Jacques
Rancière é um filósofo do presente. E isso não quer dizer apenas que, aos 74
anos, continua escrevendo como nunca. Significa também que seu pensamento é
profundamente ligado a questões e problemas atuais, seja o fortalecimento dos
partidos de extrema-direita na Europa ou os novos movimentos políticos ligados
às redes sociais.
"O
Ódio à Democracia", livro agora lançado no Brasil, parte da análise da
sociedade contemporânea para refletir sobre a crise nas democracias
representativas. "O Fio Perdido", seu último ensaio sobre a ficção
moderna publicado neste ano, tematiza os efeitos políticos positivos das
transformações na literatura. O pensador recebeu a reportagem em seu
apartamento parisiense para esta entrevista. Discípulo dissidente de Louis
Althusser (1918-1990), o ex-professor da Universidade de Paris 8 associa arte e
política ao elaborar o conceito de democracia estética que relaciona a
manifestações políticas alternativas. Leia, a seguir, os principais trechos da
entrevista concedida ao Valor:
Valor:
Como o senhor vê o fortalecimento dos partidos de extrema-direita na Europa
e a vitória do Front National nas eleições para o Parlamento Europeu?
Jacques
Rancière: É preciso evitar fazer do aumento de poder da
extrema-direita a causa da crise da democracia. Ao contrário, é justamente
porque as sociedades ditas democráticas o são cada vez menos que assistimos a
esse fortalecimento da extrema-direita, particularmente na França. Aquilo que
chamamos de democracia representativa corresponde de fato a uma oligarquia com
legitimação democrática. Trata-se de um regime fundado em lógicas
contraditórias. Ele repousa em princípio sobre o poder do povo, mas na verdade
é a cada vez mais confiscado por oligarquias burocráticas ligadas às grandes
fortunas. Consequentemente, a realidade de um poder do povo é cada vez mais
limitada e sua ideia se torna problemática. Em razão da mundialização e da
crise econômica, nos encontramos supostamente numa situação em que tudo deve
ser objeto do cálculo de um expert. Assim, há um agravamento da contradição
estrutural de nosso regime e, portanto, um distanciamento de toda ideia e de
toda prática de um poder do povo. A reação mais espetacular a isso foi o
fortalecimento de forças conservadoras capazes de reivindicá-lo para si.
Valor:
Como assim?
Rancière:
Não explicamos a vitória do Front National simplesmente com a pressuposição de
que o aumento da imigração traz o racismo e a xenofobia. Essa força subiu
porque pôde dizer "direita ou esquerda é a mesma coisa" já que nos
confrontamos com um sistema de confiscação do poder por uma pequena oligarquia
burocrática. É com a ideia de dar novamente poder ao povo que a extrema-direita
francesa ganhou as eleições, recrutando eleitores até mesmo na classe operária,
que votava tradicionalmente no Partido Comunista. Acredito que há na Europa um
déficit de democracia cada vez mais importante, e infelizmente a instância
capaz de encarnar uma força popular foi a extrema-direita.
"Há
na Europa um déficit de democracia (...), e infelizmente a instância capaz de
encarnar uma força popular
foi a extrema-direita", diz
Valor:
Nesse contexto de crise das democracias representativas, as redes sociais na
internet podem ajudar a criar um novo tipo de espaço público e de configuração
democrática?
Rancière:
As redes sociais não resolvem tudo por elas mesmas. Nós sabemos que todas as
forças políticas, mesmo as mais reacionárias, utilizam esse meio para difundir
suas ideias. Dito isso, o importante nas redes sociais é a possibilidade de
criar formas de discussão e de reunião independentes em relação aos partidos
políticos e aos sindicatos tradicionais. Movimentos como o do 15 de maio na
Espanha, o dos indignados ou a Primavera Árabe se constituíram através dessas
formas novas de relação, de abertura de fórum e de convocação popular ligadas
às redes sociais. Elas permitiram a emergência de uma renovação democrática às
margens das instâncias de poder tradicionais, dos partidos parlamentares e
também das organizações revolucionárias autoproclamadas. Há nisso um fator de
democracia, em todo caso de uma certa manifestação da democracia nos dias de
hoje.
Valor:
De que maneira esse fator de democratização se configura? Não há um risco de
dispersão ou um desvio das reivindicações iniciais nos movimentos promovidos
através das redes sociais?
Rancière:
Podemos dizer que as redes sociais produziram formas de discussão que também
estão deslocadas em relação à lógica tradicional da reivindicação e da ação
reivindicativa. Penso, por exemplo, no que se passou na Turquia, onde a questão
de permitir ou não que se abatessem árvores num parque se transformou numa
discussão sobre o espaço público. A questão do espaço público tem sido
recolocada por meio da junção entre o espaço concreto material - a praça, a rua
que é ocupada - e essas redes sociais, que desempenham o papel de local de
discussão. Então não há uma simples dispersão, mas uma nova lógica de
discussão. Nos movimentos políticos ligados às redes sociais, os debates não
estão mais concentrados em objetivos precisos de ação e na escolha de uma
estratégia determinada para obtê-los. Há uma espécie de transbordamento da
exigência de discussão e, por consequência, formas de dispersão em relação às
reivindicações diretas. Mas isso é ao mesmo tempo um sinal de que, através
destas - quer seja impedir a transformação de um jardim em supermercado e em
caserna ou o aumento das tarifas de transporte, como foi o caso no Brasil -,
uma exigência democrática bem mais ampla se manifesta. Nessas situações, a
necessidade de refletir sobre o que se passa e de inventar novas formas de
comunicação ocupa o primeiro plano em detrimento de objetivos precisos.
Um dos protestos de 15 de maio em
Paris: "Ligações não cessam de se estabelecer entre formas de performance
artística
e formas de performance política. É o que se passou na Primavera
Árabe
ou no movimento do 15 de maio"
Valor:
Em "O Ódio à Democracia", o senhor afirma que o medo das classes
mais favorecidas diante da enxurrada democrática que transformou a sociedade
francesa no século XIX, com a democratização do acesso ao consumo e à cultura,
se traduz também na rejeição de novas formas de construção frasal na
literatura. As consequências políticas das transformações na ficção literária
constituem o objeto de "O Fio Perdido", seu último livo (ainda sem
tradução no Brasil). De que maneira inovações significativas no plano literário
se traduzem em efeitos políticos?
Rancière:
Houve um momento, essencialmente no século XIX, no qual a literatura teve um
efeito democrático à sua maneira - e não necessariamente nas ideias dos
escritores, mas na instauração de formas de olhar e de escrever que abriam
espaço para uma certa igualdade: todo mundo passava a ser interessante.
Qualquer personagem popular - uma mulher do povo ou um empregado considerado
subalterno - passou a ser mostrado nas obras literárias como alguém capaz de
sensação e de emoção igual a todos os indivíduos das classes ditas cultivadas e
refinadas. Para representar isso, a literatura da época inventou formas de
frase e de percepção que não eram mais pautadas pelas grandes ações, mas se interessavam
pelo cotidiano, pelos microeventos com os quais são tecidas todas as vidas.
Isso foi o fato da literatura no século XIX. Hoje estamos numa situação bem
diferente. Nesse meio tempo, outros media desempenharam esse papel. Eu penso,
por exemplo, no cinema, que também propiciou a entrada de qualquer um no reino
da arte, o que significa abrir a todos a esfera de uma riqueza de pensamento,
de emoção e de percepção partilhada. Esse momento cinematográfico sucedeu ao
momento literário.
Valor:
Como o senhor vê essa correlação entre inovações artísticas e políticas nas
sociedades contemporâneas?
Rancière:
Hoje em dia é bastante difícil definir inovações literárias ou artísticas...
Não poderíamos dizer que elas servem, especificamente, à democracia, mas vemos,
entretanto, que uma série de ligações não cessam de se estabelecer entre formas
de performance artística e formas de performance política. É o que se passou na
recente Primavera Árabe ou no movimento do 15 de maio, assim como na Turquia e
na Grécia. Há uma espécie de convergência entre formas artísticas performáticas
e formas propriamente políticas. Penso, no entanto, que se trata de algo
diferente daquilo que chamei de democracia literária ou estética. Atualmente,
há uma partilha bastante vasta das capacidades de experiência perceptiva,
sensível, que passa por toda uma série de artes e cria uma espécie de tecido
democrático capaz de ligar as pessoas que vão se reunir numa praça em Atenas ou
Istambul. Efetivamente, isso passou pelo cinema, passou pela música, passou
pela performance... Acredito que há uma espécie de apagamento das fronteiras
entre arte nobre e arte não nobre, criando algo como uma democracia estética
larga, que pode ser verificada nos movimentos populares recentes. Hoje em dia,
toda manifestação assume o jeito de uma performance artística tanto pela
atitude física dos manifestantes quanto pelas palavras e imagens que eles vão
mostrar na rua. Há uma espécie de aparição de uma democracia estética que se
transforma, nas ruas, em democracia política.
"O
Ódio á Democracia"
Jacques
Rancière. Boitempo,
26 págs., R$ 29,00
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Reportagem por Patricia
Lavelle é doutora em filosofia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales
Fonte: Valor Econômico online, 07/11/2014
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