José de Souza Martins*
Com o declínio das visitas aos cemitérios os finados morrem definitivamente, relegados à indiferença
e ao esquecimento
A declinante frequência de visitantes dos cemitérios no Dia de
Finados provoca apreensão sobre os fatores do declínio. Há uma ponta de
censura aos contemporâneos e à modernidade pelo desapego à tradição e
aos lugares da memória. Já em tempos recuados, quando os cemitérios
ainda eram recentes entre nós, um jornalista do Correio Paulistano
visitou os cemitérios da cidade, no Dia de Finados de 1898. Constatou
que poucos apresentavam sinais de que haviam sido objeto do interesse de
alguém, como a limpeza e a colocação de flores, não obstante o lugar
dos enterramentos fosse ainda considerado lugar sagrado. O progresso
material e a decorrente banalização da morte, o arrefecimento dos laços
de família e de amizade, afetaram ainda mais a observância do dia por
excelência do ritual do luto.
Desde então vem se robustecendo uma insidiosa segunda morte de
nossos mortos. Raramente temos consciência de que eles morrem uma
segunda e definitiva vez quando os relegamos ao esquecimento e à
indiferença em relação ao que foram para nós. Uma coisa é morrer
biologicamente, o que os antigos chamavam de “último suspiro”. Outra
coisa é a morte decorrente da cessação da relação interativa com quem se
vai. A morte mata um pouco, também, quem fica, que na morte do outro
perde uma de suas referências, perde a referência bilateral da
ressocialização contínua, que é o pilar da sociedade.
A ressurreição é mais comum e normal do que supomos. Nas aulas
de sociologia que eventualmente dou nos cemitérios para alunos do curso
de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP, segunda morte e
ressurreição são temas subjacentes e implícitos. A maioria nem se dá
conta de que a visita aos lugares da memória é um modo de resistir, em
nome do que os mortos foram, à segunda morte. Nossos mortos morrem de
novo quando nós os abandonamos pelo esquecimento. Renascem quando deles
nos recordamos, seja nas visitas a seus jazigos, seja nas conversações
em que os rememoramos.
Nunca encontrei Monteiro Lobato pessoalmente, mas me lembro
vivamente de um dia de 1948 quando a professora do terceiro ano do Grupo
Escolar Pedro Taques, na estação de Guaianases, um pequeno povoado de
gente muito pobre, comunicou aos alunos que ele havia morrido. E nos
disse que ele faria falta porque escrevera histórias para crianças como
nós. Mais tarde, quando tive dinheiro para comprar livros, eu
descobriria que histórias eram essas. E numa visita ao Cemitério da
Consolação fui visitar seu túmulo para ouvir as palavras de seu silêncio
que falam dentro de mim sobre a imortalidade de seu saber e de sua alma
de criança.
Tenho um número grande de conhecidos nos cemitérios de São
Paulo e de outros lugares. Gente que nunca vi, mas que mesmo na sua
morte deram vida à sociedade em que vivo. Já saí de minha casa, no
Butantã, só para visitar o túmulo do capitão Joaquim Távora no Cemitério
do Chora Menino, lá para os lados de Santana. Ele foi o grande
comandante da Revolução de 1924 que sonhou com um país que não chegou a
ver, democrático e próspero: fora abatido num ato de traição em combate
na Rua Vergueiro. Surpreendeu-me que, sepultado tão longe de seus
familiares e amigos, ainda haja quem mantenha limpa e bem cuidada sua
campa. Alguém que o ressuscita todos os dias em nome de uma generosa
consciência de pátria.
No Cemitério da Consolação, visito imaginariamente o túmulo,
que já não existe, de Emiliano, o filho do poeta Fagundes Varela. Em
horas tardias vinha o poeta chorar os versos do Cântico do Calvário
sobre um montículo de terra, na Quadra dos Anjos Pequenos, a dor pelo
seu menino que morrera de pobreza numa casa simples do bairro do Brás,
aos 3 meses de idade. Ainda posso ouvir seus versos soprados pela brisa
da manhã: “Eras na vida a pomba predileta / Que sobre um mar de
angústias conduzia / O ramo da esperança”.
Com frequência junto minha gratidão à Prece, do escultor Bruno
Giorgi, no túmulo de Armando Sales de Oliveira, criador da Universidade
de São Paulo. Milhares de brasileiros, de São Paulo e de outros
Estados, puderam estudar na melhor universidade pública do País graças à
decisão desse estadista que, em 25 de janeiro de 1934, a criou como um
grande e imorredouro gesto da civilização contra a barbárie. Não fosse
esse gesto eu mesmo e a maioria dos alunos que ali me ouvem nunca
teríamos tido a oportunidade de ingressar na universidade.
A ressurreição está também simbolizada na mais bela escultura
cemiterial que conheço, O Sepultamento, de Victor Brecheret. No
Cemitério da Consolação, ela celebra a vida cidadã de d. Olívia Guedes
Penteado e seu marido, patronos da formação de grandes artistas
paulistas. Mesmo que muita gente se mostre indiferente aos mortos e ao
que eles representam, a arte funerária dos nossos cemitérios fala pelos
ausentes e os povoa com a saudade do belo. Quem assume a grande missão
da emancipação dos seres humanos de suas misérias e carências, as da
matéria e as do espírito, nunca está só. Nem morre.
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* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de Uma
Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto, 2014)Fonte: Estadão online, 08/11/2014
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