Um romance em busca da verdade
e dos afetos.
Leia um trecho de O irmão alemão, o novo livro de Chico Buarque.
Calma, Ciccio, disse minha mãe, quando já crescido lhe perguntei por que
meu pai não escrevia um livro, uma vez que gostava tanto deles. Ele vai
escrever o melhor libro del mondo, disse arregalando os olhos, ma prima
tem que ler todos os outros. A biblioteca do meu pai contava então uns
quinze mil livros. No fim superou os vinte mil, era a maior biblioteca
particular de São Paulo, depois da de um bibliófilo rival que, dizia meu
pai, não havia lido nem um terço do seu depósito. Calculando que ele
tenha acumulado livros a partir dos dezoito anos, posso tirar que meu
pai não leu menos que um por dia. Isso sem contar os jornais, as
revistas e a farta correspondência habitual, com os últimos lançamentos
que por cortesia as editoras lhe enviavam. A grande maioria destes ele
descartava já ao olhar a capa, ou após uma rápida folheada. Livros que
jogava no chão e mamãe recolhia de manhã para juntar no caixote de
doações à igreja. E quando porventura ele se interessava por alguma
novidade, sempre encontrava algum pormenor que o remetia a antigas
leituras. Então chamava com seu vozeirão: Assunta! Assunta!, e lá ia
minha mãe atrás de um Homero, um Virgílio, um Dante, que lhe trazia
correndo antes que ele perdesse a pista. E a novidade ficava de lado,
enquanto ele não relesse o livro antigo de cabo a rabo. Por isso não
estranha que tantas vezes meu pai deixasse cair no peito um livro aberto
e adormecesse com um cigarro entre os dedos ali mesmo na
espreguiçadeira, onde sonharia com papiros, com os manuscritos
iluminados, com a Biblioteca de Alexandria, para acordar angustiado com a
quantidade de livros que jamais leria porque queimados, ou extraviados,
ou escritos em línguas fora do seu alcance. Era tanta leitura para pôr
em dia, que me parecia improvável ele vir a escrever o melhor libro del
mondo. Por via das dúvidas, quando ao sair do quarto eu ouvia o
toque-toque da máquina de escrever, tirava os sapatos e prendia a
respiração para passar ao largo do seu escritório. E me encolhia todo se
por azar naquele instante ele arrancasse num ímpeto o papel do rolo,
achava que em parte era de mim a raiva com que ele esmagava, embolava a
folha e a arremessava longe. Outras vezes a máquina cessava para meu pai
pedir socorro: Assunta! Assunta!, era alguma citação que ele precisava
transcrever urgentemente de um determinado livro. Com isso levava meses
para redigir, rever, rasurar, arremessar bolotas, recomeçar, corrigir,
passar a limpo e certamente contrafeito entregar para publicação o que
seriam rascunhos do esqueleto do grande livro da sua vida. Eram artigos
sobre estética, literatura, filosofia, história da civilização, que
ocupariam uma coluna ou um rodapé de jornal. Quando papai morreu,
apareceu um editor disposto a publicar uma coletânea dos artigos
assinados por ele ao longo da vida. Fui contra, cheguei a mostrar à
minha mãe a profusão de correções e emendas ilegíveis que meu pai
sobrepusera ao texto ou anotara à margem dos próprios artigos,
recortados dos jornais. Mas mamãe estava convencida de que o livro seria
aclamado no meio acadêmico, quiçá editado até na Alemanha, graças aos
escritos de juventude concebidos naquele país. E ainda insinuou que
desde a infância eu procurava sabotar meu pai, haja vista aquele ensaio
que por minha culpa desfalcaria suas obras completas. Meia verdade,
porque era ao meu irmão que de tempos em tempos meu pai confiava um
envelope a ser entregue na redação de A Gazeta, do outro lado da
cidade. Para isso, além do dinheiro do bonde, ele o remunerava com uma
quantia suficiente para uma semana de milk-shakes. Mas volta e meia meu
irmão me repassava o dinheiro do bonde e o envelope, que eu levava a pé à
redação. Não me movia o dinheiro poupado, que mal pagava duas mariolas,
eu ficava era todo prosa com tamanha responsabilidade. Ainda ganhei a
simpatia dos funcionários do jornal, e não me importava de passar por um
suado estafeta do meu pai, em cujas mãos despejavam mais umas moedas.
Mas certa vez, a caminho da redação, parei para jogar um futebol de rua,
era comum naquele tempo. Carros circulavam só de quando em quando, e ao
avistá-los ao longe os meninos gritavam: olha a morte! Logo recolhíamos
as lancheiras, as pastas, os agasalhos que representavam as balizas e
aguardávamos na calçada a passagem do carro para recomeçar a partida.
Mas nesse dia não foi o trânsito, foi uma chuva súbita que nos obrigou a
apanhar depressa nossas coisas e buscar abrigo sob a marquise de um
empório. Chegou a cair granizo, que catávamos do chão, chupávamos,
atirávamos uns nos outros, uma festa. Mas de repente calhou de eu me
lembrar do envelope do meu pai, que eu deixara debaixo de um pulôver e
agora estava ali no meio do aguaceiro. Corri para salvá-lo e por pouco
não fui atropelado, pois naquele segundo passou um Chevrolet que agarrou
o envelope com o pneu e só o soltou duas quadras adiante. Fui colher
seus restos, e não havia remédio, o artigo do meu pai era uma estranha
massa cinzenta, uma maçaroca de papel molhado.
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Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2014/11/o-irmao-alemao-novo-livro-de-chico-buarque/
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