Leonidas Donskis participou de mesa ao lado de Nelson Ascher
Leonidas Donskis, filósofo lituano, explica que países escolhem seu
"bode expiatório" e critica hierarquização
dentro da União Europeia
De Cachoeira
Sociedades com tradição democrática estão se tornando intolerantes. Em países como França e Holanda, cada vez mais pessoas projetam suas frustrações em imigrantes ou minorias étnicas. Em outros países, essa “política de intolerância” se reflete contra gays e lésbicas. Trata-se, portanto, de uma “abordagem seletiva”, afirma o lituano Leonidas Donskis.
No Brasil para a 4ª Festa Literária Internacional de Cachoeira, que ocorreu no Recôncavo Baiano, o filósofo esteve encarregado de analisar o extremismo e a intolerância que tomam conta, de maneiras diferentes, da União Europeia hoje. “Um dos maiores problemas hoje na Europa é o fato de as pessoas tentarem explicar sua falta de tolerância referindo-se à cultura, aos valores e à tradição. E eu, como filósofo, não entendo o que eles querem dizer com 'valores e tradição'. Toda sociedade está mudando, a vida está mudando o tempo todo em todo lugar. Que tipo de valores e tradição as pessoas têm em mente? Eu realmente não sei...”, disse em entrevista a CartaCapital.
Co-autor de Cegueira Moral (Zahar), livro que traz cinco diálogos do professor de ciência política da Universidade de Vytautas Magnus (Lituânia) com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Donskis é um importante ativista de direitos humanos em seu país e foi nomeado em 2004 Embaixador da Tolerância e Diversidade na Lituânia pela Comissão Europeia. Além disso, atuou como membro do Parlamento Europeu entre 2009 e 2014.
Abaixo, alguns trechos da entrevista:
CartaCapital – Intolerância é um tema sobre o qual ouvimos falar cada vez mais nos dias de hoje. O senhor acredita que o mundo hoje está mais intolerante? Onde isso fica mais evidente no nosso cotidiano?
Leonidas Donskis – Bem, eu diria que sim e não. A União Europeia, por exemplo, está passando por um momento delicado porque há alguns países com tradição de tolerância e democracia onde há menos tolerância em relação a certas minorias e povos. Por exemplo, a França, onde vem ocorrendo uma forte expansão da Frente Nacional, ou mesmo a Holanda, com o Partido da Liberdade.
Esse quadro é perturbador porque a Frente Nacional é completamente xenófoba e racista, enquanto o Partido da Liberdade é absolutamente contrário a muçulmanos e também xenófobo. E os representantes desses partidos, como Marie Le Pen, serão membros do Parlamento Europeu pelos próximos cinco anos. Eles foram eleitos, o que mostra que não são exceção e não estão sozinhos.
Em sociedades como a França ou a Holanda existe o costume de se conviver com pessoas diferentes, de outras culturas, raças, religião, sociedade. Mas há cada vez mais aqueles que projetam sua insatisfação, frustração e raiva em relação ao desemprego, falta de oportunidades e crise econômica em imigrantes, migrantes e minorias. A imigração, portanto, é um tema sensível à Europa, como também é a igualdade de direitos quando se tratam de gays e lésbicas. É o caso do meu país, que é bastante homofóbico. Assim, acredito que a “política de intolerância” acabe sofrendo uma abordagem seletiva.
CC – Esse quadro é visto, pelo senhor, como consequência da crise econômica que o bloco vem enfrentando?
LD – Creio que a crise econômica pode ter facilitado essa insatisfação, frustração, esse desencanto. As pessoas tentam explicar sua miséria ou falta de dinheiro colocando a culpa nos imigrantes, algo muito semelhante ao que aconteceu com os judeus na Europa. Um dos maiores problemas hoje é o fato de as pessoas tentarem explicar sua falta de tolerância referindo-se à cultura, aos valores e à tradição. E eu, como filósofo, não entendo o que eles querem dizer com “valores e tradição”. Toda sociedade está mudando, a vida está mudando o tempo todo em todo lugar. Que tipo de valores e tradição as pessoas têm em mente? Eu realmente não sei...
Existe, portanto, um lado de se culpar os imigrantes pelas condições econômicas. Mas, por outro lado, vejo que nossas classes políticas não são consistentes na Europa. Elas defendem os direitos humanos em alguns aspectos, mas falham em defendê-los em outros. E testemunhei isso como membro do Parlamento. Quando não se trata de sua própria agenda, eles preferem se silenciar em relação a problemas inconvenientes, como no caso da crise da Ucrânia ou mesmo quando a Rússia aprovou a lei na qual trata ONGs como "agentes estrangeiros".
Eu diria que uma política de direitos humanos consistente na Europa continua a ser um desafio para nós. Podemos pensar sobre alguns indivíduos, mas eu não diria que estamos a ponto de nos unir e chegar a um consenso sobre uma política unificada de direitos humanos. Há muitas discrepâncias internas.
CC – Como combater a intolerância? Sendo tolerante com a intolerância ou tomando medidas de intolerância?
LD – Não podemos ser ingênuos em relação a isso. Claro que há sociedades mais democráticas, sociedades que lograram atingir maiores políticas de direitos humanos, mas a intolerância ainda é mais presente do que políticas democráticas. Algumas sociedades, inclusive, são governadas por líderes autoritários. Países, por exemplo, como Cazaquistão ou Azerbaijão, onde o islã é secular, onde a luta contra o islamismo radical não é uma questão, há mais tolerância em termos de coexistência religiosa, mas quando falamos de instituições democráticas, direito de consciência, direito de criticar algo, as coisas se tornam um pouco problemáticas. Você não pode criticar o governo abertamente, por exemplo, não pode levantar sua voz contra algo que não concorda. Então é possível, sim, combinar tolerância em sociedades de países governados por líderes autoritários.
CC – Por que hoje parece tão difícil convivermos com o diferente?
LD – Acredito que somos seletivos. Celebramos algumas diferenças, mas à distância. Gostamos de ir a restaurantes japoneses e chineses, gostamos de culturas diferentes. Mas quando se trata de viver no meio dessas pessoas, é outra história. Somos entusiastas em celebrar o que está longe, quando não o vemos, não o ouvimos. Então fica tudo muito conveniente: eu adoro a comida e costumes deles, mas não vivo entre eles e sim com meus semelhantes. Eu celebro diferenças quando as consumo, mas quando se trata de coexistir ou mesmo de ser responsável pelos diferentes, não celebro tais diferenças. E o consumo é a maneira mais fácil e superficial de lidar com o “problema”, quando há outras mais profundas e complexas, mas muito mais significativas.
CC – A União Europeia era vista como o maior modelo de integração do mundo atual, mas isso vem sendo questionado depois de ter havido um efeito dominó por conta da crise financeira de 2008. Quais seriam os próximos desafios do bloco?
LD – Acredito que o desafio da crise econômica continua para a Grécia, a Espanha e a Itália, especialmente, que é uma economia extremante forte e importante. Os próximos desafios serão sobre secessão e separatismo. A Europa precisa de solidariedade e de uma política econômica que requeira isso também. Mas é difícil falar em igualdade e solidariedade, por exemplo, entre Alemanha e Grécia, quando um é credor e o outro, devedor. É difícil admitir, mas o fato é que a União Europeia, apesar de eu ser um grande entusiasta da ideia, é uma organização hierárquica. Não temos igualdade entre os Estados-membros, mas sim uma hierarquia muito forte entre países.
CC – Então ainda não temos uma integração completa...
LD – Ainda não. Eu realmente acredito que a União Europeia é uma perfeita instituição e organização para se trazer paz, de onde pode vir nossa estabilidade e prosperidade. Então, eu realmente acredito no futuro do bloco, mas ainda temos desafios como desigualdade entre países e cidadãos, sendo alguns considerados como de “segunda classe” dentro do bloco. Búlgaros e romenos, por exemplo, não são “iguais” a alemães e franceses.
CC – Como deveria ser, então, a política de imigração para o bloco?
LD – Muito liberal e aberta, o que não ocorre nem na Dinamarca nem na Finlândia. É muito difícil unificar essas políticas de imigração, porque sempre que há essa tentativa existe uma reação imediata. Assim, o controle de fronteiras continua sendo uma prioridade dos Estados.
* A repórter viajou a convite da Flica
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Reportagem por Marsílea Gombata — publicado 13/11/2014 05:28
Fonte: REvista Carta Capital online, 14/11/2014
Sociedades com tradição democrática estão se tornando intolerantes. Em países como França e Holanda, cada vez mais pessoas projetam suas frustrações em imigrantes ou minorias étnicas. Em outros países, essa “política de intolerância” se reflete contra gays e lésbicas. Trata-se, portanto, de uma “abordagem seletiva”, afirma o lituano Leonidas Donskis.
No Brasil para a 4ª Festa Literária Internacional de Cachoeira, que ocorreu no Recôncavo Baiano, o filósofo esteve encarregado de analisar o extremismo e a intolerância que tomam conta, de maneiras diferentes, da União Europeia hoje. “Um dos maiores problemas hoje na Europa é o fato de as pessoas tentarem explicar sua falta de tolerância referindo-se à cultura, aos valores e à tradição. E eu, como filósofo, não entendo o que eles querem dizer com 'valores e tradição'. Toda sociedade está mudando, a vida está mudando o tempo todo em todo lugar. Que tipo de valores e tradição as pessoas têm em mente? Eu realmente não sei...”, disse em entrevista a CartaCapital.
Co-autor de Cegueira Moral (Zahar), livro que traz cinco diálogos do professor de ciência política da Universidade de Vytautas Magnus (Lituânia) com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Donskis é um importante ativista de direitos humanos em seu país e foi nomeado em 2004 Embaixador da Tolerância e Diversidade na Lituânia pela Comissão Europeia. Além disso, atuou como membro do Parlamento Europeu entre 2009 e 2014.
Abaixo, alguns trechos da entrevista:
CartaCapital – Intolerância é um tema sobre o qual ouvimos falar cada vez mais nos dias de hoje. O senhor acredita que o mundo hoje está mais intolerante? Onde isso fica mais evidente no nosso cotidiano?
Leonidas Donskis – Bem, eu diria que sim e não. A União Europeia, por exemplo, está passando por um momento delicado porque há alguns países com tradição de tolerância e democracia onde há menos tolerância em relação a certas minorias e povos. Por exemplo, a França, onde vem ocorrendo uma forte expansão da Frente Nacional, ou mesmo a Holanda, com o Partido da Liberdade.
Esse quadro é perturbador porque a Frente Nacional é completamente xenófoba e racista, enquanto o Partido da Liberdade é absolutamente contrário a muçulmanos e também xenófobo. E os representantes desses partidos, como Marie Le Pen, serão membros do Parlamento Europeu pelos próximos cinco anos. Eles foram eleitos, o que mostra que não são exceção e não estão sozinhos.
Em sociedades como a França ou a Holanda existe o costume de se conviver com pessoas diferentes, de outras culturas, raças, religião, sociedade. Mas há cada vez mais aqueles que projetam sua insatisfação, frustração e raiva em relação ao desemprego, falta de oportunidades e crise econômica em imigrantes, migrantes e minorias. A imigração, portanto, é um tema sensível à Europa, como também é a igualdade de direitos quando se tratam de gays e lésbicas. É o caso do meu país, que é bastante homofóbico. Assim, acredito que a “política de intolerância” acabe sofrendo uma abordagem seletiva.
CC – Esse quadro é visto, pelo senhor, como consequência da crise econômica que o bloco vem enfrentando?
LD – Creio que a crise econômica pode ter facilitado essa insatisfação, frustração, esse desencanto. As pessoas tentam explicar sua miséria ou falta de dinheiro colocando a culpa nos imigrantes, algo muito semelhante ao que aconteceu com os judeus na Europa. Um dos maiores problemas hoje é o fato de as pessoas tentarem explicar sua falta de tolerância referindo-se à cultura, aos valores e à tradição. E eu, como filósofo, não entendo o que eles querem dizer com “valores e tradição”. Toda sociedade está mudando, a vida está mudando o tempo todo em todo lugar. Que tipo de valores e tradição as pessoas têm em mente? Eu realmente não sei...
Existe, portanto, um lado de se culpar os imigrantes pelas condições econômicas. Mas, por outro lado, vejo que nossas classes políticas não são consistentes na Europa. Elas defendem os direitos humanos em alguns aspectos, mas falham em defendê-los em outros. E testemunhei isso como membro do Parlamento. Quando não se trata de sua própria agenda, eles preferem se silenciar em relação a problemas inconvenientes, como no caso da crise da Ucrânia ou mesmo quando a Rússia aprovou a lei na qual trata ONGs como "agentes estrangeiros".
Eu diria que uma política de direitos humanos consistente na Europa continua a ser um desafio para nós. Podemos pensar sobre alguns indivíduos, mas eu não diria que estamos a ponto de nos unir e chegar a um consenso sobre uma política unificada de direitos humanos. Há muitas discrepâncias internas.
CC – Como combater a intolerância? Sendo tolerante com a intolerância ou tomando medidas de intolerância?
LD – Não podemos ser ingênuos em relação a isso. Claro que há sociedades mais democráticas, sociedades que lograram atingir maiores políticas de direitos humanos, mas a intolerância ainda é mais presente do que políticas democráticas. Algumas sociedades, inclusive, são governadas por líderes autoritários. Países, por exemplo, como Cazaquistão ou Azerbaijão, onde o islã é secular, onde a luta contra o islamismo radical não é uma questão, há mais tolerância em termos de coexistência religiosa, mas quando falamos de instituições democráticas, direito de consciência, direito de criticar algo, as coisas se tornam um pouco problemáticas. Você não pode criticar o governo abertamente, por exemplo, não pode levantar sua voz contra algo que não concorda. Então é possível, sim, combinar tolerância em sociedades de países governados por líderes autoritários.
CC – Por que hoje parece tão difícil convivermos com o diferente?
LD – Acredito que somos seletivos. Celebramos algumas diferenças, mas à distância. Gostamos de ir a restaurantes japoneses e chineses, gostamos de culturas diferentes. Mas quando se trata de viver no meio dessas pessoas, é outra história. Somos entusiastas em celebrar o que está longe, quando não o vemos, não o ouvimos. Então fica tudo muito conveniente: eu adoro a comida e costumes deles, mas não vivo entre eles e sim com meus semelhantes. Eu celebro diferenças quando as consumo, mas quando se trata de coexistir ou mesmo de ser responsável pelos diferentes, não celebro tais diferenças. E o consumo é a maneira mais fácil e superficial de lidar com o “problema”, quando há outras mais profundas e complexas, mas muito mais significativas.
CC – A União Europeia era vista como o maior modelo de integração do mundo atual, mas isso vem sendo questionado depois de ter havido um efeito dominó por conta da crise financeira de 2008. Quais seriam os próximos desafios do bloco?
LD – Acredito que o desafio da crise econômica continua para a Grécia, a Espanha e a Itália, especialmente, que é uma economia extremante forte e importante. Os próximos desafios serão sobre secessão e separatismo. A Europa precisa de solidariedade e de uma política econômica que requeira isso também. Mas é difícil falar em igualdade e solidariedade, por exemplo, entre Alemanha e Grécia, quando um é credor e o outro, devedor. É difícil admitir, mas o fato é que a União Europeia, apesar de eu ser um grande entusiasta da ideia, é uma organização hierárquica. Não temos igualdade entre os Estados-membros, mas sim uma hierarquia muito forte entre países.
CC – Então ainda não temos uma integração completa...
LD – Ainda não. Eu realmente acredito que a União Europeia é uma perfeita instituição e organização para se trazer paz, de onde pode vir nossa estabilidade e prosperidade. Então, eu realmente acredito no futuro do bloco, mas ainda temos desafios como desigualdade entre países e cidadãos, sendo alguns considerados como de “segunda classe” dentro do bloco. Búlgaros e romenos, por exemplo, não são “iguais” a alemães e franceses.
CC – Como deveria ser, então, a política de imigração para o bloco?
LD – Muito liberal e aberta, o que não ocorre nem na Dinamarca nem na Finlândia. É muito difícil unificar essas políticas de imigração, porque sempre que há essa tentativa existe uma reação imediata. Assim, o controle de fronteiras continua sendo uma prioridade dos Estados.
* A repórter viajou a convite da Flica
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Reportagem por Marsílea Gombata — publicado 13/11/2014 05:28
Fonte: REvista Carta Capital online, 14/11/2014
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