sábado, 22 de novembro de 2014

"Os enlevados"

J.J Camargo*

J.J Camargo: "Os enlevados" Edu Oliveira /Arte ZH
Nas extremidades do corredor dos primeiros andares do antigo Pavilhão Pereira Filho, ficavam as enfermarias dos indigentes, naquela época em que eles existiam. O Aristides era um velho peão de estância, de Quaraí, que conversava aos solavancos, com longas pausas entre frases curtas. Seu jeito de descrever as coisas e de interpretar o que tinha sido dito me encantava. Tanto que se tornou meu papo obrigatório do final de tarde, em uma fase da vida em que, sei lá, a gente tinha menos pressa. 

Um dia o surpreendi pensativo, e não houve o festejo habitual quando puxei o banquinho para conversar. Depois de um suspiro, do nada, ele anunciou: "Sem ninguém para um mimo, eu não me acho!". E então confessou que, desde que a patroa morrera, sentia um vazio feito fome no lugar do coração. E um pouco acabrunhado me confidenciou que andava meio encantado com uma vizinha de coque grisalho. O tal amor, verdadeiro ou fantasioso, provocava pelo menos um benefício: ele era o primeiro a se levantar e a arrastar sua falta de ar para o banho, contrastando com o jeitão desleixado e preguiçoso, de quando foi admitido sem família, num abandono sem redenção.

O anúncio da paixão extemporânea tinha um objetivo: já que nos tornáramos amigos, ele queria saber se eu achava muito ridículo que ele estivesse, assim, sabe como é, meio que apaixonado. Quando lhe disse que não, que isso era sinal do quanto tinha de vida por viver, ele misturou riso e choro, e me abraçou. Compreensão e cumplicidade, como se sabe, produzem amizades instantâneas. 

A pergunta seguinte foi sobre a saúde da amada. Até preferia que ela tivesse um fôlego meio curto, para que ele não se sentisse tão diminuído.

A Amália também era viúva e, ao ouvi-la contar da saudade do seu velho, falecido no último inverno, senti que a minha missão de cupido não tinha a menor chance de prosperar, e me condoí da má sorte do Aristides, que, ignorando a indisponibilidade daquele coração, continuava animado com um sonho que preferi não desestimular. E até comentei com a Amália que, sem saber, ela estava ajudando o Aristides lá do fim do corredor, já que, ao vê-la, ele trocava a falta de ar da fibrose por longos suspiros de paixão. Ela riu encabulada, e comentou: "Velho descarado, brincando com o sentimento das pessoas carentes!".

Não insisti em aproximá-los porque, à época, não tinha a percepção exata de atemporalidade do amor, esta noção que os jovens ignoram, e por desconhecerem, ridicularizam a paixão dos velhos.

De qualquer modo, com uma fibrose terminal que lhe arroxeava os lábios depois do mísero esforço de uma frase qualquer, ele não teria fôlego para um declaração de amor. E dela, com um câncer terminal de pulmão, não se podia esperar ânimo para consolá-lo. 

E então cuidei dos dois assim, embalando a fantasia dele e protegendo a carência solitária dela. 

Nenhum deles tinha expectativa de vida de mais do que poucas semanas. Achei justo mantê-los alienados de uma realidade que não lhes convinha. Ele, animado com a fantasia de uma paixão juvenil irrealizável.

E ela, consumida de saudade. Tanta e sempre, que contam, quando é assim, pode até produzir o milagre reparador da ressurreição. Enlevados de amor, um pelo que fora e outro pelo que poderia ter sido, morreram os dois na mesma semana, sem terem trocado uma única palavra.
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* Médico
 Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Fonte: ZH online, 22/11/2014

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