João Sayad*
A Terra tem 4 bilhões de anos. O homo sapiens, entre 100 e 500 mil
anos. A história, desde que inventamos a escrita, 5.700 anos. A
democracia grega aconteceu por alguns séculos há 2.500 anos e se tornou
um modelo nunca mais alcançado. Roma teve momentos democráticos há dois
mil anos e uma longa história de imperadores e golpes. Os regimes
democráticos contemporâneos têm pouco mais do que duzentos anos. É um
regime jovem, delicado e frágil.
Estabeleceu-se com sucesso nos Estados Unidos desde 1786 e na
Inglaterra, a partir de 1688. Mesmo assim, a democracia americana
conviveu por 82 anos, quase a metade do período, com a escravidão e em
dois terços do tempo, com segregação racial.
A definição operacional de democracia é modesta quando comparada às
propostas e discursos de políticos, defensores de direitos humanos e
juristas. São democráticos os regimes em que há liberdade de expressão,
onde qualquer cidadão pode ocupar os cargos de poder independentemente
de seus antepassados, religião ou qualquer outra regra de exclusão e
onde os três poderes são independentes e harmônicos. Só isto. Se vier
algo a mais, ótimo, é lucro. Mesmo a partir desta definição modesta, a
estabilidade e sobrevivência dos regimes democráticos é restrita a
períodos curtos de tempo e a alguns países.
Não podemos perder o voto de quem "não está nem aí".
São eles que garantem a estabilidade
da nossa democracia
Deu certo nos países anglo-saxões. Na Alemanha, existe apenas há
cento e poucos anos, sem descontar os anos de nazismo. Na Itália, a
mesma coisa. Em Portugal e na Espanha, a mesma duração. Mas com a longa
exceção dos governos de Antonio Salazar e Francisco Franco, existe há
pouco mais de meio século.
Nos países escandinavos e na Suiça as democracias têm sido mais estáveis. O regime sobrevive melhor em países pequenos.
Na África, no Oriente Médio e na Ásia democracia é evento pouco
provável. Na América Latina, um regime que sobrevive mal ou bem há
apenas trinta anos.
Dá azar classificar os países destas regiões como "suíços". O Chile
foi chamado de "Suíça da América Latina" um pouco antes do Allende. O
Uruguai também, antes da ditadura militar. E o Líbano era a "Suíça" do
Oriente Médio antes da guerra civil.
O professor Anthony Downs estudou as condições de sobrevivência e
estabilidade dos regimes democráticos no século passado no livro "A
Teoria Econômica da Democracia". Concluiu, entre outras coisas, que a
sobrevivência dependia da presença de uma grande "maioria silenciosa" no
espectro político de uma nação.
A democracia é estável se a distribuição de preferências ideológicas
seguir uma distribuição normal - com a maior parte dos eleitores
concentrada no centro, que ele chamou de maioria silenciosa, e parcelas
menores distribuída nos extremos à direita e à esquerda. A "maioria
silenciosa" não tem preferências definidas e claras sobre quais as
melhores políticas ou a melhor forma de conduzir a vida pública
nacional. Vivem as suas vidas, preocupados com questões locais e
individuais. A política não os atrai.
Nesta situação, a melhor estratégia eleitoral é conquistar os
eleitores do centro. Se candidatos de direita e esquerda caminham para o
centro ganham mais eleitores do que perdem por abandonar os extremos.
Os extremos não têm em quem votar, votam no candidato de direita ou de
esquerda ainda que estes tenham se caminhado para o centro, mais longe
de propostas radicais.
Se a distribuição é bimodal, isto é, se os eleitores se concentram à
direita e à esquerda do espectro político sem o miolo da "maioria
silenciosa", as eleições serão vencidas alternativamente por
esquerdistas e direitistas. O regime será instável. Na ausência de uma
"maioria silenciosa" predominante, o regime democrático é ameaçado. O
país vai mal e a maioria silenciosa abandona o silêncio e começa a
participar.
Quando os militares criaram dois partidos, a Arena e o MDB, estavam
seguindo, sem saber, as ideias de Anthony Downs. Nesta situação, os dois
partidos precisariam caminhar para o centro e atender a maioria
silenciosa - que nos anos 80 lutava pela democracia mas que participara
vinte anos antes na Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade. Com
dois partidos e voto obrigatório, quando e se houvesse eleições, os
partidos caminhariam para o centro.
Tem se falado muito sobre reforma política. E tenho lido colunistas,
individualistas e libertários pregarem o fim do voto obrigatório. Não
lembro de nenhuma justificativa elaborada. Apenas reclamações contra o
desconforto de votar a cada dois anos no domingo e a posição de
princípio de que o governo não deve interferir na liberdade de cada
eleitor que vota ou não, como quiser.
Mas Anthony Downs no seu livro e eu aqui, nesta coluna, achamos a
proposta temerária. A extrema direita do Le Pen quase ganhou por causa
da abstenção do eleitor francês que viajou no fim de semana. E é bem
provável que o brasileiro da "maioria silenciosa" prefira descer para o
litoral do que perder o domingo do dia da eleição.
A presença de inúmeros partidos pequenos e de um grande PMDB anódino e
sem linha ideológica definida pode ser uma medida da maioria silenciosa
no país. Não é um defeito a ser corrigido, a não ser a questão da
distribuição dos recursos do Fundo Partidário que acaba incentivando a
multiplicação de partidos. Mas uma boa parte dos eleitores troca seu
voto por promessas de soluções para problemas regionais, corporativos ou
setoriais. E deixa de lado as questões maiores sobre o futuro do país.
Vivemos agora um momento de radicalização - eleitores do PSDB e do PT
nos extremos do espectro político (não muito extremos - os dois
candidatos prometiam manter os bons programas do outro). Uma vitória e
uma derrota apertadas - por alguns pontos percentuais. Não é uma boa
notícia. Por isso precisamos do voto obrigatório. Não podemos perder o
voto de quem "não está nem aí". São eles que garantem a estabilidade da
frágil, delicada e recém inaugurada democracia brasileira.
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*João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP
Fonte: Valor Econômico online, 24/11/2014
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