No Brasil para conferências, sociólogo francês lança livro sobre transição do ‘homo economicus’ para o ‘homo eroticus’
PARIS — Os tempos atuais pertencem à razão sensível, às emoções e aos
afetos públicos, e o Brasil está na vanguarda nas experimentações das
novas realidades sociais deste início de século. A democracia
representativa é um sistema fracassado, e deve-se atentar para as
inovadoras formas do fazer político e de gestão do bem comum,
favorecidas pela horizontalidade promovida pelas novas tecnologias.
Estas são algumas das teses desenvolvidas ao longo dos anos pelo
sociólogo francês Michel Maffesoli, e aprofundadas em seu mais recente
ensaio, “Homo eroticus — comunhões emocionais” (Editora Forense
Universitária, 288 páginas, R$ 69).
Professor de Sociologia na Sorbonne, diretor do Centro de Estudos
sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário
(M.S.H.), Maffesoli costuma definir o Brasil como um “laboratório da
pós-modernidade”. Neste mês de novembro, o original pensador fará uma
série de conferências no país, nas quais explorará os temas
contemporâneos caros às suas pesquisas do cotidiano da época
pós-moderna: no dia 9, em Búzios, no encerramento do XXII Congresso da
Associação Junguiana do Brasil; dia 10, no Rio, às 10h, na Associação
Comercial do Rio de Janeiro, e às 20h, no Midrash Centro Cultural; dia
11, em Brasília, às 14h20m, na abertura do seminário internacional
“Sociedade contemporânea: a imagem, o simbólico e o sensível”, na
Universidade de Brasília (UnB), e dia 12, às 11h, em Niterói, na
Universidade Federal Fluminense (UFF).
Segundo o senhor, o “homo eroticus” seja talvez o filho
indigno da modernidade, mas é o filho legítimo da pós-modernidade. Quem é
este homo eroticus e como ele se inscreve no mundo de hoje?
Nossa época vive uma mudança de paradigma, de mudança de sistema de
valores. Traduzo isso pela metáfora da passagem do “homo economicus” ao
“homo eroticus”. Não se trata, obviamente, de um erotismo no sentido
realista do termo, mas sobretudo de um significado “erótico social”. O
“homo economicus” encarnava os últimos séculos, centrados na produção e
no crescimento econômico, na mercantilização das trocas, toda uma vida
voltada para a acumulação do patrimônio. Já o indivíduo pós-moderno não
se define por seu status social ou profissional, seu nível econômico e
de formação, mas essencialmente por sua relação com o outro. É este
relacionismo que constitui a característica essencial do “homo
eroticus”: eu vivo e sinto pelo e graças ao outro.
De que forma a técnica e seu desenvolvimento favorecem mais
hoje a emoção, a sensibilidade e o retorno aos afetos à praça pública,
como o senhor assinala, do que o racionalismo abstrato?
Se retomarmos as análises de Max Weber, a técnica e a racionalização
teriam levado a um desencantamento do mundo. É o que Jean-Paul Sartre
chamava de serialização. A organização da indústria taylorizada e da
administração burocrática são os exemplos mais emblemáticos. Esta
tecnicização, este produtivismo, esta ideologia do progresso culminou
nas devastações do mundo que se conhece, gulags e genocídios,
catástrofes ecológicas etc. Mas a técnica não determina os usos sociais,
são os modos de vida e o ambiente da época que ditam o uso das
tecnologias. E, paradoxalmente, as novas tecnologias se tornaram
auxiliares à expressão de novas formas de viver. A expressão imediata
das emoções, a comunhão de sentimentos e de afetos são lançados pelo uso
das redes sociais. Internet é uma mídia adaptada à nossa época
relativista e relacionista, presenteista e hedonista. As diversas
rebeliões juvenis no Brasil em 2013 são uma excelente ilustração de um
“net-ativismo” aliando as paixões e o desenvolvimento tecnológico.
‘Indivíduo pós-moderno não se define por seu status social, mas por sua relação com o outro'
Há alguns anos o senhor define o Brasil como “um laboratório
da pós-modernidade”, embora assinale que os brasileiros não têm
consciência disso. Poderia explicar?
O tripé moderno era trabalho, racionalismo, progressismo. O tripé
pós-moderno é criação ou criatividade, razão sensível e progressividade.
Estes são, certamente, os três elementos que são característicos da
sociedade brasileira contemporânea. Mas no Brasil, como na Europa, é
preciso distinguir entre a opinião publicada, aquela dos jornalistas,
universitários, políticos, dirigentes, dos que têm o poder de dizer e de
fazer a opinião pública, e aquela que se exprime pelos comportamentos e
rituais da vida cotidiana. Certamente, o Brasil das elites não é
consciente deste verdadeiro potencial. Que não é tanto econômico, em
todo caso no sentido do produtivismo e do crescimento a qualquer custo,
quanto antropológico e cultural. As elites brasileiras, como as elites
do mundo inteiro, pensam em termos de poder, de rentabilidade, de
controle da natureza. É uma concepção do mundo que só pode levar a
catástrofes e ao desencantamento que se conhecem. Sempre me pareceu que
existia no Brasil uma forma de consciência popular de inutilidade desse
economicismo e uma capacidade coletiva de encontrar sem cessar novas
formas de expressão das emoções coletivas, de trocas afetivas, enfim, de
solidariedades comunitárias. As grandes figuras de reunião conhecidas
internacionalmente, que são o futebol, a música, a dança, são um
testemunho. Mas também o são uma quantidade de comportamentos coletivos
cotidianos, como as reuniões dominicais nos bairros ou nas praias, as
formas de contestação contemporâneas ligadas na maioria das vezes a
reivindicações de mobilidade e, em geral, ao espetáculo das ruas nas
cidades brasileiras.
O senhor nunca votou na vida, não acredita no poder do voto
nem no discurso dos valores da República. Neste contexto, como o senhor
acompanhou as recentes eleições no Brasil?
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Parece-me que a democracia representativa, este sistema no qual os
eleitores delegam o poder de decisão das instituições e dos modos de
vida em comum a especialistas não é mais pertinente. O alto índice de
abstenção nos países em que o voto não é obrigatório testemunha uma
certa versatilidade dos eleitores. Os indivíduos não se sentem mais
representados, e então não consideram mais que o Estado represente o bem
comum, e as decisões dos representantes do Estado, o interesse geral.
Mas há diferentes formas possíveis de gestão e de organização da coisa
pública, a res publica. Me parece que estamos experimentando
estas novas formas de gestão do bem comum, que não passa mais pela
abstração da delegação nacional, mas pela multiplicação das experiências
locais. Os fenômenos de descentralização, de autonomia dos Estados, de
desenvolvimento das ONGs, mas também dos movimentos informais são um
testemunho disso. As recentes revoltas no Brasil, que são mais a
afirmação de um sentimento e de emoção coletivos do que de
reivindicações materiais e individuais são um exemplo. É preciso estar
atento, porque na falta de se encontrar modos de expressão adequados
para essas experiências e paixões comuns, elas podem degenerar em
tumultos. A aculturação das novas tecnologias e dos novos modos de
comunicação possui um potencial de inovação social que constitui uma das
riquezas do Brasil. É por isso que penso que este país é um dos
laboratórios da pós-modernidade, sinergia do arcaico e das novas
tecnologias.
O senhor aprecia a fórmula de Leonardo da Vinci, “ostinato
rigore”: pensar com um rigor obstinado o que é e não o que se gostaria
que fosse. É uma fórmula pouco utilizada hoje na sua opinião?
Da Vinci era artista e artesão, quer dizer que agia segundo um
empirismo bastante formalizado. É este vai e vem inteligente entre a
teoria e a observação que procurei promover, me inscrevendo na corrente
sociológica “compreensiva”, de Max Weber e de George Simmel, e também de
Gilbert Durand. Sempre disse aos meus estudantes brasileiros que é
importante ir para a biblioteca e para a rua. Na verdade, é importante
para os pensadores se alimentar da tradição, do tesouro daqueles que
pensaram e escreveram antes deles, e ao mesmo tempo viver a experiência
da vida cotidiana. Esta postura está, efetivamente, bastante distanciada
daquela de muitos intelectuais que se tornaram um tipo de “engenheiros
do social”. Eles substituíram os livros de literatura, de filosofia e de
história pela leitura de estatísticas e de revistas e pela observação
emergida das mensagens políticas. Desta forma, não é mais o mundo tal
como é que tentam compreender, mas o mundo como eles gostariam que fosse
que eles promovem. Procurei ao longo de minha carreira universitária e
por meio da minha obra desenvolver um pensamento que não seja agressivo e
dogmático, mas terno e relativista. A reabilitação do cotidiano, do
imaginário, dos sonhos e da criação como primeiro terreno da existência
coletiva é a alavanca. Neste sentido, as numerosas trocas que pude ter
com colegas brasileiros e as viagens que pude fazer neste país
fertilizaram meu pensamento.
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Reportagem por Fernando Eichemberg
Foto: Didier Goupy / Divulgação
Fonte: Jornal o Globo online, 08/11/2014
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