racionalidade tem que entrar em seu favor: “Clarice, pelo amor de Deus, você não vai deixar de fazer por causa disso”. Não, por causa disso, não vou deixar. Senão, você está alimentando um preconceito, você está alimentando uma má leitura de um trabalho de atriz, do que significa a cultura, a arte, o teatro no mundo. Achei a série sensacional, é um texto do Cláudio maravilhoso, uma pesquisa espetacular.
São questões que mostram que nunca estaremos totalmente resolvidos, não?
Nunca estaremos 100% resolvidos. Impossível. Somos seres em transformação. Acho que o maior mal que fizeram a essa leitura infinita que nós podemos ter da realidade para produzir conhecimento foi nos ensinarem que dois mais dois são quatro. E perguntaram: “Entendeu?”. E você respondeu: “Entendi”. Isso não existe! Primeiro, você tem que compreender que dois mais dois são quatro como uma convenção e uma fórmula muito útil e necessária para uma série de cálculos. OK. Isto posto, você vai começar a raciocinar: “O que é o número dois?”. “Duas unidades. Há uma unidade mais outra unidade. Tá bom. Mais outras duas unidades é igual a quatro unidades. Mas como é igual, se nada é igual a nada? Eu não sou igual a você, você não é igual a mim. Existem duas unidades iguais?” “Não, iguais no sentido de não-sei-o-quê não-sei-o-que-lá.” “Sim, mas o que é unidade?” Aí você começa a entrar na Física Quântica. Aí você está produzindo conhecimento, você está entendendo.
Você se torna um ser ativo...
Você está começando a entrar no mundo, a causar um impacto no mundo, a trazer questões. Entender é um verbo tão profundo! Entender é raciocinar. Entender passa pelo afeto, entender passa pelo coração, pela dor, pela alegria, passa pelo abraço, pelas relações, pela vida prática, entender passa por fora dos livros, e aí você volta aos livros e os entende porque você viveu, entender passa pelas suas experiências humanas. Você não fica beijando todo dia a mesma pessoa do mesmo jeito. Isso existe? Claro que não! Você beijou de um jeito porque, naquele dia, você terminou uma briga. Aí você fez as pazes, beijou. Já é um beijo. No outro dia, você não brigou. Está ótimo, é outro tipo de beijo! A pessoa viajou, é um beijo de saudade; é outro beijo. Aí tem o beijo que você está transando; aí tem o beijo de que você não beija há um mês – você está vivendo ali, mas é tanto trabalho que você não beija seu marido há um mês –, beijou. Aí tem a bitoca. É a vida! É a vida.
A indiferença, o egoísmo são temas centrais em A lista. Não somos todos egoístas?
Olha, segundo Freud, o egoísmo é um mal necessário. Sem egoísmo a gente também não ama. O egoísmo é uma necessidade do ser. O ego é uma função psíquica importantíssima. Id, ego e superego: três funções importantíssimas – poder Judiciário, poder Legislativo e poder Executivo – dentro de um sistema de saúde de uma República. Agora, se o poder Executivo se sobrepõe, de qualquer maneira, ao poder Judiciário ou ao poder Legislativo, você tem um desequilíbrio monstruoso. E se o ego quer se sobrepor de uma maneira monstruosa ao superego e ao id, ferrou! Isso para falar assim: há medida de um egoísmo que é saudável. O egoísmo a que a narradora de A lista chegou é totalmente pernicioso. É totalmente negativo.
Faz ela tornar as muitas tarefas do cotidiano uma prisão...
Em uma compulsão, achando que isso que é viver. Olha, Deus – vou te dizer – não foi nada ingênuo quando botou a respiração como coisa independente do ser humano. Quer dizer, a gente respira mesmo na maior tristeza, a gente respira; mesmo na maior depressão, a gente está respirando. Graças a Deus! Porque, se não, o homem ia se esquecer de respirar e ia ter gente aí caindo, a torto e a direito (risos). Então, fico pensando: “Pô, a gente respira no meio da loucura... Isso não é à toa”. Olha só isso. Observa que você está respirando; você sai do automatismo e fala: “Opa, que bom”.
Como se tirasse o peso que as pessoas carregam.
É. Não se torture. Aconteceu. Então, se responsabiliza pela vida. Vamos lá. Sabe? Vamos lá, gente! Vamos lá! Vamos arregaçar a manga da camisa. Não dá para abraçar o mundo. Não dá para estar em todas as trincheiras ao mesmo tempo, mas vamos lá. Cada um na sua trincheira, cada um de sua maneira. Essa experiência humana de viver é sensacional! Ser humano e estar vivo é sensacional. Infelizmente, o sistema humano de sociedade transformou isso em um pesar, muitas vezes. Transformou em uma carga tributária, em uma opressão. Mas isso tudo faz parte da cultura. Ninguém é ingênuo. Ninguém está aqui de brincadeira. A gente sabe como é duro. Mas, apesar disso, nós temos um potencial de transcendência, de entendimento, de capacidade de compartilhar com o outro, que é de um prazer inenarrável. Não é verdade? Nossa, é sensacional. Eu acho mesmo! Acho os encontros humanos sensacionais. Estou feliz de te dar esta entrevista. Fico feliz de dar um abraço, é sensacional. Se você me perguntar: “Isso que você está falando é fé?”. Eu te pergunto: “Isso que é fé? O que você acha?”.
Prefiro que você responda.
Pode ser. Mas não em uma coisa impalpável. É uma fé neste próprio movimento chamado “vida”. E tudo aquilo que me faz ficar nisso, eu quero entender, quero para mim. Quero conhecer a cabala, quero conhecer as religiões, quero conhecer o budismo, quero conhecer você. É fé em um fluxo. Exatamente! Às vezes, penso assim: “Meu Deus, eu nasci!”.
Neste mês, a atriz, de 55 anos, estreia o monólogo A lista, escrito pela canadense Jennifer Tremblay. Pelo que tudo leva a crer, repetirá o enorme sucesso alcançado com o espetáculo A alma imoral, há oito anos em cartaz, baseado no livro de Nilton Bonder. Em um ato quase insano, devido ao desgaste emocional que as duas peças provocam, Clarice manterá os dois espetáculos em cartaz, ambos no teatro Eva Herz, em São Paulo. Enquanto A alma reflete sobre o certo e o errado, a moral e o imoral, A lista fala da indiferença, do egoísmo, ao mostrar a vida de uma mulher casada, dona de casa, mãe de três filhos, e moradora de um vilarejo no interior do Canadá. Com uma vida regida pela lista de tarefas que assumimos no dia a dia, a personagem se atormenta ao tentar entender se seria ela a culpada pela morte de sua vizinha.
Nada incomum, para quem conhece a artista, que ela tenha aceitado tamanha empreitada. Faz parte de sua vontade de levar adiante uma mensagem. Já era assim quando, aos 18 anos, esta carioca decidiu estudar Jornalismo com a utopia de mudar o mundo. Atuou na área, fez matérias de denúncia social, mas não conseguiu o intento. Por outro lado, há mais de 30 anos, foi “meio que carregada” para o teatro, se apaixonou pela obra de Brecht e, desde então, sabe que vem ajudando o outro e a si própria a se transformar.
Clarice é tímida, calada e observadora. É também brincalhona com quem tem intimidade. E se incomoda quando participa de alguma conversa com alguém que é muito fechado em suas opiniões. Há três décadas, tem uma rotina parecida: faz aula de voz, de corpo, estuda teatro, ensaia e se apresenta. Viaja pouco e raramente sai de férias. “Amo esta vida.”
Judia budista – diz que uma religião a aproxima da outra –, Clarice Niskier procura, acima de tudo, se manter aberta para uma alegria infinita. Só assim, quando a dor chega, tem menos medo dela. “As dores podem te levar para o fundo do poço se você não tiver, dentro de você, um jardim realmente florido. Porque, se você o tem, vêm as pragas, as tempestades, mas você tem força.”
A lista expande, ainda que de forma diferente, uma discussão primordial presente em A alma imoral: a compreensão do ser humano, tanto de si mesmo como do próximo. Provocar essas reflexões continua sendo o que te movimenta como artista?
Acho que essa é a utopia do ser humano. A nossa utopia como artista. A gente luta para manter essa questão, que você está levantando, sempre aberta. Meu desejo é que nunca ninguém deixe de perguntar isso que você está perguntando. Isso já é um bom sinal. Sinal de que há espaço, de que há abertura, que há uma esperança, que há uma possibilidade, que há pessoas pensando sobre. E que esse potencial que a gente traz, dentro da gente, da não indiferença, da não violência, é uma conquista que o ser humano pode alcançar. É uma conquista da civilização. Há textos, há autores, filósofos, artistas, gente comum, enfim, pensando e se perguntando por que o processo civilizatório parece ter sido interrompido. É muita barbárie. Parece que o processo civilizatório parou. Mas a verdade é que ele não parou. Está num momento bastante complicado, mas não posso dizer que ele parou. Estamos aqui, vivos e fazendo essas perguntas, e montando peças e mantendo a estrada aberta.
Permitindo que exista o caminho...
Vou te contar uma história muito marcante para mim: eu meditava em um templo budista no Rio de Janeiro, onde fui iniciada da corrente indiana Theravada. É um templo que fica em Santa Tereza. Ele fica perto de uma comunidade em que havia muita violência e, antes da pacificação, era uma guerra sem fim ali. Um dia, nós estávamos meditando, éramos 11 pessoas mais um monge – que tinha vindo do Sri Lanka e estava sendo o líder espiritual daquele templo naquele momento –, e começou um tiroteio. Me dispersei completamente. Abri os olhos e ficava vendo aquelas dez pessoas de olhos fechados, o monge com uma cara serena, e eu ficava me perguntando: “Meu Deus do céu, nós estamos aqui. Um tiroteio lá fora. A gente devia levantar! Talvez pessoas estejam precisando da gente”. Achei tudo um pouco alienado. Não sei, me senti mal.
Mas você parou de meditar?
Não parei de meditar, fiquei com os meus questionamentos, até que tocou o címbalo e eu questionei o monge. “É positivo? De que serve a gente ficar aqui meditando?” E ele me deu a seguinte resposta: estávamos ali meditando porque aquela estrada estava aberta, o templo estava aberto e, um dia, uma pessoa, como eu, sentiu necessidade de iniciar nesse caminho. Existia um caminho para eu chegar. Subi as escadas daquele templo, sentei ali um ano atrás, comecei a me iniciar e tinha sido muito importante para mim. Muitas vezes, historicamente, as gerações não têm como avançar, mas é muito importante que, pelo menos, mantenham a estrada aberta. E era o que nós estávamos fazendo ali: mantendo aberta uma estrada de paz.
Mas neste processo civilizatório atual que você mencionou, as pessoas estariam, em sua opinião, mais preocupadas em fugir da dor do que se entregar à vida?
Infelizmente, elas fogem da dor. Uma coisa é você parar de sofrer por bobagem. Agora, outra é fugir da dor de viver. A vida tem esse lado. As perdas são reais. Ponto. Assim como tem toda a alegria ligada à vida, tem toda a dor ligada à vida. Por que as pessoas precisam se dopar, se alienar, tomar remédio? Fica ansioso, toma remédio. Está triste, toma remédio. Está sem sono, toma remédio. Está não-sei-o-quê, toma remédio. Não posso concordar com uma coisa dessas, sabe? Faço psicanálise, converso, faço terapia, ioga e meditação, busco compreender as causas do sofrimento. Não posso estar medicada 24 horas para fugir da dor. Como é que você vai crescer e evoluir se não passar pela dor? Como é que você vai se humanizar? Aí que tem tudo a ver com a pergunta inicial: um ser humano só pode vivenciar o seu potencial solidário, o seu potencial da não indiferença, da não violência, se ele conhecer a dor, porque assim ele pode reconhecer a dor do outro. Sinto que eu, como ser humano, devo aceitar isso não com resignação, mas no sentido de que é um fato, é real. Assim como o Sol está no céu de dia e a Lua está de noite, a dor existe. Eu não procuro ela, mas ela vem.
E como você lida com a dor absorvida da vida e aquela absorvida da profissão?
Estou acostumada (risos). É um desequilíbrio necessário. É uma sensibilização constante. Mas preciso disso como um camelo precisa de água para atravessar o deserto. Não compreendo a nossa vida sem um entusiasmo. Não compreendo a vida sem a paixão. Então, acho que essas turbulências que as peças nos causam são muito necessárias para a gente se perceber viva. Porque, à medida que vou entrando em uma zona de conforto e fico estabelecida nela, alguma coisa em mim se entristece. E eu sou dada a tristezas. Sou uma pessoa bem feliz no meu dia a dia, porque sou simples, mas, por um tempo, o teatro me coloca em um lugar no qual elaboro a minha tristeza, elaboro as minhas observações sobre o mundo. Sou uma pessoa tímida, gosto de escrever, de observar as coisas e muito do que observo me causa tristeza. E o teatro é um lugar onde posso dar um testemunho, com alegria, sobre o que observo com o intuito de transformar aquilo.
E certamente você já conseguiu mudar muitas pessoas, que, consequentemente, vão passando a mensagem adiante, não?
Estamos todos mantendo uma estrada aberta em que o mundo vai sendo melhorado e piorado simultaneamente. Li muito um livro do Dalai Lama com o Jean-Claude Carrière (A força do budismo). É um diálogo dos dois. E o Dalai Lama está provando a Carrière que o mundo melhora a cada dia, que o mundo está melhorando. Aí, o Jean-Claude Carrière critica, questiona e fala: “Sim, mas a Medicina e outras coisas...”, aí ele vai levantando coisas. E ele tem razão! Por um lado, melhorou muito. A gente poderia ficar fazendo uma lista de coisas incríveis que o mundo melhorou. Nossa, melhorou muito, realmente! E, por outro lado, piorou. Por outro lado, a gente está sempre ameaçado.
De que maneira?
A gente está sempre sem futuro. O que mais me estressa hoje é o fim do futuro. A gente tem ou não tem futuro? A humanidade vai acabar? É toda hora isso! Aquela questão de 2012... Tenho um filho adolescente – ele tem 15 anos hoje – e, quando chegou em 2012, a gente estava voltando de um programa e ele me perguntou: “Mãe, o mundo vai acabar mesmo no final de 2012?”. Eu pensei: “Caraca, que infância é essa? Que adolescência é essa que está sempre ameaçada de que o futuro não existe?”. Eu, quando era criança – nasci em 1959 –, estava ouvindo sobre o movimento hippie; em 1968, [sobre] o movimento estudantil. O futuro era um lugar extraordinário! A gente tinha futuro até não poder mais. Então, meu filho tem pouco futuro. Por quê? Tem pouca água, tem pouco rio. Isso me estressa de uma maneira. Chega, gente! É foda!
Mas seria a negação do futuro a justificativa para ocultar os erros do presente?
Olha, entendo o seguinte – se estou entendendo alguma coisa (risos): quanto mais você vive o presente, mais futuro você tem, porque vida gera vida e morte gera morte. Isso não quer dizer que a morte não esteja no final da vida, mas é uma vida vivida. Se estou aqui com você, agora, dando esta entrevista feliz da vida, entregue, esta entrevista gera vida. Quanto mais presente eu estiver aqui, mais futuro vou ter. Isso é o que compreendo. Acho que estão terminando com o futuro para que a gente não veja o presente que a gente não está vivendo. Há alguma coisa que está querendo que a gente se aliene no nosso dia a dia. Se aliene dessa energia vital, se aliene de nossa alegria de viver. Tem alguma coisa nos puxando para o apagão do aqui e agora. Então, se estou entendendo alguma coisa, eu vou, no leito de morte, sorrir com a vida vivida verdadeiramente. O [Donald] Winnicott tem uma frase que diz: “Eu quero estar vivo na hora da minha morte”. E tem também, no livro A alma imoral, a fala de Nilton Bonder: “A qualidade da nossa velhice está intimamente ligada à qualidade da nossa vida hoje”. São coisas interligadas. “Ah, mas a vida é injusta.” É. A vida é injusta. Mas o que nós estamos falando não tem nada a ver com isso. Trata-se de que eu fiz o processo honestamente e que, ao fazer um processo honestamente, mesmo que eu leve uma rasteira, mesmo que aconteça um fracasso, eu tenho força interior para seguir em frente, para dar continuidade a um processo.
É o não pensar somente no resultado final, certo?
Sim, eu vivo processos. É tão verdade o processo de A alma, que eu tenho que fazer A lista. Porque A alma está me ensinando que todo lugar onde o homem cresceu e se desenvolveu, um dia, se torna estreito. Então, não posso ficar fazendo A alma feliz da vida, tranquila, em uma clareira, nessa zona de conforto para sempre. Tenho que marchar, mostrar a minha cara ao tapa. O mundo é redondo. E A alma continua. Esse trabalho, A lista, não é o trabalho hierarquicamente após A alma. A lista é o processo da Clarice que segue adiante, enquanto faz a A alma. É um aprofundamento de linguagem, é um aprofundamento da minha relação com o Amir Haddad. É a mesma equipe, é o mesmo diretor.
Então não há uma necessidade de romper, de se despedir de A alma?
Não, não tenho nenhuma. Eu faria A alma imoral a vida inteira. Então, é por isso que digo a ela: “Quando você quiser que eu pare, eu paro”. A Alma é uma peça que me ensina, me alimenta. Amo de paixão fazê-la. Eu não canso. Eu mesma fico impressionada (risos).
A densidade do espetáculo A lista parece mostrar que você, como atriz, depois de oito anos em cartaz com A alma imoral, não conseguiria mais fazer algo sem tamanha profundidade de linguagem e discussão humana. É assim?
É bonita a sua pergunta, porque, de fato, entro em vários conflitos. Mas sempre converso muito com quem está me convidando, questiono, vou fazendo de uma maneira que eu vá me sentindo confortável com aquela brincadeira. Porque adoro uma brincadeira, adoro fazer uma bobeira. Eu, na intimidade, sou muito mais boba e muito mais palhaça do que podem imaginar, sabia? Sou tímida no social, mas na intimidade sou uma palhaça, gosto de brincar. Desde que faço A alma imoral, a Rede Globo me chamou para uma novela chamada Ciranda de pedra. Eu fiz. Foi ótimo. Fiz Maria Stuart – que foi uma peça seríssima, maravilhosa –, com a Júlia Lemmertz. Era de [Friedrich] Schiller. Foi sensacional fazer junto com A alma. Fazer Schiller e Nilton Bonder foi uma experiência! É tão profundo quanto. Depois, fiz O lugar escuro, da Heloisa Seixas – que é tão profundo quanto –, sobre o Mal de Alzheimer. Eu fiz um filme, No retrovisor, do Marcelo Rubens Paiva. Umas cenas bonitas de mãe – tão profundo quanto! Mas agora fiz uma coisa que era mais uma brincadeira: o Cláudio Torres está fazendo uma série sensacional que vai estrear ano que vem na HBO sobre a Boca do Lixo. Eu fiz! Ele me chamou para fazer uma das atrizes da Boca. É a Marília que, na verdade, não é uma atriz. Ela é esposa de um produtor chinês da Boca e a pegam para fazer uma madre superiora em um filme pornô. Fiz uma madre superiora em um filme pornô, fumando um charuto. Foi divertido, foi legal.
Mas você se questionou muito se faria ou não essa personagem?
Claro. Eu me pergunto: “Será que posso fazer isso?” Me sinto, assim, com muita responsabilidade perante o público que gosta tanto da Alma. Mas eu respondo: “Pode, Clarice, você é uma atriz”. Então, tento não acreditar que, agora, tenho um papel além do próprio papel de uma atriz. Sou uma atriz com as minhas características, com a minha sensibilidade, com as minhas preferências. Uma atriz que ama, profundamente, o dia a dia no teatro. Sou vocacionada para o dia a dia teatral.
Mas quando você se bloqueia ou pensa “faço ou não faço”, é mais por medo do olhar do outro ou é uma punição sua?
Tem as duas coisas. Sinceramente, as duas coisas. Tenho medo do olhar do outro, de dizerem: “A alma imoral virou madre superiora lésbica em uma pornochanchada”. Gente, uma coisa não tem nada a ver com a outra! Mas dá esse medo, esse pânico do mal-entendido. Claro que dá! Aí a racionalidade tem que entrar em seu favor: “Clarice, pelo amor de Deus, você não vai deixar de fazer por causa disso”. Não, por causa disso, não vou deixar. Senão, você está alimentando um preconceito, você está alimentando uma má leitura de um trabalho de atriz, do que significa a cultura, a arte, o teatro no mundo. Achei a série sensacional, é um texto do Cláudio maravilhoso, uma pesquisa espetacular.
São questões que mostram que nunca estaremos totalmente resolvidos, não?
Nunca estaremos 100% resolvidos. Impossível. Somos seres em transformação. Acho que o maior mal que fizeram a essa leitura infinita que nós podemos ter da realidade para produzir conhecimento foi nos ensinarem que dois mais dois são quatro. E perguntaram: “Entendeu?”. E você respondeu: “Entendi”. Isso não existe! Primeiro, você tem que compreender que dois mais dois são quatro como uma convenção e uma fórmula muito útil e necessária para uma série de cálculos. OK. Isto posto, você vai começar a raciocinar: “O que é o número dois?”. “Duas unidades. Há uma unidade mais outra unidade. Tá bom. Mais outras duas unidades é igual a quatro unidades. Mas como é igual, se nada é igual a nada? Eu não sou igual a você, você não é igual a mim. Existem duas unidades iguais?” “Não, iguais no sentido de não-sei-o-quê não-sei-o-que-lá.” “Sim, mas o que é unidade?” Aí você começa a entrar na Física Quântica. Aí você está produzindo conhecimento, você está entendendo.
Você se torna um ser ativo...
Você está começando a entrar no mundo, a causar um impacto no mundo, a trazer questões. Entender é um verbo tão profundo! Entender é raciocinar. Entender passa pelo afeto, entender passa pelo coração, pela dor, pela alegria, passa pelo abraço, pelas relações, pela vida prática, entender passa por fora dos livros, e aí você volta aos livros e os entende porque você viveu, entender passa pelas suas experiências humanas. Você não fica beijando todo dia a mesma pessoa do mesmo jeito. Isso existe? Claro que não! Você beijou de um jeito porque, naquele dia, você terminou uma briga. Aí você fez as pazes, beijou. Já é um beijo. No outro dia, você não brigou. Está ótimo, é outro tipo de beijo! A pessoa viajou, é um beijo de saudade; é outro beijo. Aí tem o beijo que você está transando; aí tem o beijo de que você não beija há um mês – você está vivendo ali, mas é tanto trabalho que você não beija seu marido há um mês –, beijou. Aí tem a bitoca. É a vida! É a vida.
A indiferença, o egoísmo são temas centrais em A lista. Não somos todos egoístas?
Olha, segundo Freud, o egoísmo é um mal necessário. Sem egoísmo a gente também não ama. O egoísmo é uma necessidade do ser. O ego é uma função psíquica importantíssima. Id, ego e superego: três funções importantíssimas – poder Judiciário, poder Legislativo e poder Executivo – dentro de um sistema de saúde de uma República. Agora, se o poder Executivo se sobrepõe, de qualquer maneira, ao poder Judiciário ou ao poder Legislativo, você tem um desequilíbrio monstruoso. E se o ego quer se sobrepor de uma maneira monstruosa ao superego e ao id, ferrou! Isso para falar assim: há medida de um egoísmo que é saudável. O egoísmo a que a narradora de A lista chegou é totalmente pernicioso. É totalmente negativo.
Faz ela tornar as muitas tarefas do cotidiano uma prisão...
Em uma compulsão, achando que isso que é viver. Olha, Deus – vou te dizer – não foi nada ingênuo quando botou a respiração como coisa independente do ser humano. Quer dizer, a gente respira mesmo na maior tristeza, a gente respira; mesmo na maior depressão, a gente está respirando. Graças a Deus! Porque, se não, o homem ia se esquecer de respirar e ia ter gente aí caindo, a torto e a direito (risos). Então, fico pensando: “Pô, a gente respira no meio da loucura... Isso não é à toa”. Olha só isso. Observa que você está respirando; você sai do automatismo e fala: “Opa, que bom”.
Como se tirasse o peso que as pessoas carregam.
É. Não se torture. Aconteceu. Então, se responsabiliza pela vida. Vamos lá. Sabe? Vamos lá, gente! Vamos lá! Vamos arregaçar a manga da camisa. Não dá para abraçar o mundo. Não dá para estar em todas as trincheiras ao mesmo tempo, mas vamos lá. Cada um na sua trincheira, cada um de sua maneira. Essa experiência humana de viver é sensacional! Ser humano e estar vivo é sensacional. Infelizmente, o sistema humano de sociedade transformou isso em um pesar, muitas vezes. Transformou em uma carga tributária, em uma opressão. Mas isso tudo faz parte da cultura. Ninguém é ingênuo. Ninguém está aqui de brincadeira. A gente sabe como é duro. Mas, apesar disso, nós temos um potencial de transcendência, de entendimento, de capacidade de compartilhar com o outro, que é de um prazer inenarrável. Não é verdade? Nossa, é sensacional. Eu acho mesmo! Acho os encontros humanos sensacionais. Estou feliz de te dar esta entrevista. Fico feliz de dar um abraço, é sensacional. Se você me perguntar: “Isso que você está falando é fé?”. Eu te pergunto: “Isso que é fé? O que você acha?”.
Prefiro que você responda.
Pode ser. Mas não em uma coisa impalpável. É uma fé neste próprio movimento chamado “vida”. E tudo aquilo que me faz ficar nisso, eu quero entender, quero para mim. Quero conhecer a cabala, quero conhecer as religiões, quero conhecer o budismo, quero conhecer você. É fé em um fluxo. Exatamente! Às vezes, penso assim: “Meu Deus, eu nasci!”.
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Reportagem por:
Gustavo Ranieri
Foto: Bruno Veiga
Fonte: Site da Revista Cultura , 04/11/2014
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