Entrevista. Arthur Caplan*
A capa da People, a mais popular revista de celebridades
americana, costuma ser reservada a fotos retocadas de Jennifer Lawrence
ou a astros populares cuja morte traumatiza o país, como foi o caso
recente do suicídio de Robin Williams. Além de uma longa história de
dependência de drogas e depressão, Williams começara a ter sintomas da
doença de Parkinson.
Mas nada ampliou tanto o impacto do contraste entre vida e
morte quanto o belo rosto de Brittany Maynard estampado na capa da
revista, na última semana de outubro, ao lado da manchete: “Minha
Decisão de Morrer”. Maynard, de 29 anos, diagnosticada com um agressivo
tumor no cérebro no começo do ano, morreu pelas próprias mãos, na
companhia de família e amigos no último fim de semana, ao ingerir uma
dose de barbitúricos sob prescrição médica. Ela se mudou para o Oregon
por ser um dos cinco Estados americanos que legalizaram o suicídio
assistido para pacientes terminais.
Mais que a escolha de morrer com dignidade, a decisão de
compartilhar com o mundo os detalhes da opção e seus motivos torna
Maynard um marco na história da morte voluntária. O debate começou nos
anos 1980, quando Derek Humphry fundou na garagem de sua casa em Santa
Mônica, Califórnia, o primeiro de uma rede de grupos do movimento
Direito à Morte, hoje reunido sob a fundação Compaixão e Escolhas. Em
1975, Humphry tinha assistido ao suicídio da mulher, em estágio avançado
de câncer de mama, e publicou um best-seller, Final Exit (saída final).
Nos anos 1990, o controvertido médico Jack Kevorkian ajudou
Janet Adkins a se suicidar com uma dose de barbitúricos. A figura
sinistra de Kevorkian, morto em 2011 e vivido num filme por Al Pacino,
provocou um retrocesso legal, na opinião do respeitado bioeticista
americano Arthur Caplan. Ele depôs contra o homem apelidado de Doutor
Morte no primeiro dos quatro processos que Kevorkian enfrentou, em 1994.
Caplan dirige a divisão de Ética Médica do Langone Medical Center da
Universidade de Nova York e recebeu o Aliás em casa para falar da semana
que mudou o debate do suicídio assistido.
Por que o sr. apoia a decisão de Brittany?
Acredito que foi uma decisão ética porque ela sabia o que
queria, era adulta, capaz e preferiu não se submeter ao tratamento
paliativo do estágio avançado da doença. Não queria perder o controle
sobre seu corpo e mente. Acredito que não tenha sofrido pressão, fazendo
uma escolha sobre a qual refletiu.
O sr. cita Oregon como exemplo de bom senso na legislação sobre suicídio assistido.
Oregon tem a lei do suicídio assistido há 17 anos e por isso já temos
estatísticas. Menos de 1 em 500 pessoas com doenças terminais solicita
as pílulas e entre as que pedem um terço decide não tomar os
barbitúricos. Isso me leva a crer que não haja pressão em grande escala
sobre pacientes, nenhum tipo de conspiração. As pessoas estão fazendo a
escolha raramente, o que me faz acreditar em algo mais: tornar o método
disponível vem evitando que mais pessoas se suicidem, como acontece em
Estados e países onde o procedimento é ilegal. As pessoas se suicidam
com armas de fogo, se jogam na frente de trens. A opção legal do
suicídio assistido acalma o paciente, que sempre pode voltar atrás.
Quais os passos necessários para recorrer ao suicídio assistido no Oregon?
Muita gente teme que, se médicos vão prestar assistência ao
suicídio, corremos o risco de ver o procedimento aplicado a doentes
mentais e até a pessoas temporariamente deprimidas. Não aconteceu nada
disso no Oregon. Mas pode acontecer em outros países, como Bélgica,
Holanda e, em menor grau, Suíça. No Oregon há supervisão e controles
estritos. A pessoa tem que ter uma doença terminal certificada por dois
médicos e competência mental certificada por psicólogo ou psiquiatra. É
preciso solicitar as pílulas três vezes, a intervalos de um mês. Em
seguida, o paciente tem que decidir ingerir as pílulas por conta
própria; se outra pessoa ajudar, é homicídio. O paciente tem que
informar a polícia e o departamento de saúde pública local. Assim, há
relatórios dos médicos envolvidos. Processo muito diferente de quando o
dr. Jack Kevorkian ajudava as pessoas a se suicidarem no compartimento
traseiro de sua caminhonete, sem nenhuma supervisão. Creio que alguns de
seus pacientes não tivessem competência mental para decidir, ou
tivessem impedimentos físicos, sem serem doentes terminais.
O suicídio assistido ocorre com frequência onde é ilegal? A Justiça ignora essa prática?
A prática de apressar a morte de doentes terminais vem de muito
tempo. Há 25 anos fizemos uma pesquisa anônima entre enfermeiros num
certo complexo hospitalar e 15% responderam que sim, tinham atendido a
pedidos de pacientes que queriam morrer mais rápido. Não há dúvida de
que acontece, sou testemunha. O paciente está desesperado de dor e o
médico aumenta a dose do tratamento paliativo sabendo que há o risco de
morte. Com exceção de um caso na Califórnia, há mais de 20 anos, não
acredito que nenhum médico ou enfermeiro tenha sido processado por dar
esse tipo de assistência. À exceção de Kevorkian, que fez questão de se
filmar e mostrar na TV. Acredito que promotores desviem sua atenção
porque dificilmente vão obter condenação. Juízes e jurados teriam
simpatia pelo réu.
E a questão da disparidade econômica no acesso ao suicídio assistido?
Os ricos, é claro, têm mais acesso à medicina que os pobres.
Têm relacionamentos longos com médicos particulares. Os pobres são
atendidos por pessoas diferentes em centros de saúde ou emergências. Uma
conversa típica que conheço é: ‘Sra. Smith, não deve tomar mais que 20
destas pílulas, 20, compreendeu?’. E a sra. Smith vai obtendo mais
receitas e guardando as pílulas. É uma espécie de conluio, mas não vejo
acontecer entre os pobres ou entre quem não tenha um vínculo forte com
seu médico. É preciso o médico confiar no paciente, saber que ele vai
fazer a escolha no momento certo, esteja mentalmente são e não vá passar
as drogas para uma terceira pessoa. Então, sim, quando o suicídio
assistido é ilegal, se torna um privilégio para os afluentes.
Por que decidiu ser testemunha no primeiro dos quatro julgamentos de Kevorkian, em 1994, em que ele acabou absolvido?
Fui testemunha do promotor no julgamento pela morte de Janet
Adkins, ironicamente, uma mulher do Oregon. Ela tinha sido diagnosticada
com o mal de Alzheimer, foi para Michigan e disse a Kevorkian que não
queria enfrentar a doença. Não estava num estágio terminal. De fato,
sofria apenas de alguma perda de memória. Ele conversou apenas três dias
com ela. Em seguida, ajudou-a a morrer com o mecanismo que ele tinha
inventado, em que o paciente puxa a alavanca. Batizou o mecanismo de
Thanatron, máquina da morte, numa referência ao deus grego da morte,
Tânatos. Kevorkian contratou um advogado extravagante e disse que era
seu dever ajudar a paciente. Não foi condenado porque não havia então
lei sobre suicídio assistido em Michigan, e o Estado tratou logo de
passar uma lei. Não me oponho ao envolvimento médico no suicídio
assistido, mas acho que Kevorkian ultrapassou o limite ético. Ele não
conhecia bem os pacientes. A autópsia de Janet Adkins revelou que ela
não tinha o mal de Alzheimer. Kevorkian demonstrava entusiasmo impróprio
com o dilema do suicídio assistido, e não pedia avaliação psiquiátrica
ou neurológica. Minha impressão é que ele ficou fora de controle, não
que estivesse errado sobre o debate. Como resultado, o movimento pela
morte digna sofreu um retrocesso porque ele assustou o público.
Qual a importância de Derek Humphry, autor do best-seller Final Exit e fundador do grupo Compaixão e Escolhas?
Nos anos 1980, Humphry defendeu uma posição impopular porque
acreditava no suicídio assistido sem médico. Ele dava instruções sobre
como colocar um saco plástico na cabeça ou tomar uma dose específica de
certas pílulas. Era uma espécie de movimento de autoajuda que tem uma
variação na Suíça com o Grupo da Dignidade. Lá, eles se encontram,
providenciam receitas para drogas, mas médicos não estão presentes, não
há relatório e acontece com permissão do governo. Isso me deixa um pouco
nervoso porque a falta de supervisão pode levar a abusos contra
pacientes.
O que pensa da lei sobre eutanásia de crianças aprovada na Bélgica no início do ano?
A posição americana é respeitar a escolha, permitir ao paciente
decidir terminar sua vida. A posição belga é, se a dor e o sofrimento
se tornam insuportáveis, as pílulas devem ser administradas. Então, ela
se aplica a doentes mentais ou crianças. Isso para mim é eutanásia, não
suicídio assistido. Na Bélgica, o médico pode avaliar inclusive a dor
emocional do paciente e isso me incomoda profundamente. Vejo como um
caminho para extermínio em que outro decide que sua vida não vale a pena
ser vivida. A diferença para mim é grande.
O Vaticano condenou o suicídio de Brittany Maynard. Como o sr. lida com a religiosidade de pacientes e suas famílias?
Quando converso com pacientes em dilema religioso, meu papel
não é tratar de sua fé e sim esclarecer as opções. O judaísmo e o
cristianismo têm, por exemplo, mártires, de modo que a tradição do
suicídio racional não lhes é estranha. Se o paciente conversa com seu
conselheiro religioso e decide que é inaceitável, destaco a importância
de providenciar assistência médica paliativa. A consciência do paciente
conta e, vamos ser justos, acredito que o catolicismo respeite a
consciência individual. O desafio, na minha posição, é saber que, se o
paciente espera tempo demais, pode perder a capacidade mental para
decidir.
A questão varia de cultura para cultura?
Sim, a cultura americana é dedicada à autonomia individual, a
meu ver, ao ponto de exagero, como por exemplo no debate sobre porte de
armas. Países como Brasil, Portugal e Espanha não têm o mesmo horror em
delegar decisões a terceiros ou especialistas. Não ficaria surpreso se o
Brasil não aprovar uma lei de suicídio assistido, não por causa da
Igreja, mas porque não tem o mesmo impulso individualista.
Vivemos mais e, portanto, passamos mais anos com pouca
qualidade de vida. O sr. vê um futuro em que idosos, mesmo sem doenças
terminais, escolherão a hora de morrer?
O que vejo é, em caso de certas doenças, o idoso pedir para
interromper um tratamento. Mas sabe o que percebo quando converso com
idosos frágeis? Sofrem menos por, digamos, perder a mobilidade do que
por perder os amigos. Não se sentem mais inseridos na cultura, detestam a
música, o que passa na TV. Então, acho que isolamento e desconexão,
tanto quanto decrepitude física, tornam os mais idosos infelizes.
Conheço muitos que reclamam o tempo todo, mas nunca decidem dar cabo da
própria vida, inclusive agnósticos que não sabem o que os espera. O
impulso de viver é muito forte.
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* Arthur Caplan é médico bioeticista e diretor de Ética Médica do Langona Medical Center, da Universidade de NY
REPORTAGEM POR Lúcia Guimarães de NOVA YORK 08 Novembro 2014 | 16h 00
FONTE: Estadão online, 08/11/2014
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