sábado, 8 de novembro de 2014

Michel Maffesoli: 'O tripé pós-moderno é criação, razão sensível e progressividade'

 
Michel Maffesoli: ‘Indivíduo pós-moderno não se define por seu status social, mas por sua relação com o outro’
Foto: Didier Goupy / Divulgação

No Brasil para conferências, sociólogo francês lança livro sobre transição do ‘homo economicus’ para o ‘homo eroticus’

PARIS — Os tempos atuais pertencem à razão sensível, às emoções e aos afetos públicos, e o Brasil está na vanguarda nas experimentações das novas realidades sociais deste início de século. A democracia representativa é um sistema fracassado, e deve-se atentar para as inovadoras formas do fazer político e de gestão do bem comum, favorecidas pela horizontalidade promovida pelas novas tecnologias. Estas são algumas das teses desenvolvidas ao longo dos anos pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, e aprofundadas em seu mais recente ensaio, “Homo eroticus — comunhões emocionais” (Editora Forense Universitária, 288 páginas, R$ 69).

Professor de Sociologia na Sorbonne, diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário (M.S.H.), Maffesoli costuma definir o Brasil como um “laboratório da pós-modernidade”. Neste mês de novembro, o original pensador fará uma série de conferências no país, nas quais explorará os temas contemporâneos caros às suas pesquisas do cotidiano da época pós-moderna: no dia 9, em Búzios, no encerramento do XXII Congresso da Associação Junguiana do Brasil; dia 10, no Rio, às 10h, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, e às 20h, no Midrash Centro Cultural; dia 11, em Brasília, às 14h20m, na abertura do seminário internacional “Sociedade contemporânea: a imagem, o simbólico e o sensível”, na Universidade de Brasília (UnB), e dia 12, às 11h, em Niterói, na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Segundo o senhor, o “homo eroticus” seja talvez o filho indigno da modernidade, mas é o filho legítimo da pós-modernidade. Quem é este homo eroticus e como ele se inscreve no mundo de hoje?
Nossa época vive uma mudança de paradigma, de mudança de sistema de valores. Traduzo isso pela metáfora da passagem do “homo economicus” ao “homo eroticus”. Não se trata, obviamente, de um erotismo no sentido realista do termo, mas sobretudo de um significado “erótico social”. O “homo economicus” encarnava os últimos séculos, centrados na produção e no crescimento econômico, na mercantilização das trocas, toda uma vida voltada para a acumulação do patrimônio. Já o indivíduo pós-moderno não se define por seu status social ou profissional, seu nível econômico e de formação, mas essencialmente por sua relação com o outro. É este relacionismo que constitui a característica essencial do “homo eroticus”: eu vivo e sinto pelo e graças ao outro.

De que forma a técnica e seu desenvolvimento favorecem mais hoje a emoção, a sensibilidade e o retorno aos afetos à praça pública, como o senhor assinala, do que o racionalismo abstrato?
Se retomarmos as análises de Max Weber, a técnica e a racionalização teriam levado a um desencantamento do mundo. É o que Jean-Paul Sartre chamava de serialização. A organização da indústria taylorizada e da administração burocrática são os exemplos mais emblemáticos. Esta tecnicização, este produtivismo, esta ideologia do progresso culminou nas devastações do mundo que se conhece, gulags e genocídios, catástrofes ecológicas etc. Mas a técnica não determina os usos sociais, são os modos de vida e o ambiente da época que ditam o uso das tecnologias. E, paradoxalmente, as novas tecnologias se tornaram auxiliares à expressão de novas formas de viver. A expressão imediata das emoções, a comunhão de sentimentos e de afetos são lançados pelo uso das redes sociais. Internet é uma mídia adaptada à nossa época relativista e relacionista, presenteista e hedonista. As diversas rebeliões juvenis no Brasil em 2013 são uma excelente ilustração de um “net-ativismo” aliando as paixões e o desenvolvimento tecnológico.

 ‘Indivíduo pós-moderno não se define por seu status social, mas por sua relação com o outro'

Há alguns anos o senhor define o Brasil como “um laboratório da pós-modernidade”, embora assinale que os brasileiros não têm consciência disso. Poderia explicar?
O tripé moderno era trabalho, racionalismo, progressismo. O tripé pós-moderno é criação ou criatividade, razão sensível e progressividade. Estes são, certamente, os três elementos que são característicos da sociedade brasileira contemporânea. Mas no Brasil, como na Europa, é preciso distinguir entre a opinião publicada, aquela dos jornalistas, universitários, políticos, dirigentes, dos que têm o poder de dizer e de fazer a opinião pública, e aquela que se exprime pelos comportamentos e rituais da vida cotidiana. Certamente, o Brasil das elites não é consciente deste verdadeiro potencial. Que não é tanto econômico, em todo caso no sentido do produtivismo e do crescimento a qualquer custo, quanto antropológico e cultural. As elites brasileiras, como as elites do mundo inteiro, pensam em termos de poder, de rentabilidade, de controle da natureza. É uma concepção do mundo que só pode levar a catástrofes e ao desencantamento que se conhecem. Sempre me pareceu que existia no Brasil uma forma de consciência popular de inutilidade desse economicismo e uma capacidade coletiva de encontrar sem cessar novas formas de expressão das emoções coletivas, de trocas afetivas, enfim, de solidariedades comunitárias. As grandes figuras de reunião conhecidas internacionalmente, que são o futebol, a música, a dança, são um testemunho. Mas também o são uma quantidade de comportamentos coletivos cotidianos, como as reuniões dominicais nos bairros ou nas praias, as formas de contestação contemporâneas ligadas na maioria das vezes a reivindicações de mobilidade e, em geral, ao espetáculo das ruas nas cidades brasileiras.

O senhor nunca votou na vida, não acredita no poder do voto nem no discurso dos valores da República. Neste contexto, como o senhor acompanhou as recentes eleições no Brasil?
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Parece-me que a democracia representativa, este sistema no qual os eleitores delegam o poder de decisão das instituições e dos modos de vida em comum a especialistas não é mais pertinente. O alto índice de abstenção nos países em que o voto não é obrigatório testemunha uma certa versatilidade dos eleitores. Os indivíduos não se sentem mais representados, e então não consideram mais que o Estado represente o bem comum, e as decisões dos representantes do Estado, o interesse geral. Mas há diferentes formas possíveis de gestão e de organização da coisa pública, a res publica. Me parece que estamos experimentando estas novas formas de gestão do bem comum, que não passa mais pela abstração da delegação nacional, mas pela multiplicação das experiências locais. Os fenômenos de descentralização, de autonomia dos Estados, de desenvolvimento das ONGs, mas também dos movimentos informais são um testemunho disso. As recentes revoltas no Brasil, que são mais a afirmação de um sentimento e de emoção coletivos do que de reivindicações materiais e individuais são um exemplo. É preciso estar atento, porque na falta de se encontrar modos de expressão adequados para essas experiências e paixões comuns, elas podem degenerar em tumultos. A aculturação das novas tecnologias e dos novos modos de comunicação possui um potencial de inovação social que constitui uma das riquezas do Brasil. É por isso que penso que este país é um dos laboratórios da pós-modernidade, sinergia do arcaico e das novas tecnologias.

O senhor aprecia a fórmula de Leonardo da Vinci, “ostinato rigore”: pensar com um rigor obstinado o que é e não o que se gostaria que fosse. É uma fórmula pouco utilizada hoje na sua opinião?
Da Vinci era artista e artesão, quer dizer que agia segundo um empirismo bastante formalizado. É este vai e vem inteligente entre a teoria e a observação que procurei promover, me inscrevendo na corrente sociológica “compreensiva”, de Max Weber e de George Simmel, e também de Gilbert Durand. Sempre disse aos meus estudantes brasileiros que é importante ir para a biblioteca e para a rua. Na verdade, é importante para os pensadores se alimentar da tradição, do tesouro daqueles que pensaram e escreveram antes deles, e ao mesmo tempo viver a experiência da vida cotidiana. Esta postura está, efetivamente, bastante distanciada daquela de muitos intelectuais que se tornaram um tipo de “engenheiros do social”. Eles substituíram os livros de literatura, de filosofia e de história pela leitura de estatísticas e de revistas e pela observação emergida das mensagens políticas. Desta forma, não é mais o mundo tal como é que tentam compreender, mas o mundo como eles gostariam que fosse que eles promovem. Procurei ao longo de minha carreira universitária e por meio da minha obra desenvolver um pensamento que não seja agressivo e dogmático, mas terno e relativista. A reabilitação do cotidiano, do imaginário, dos sonhos e da criação como primeiro terreno da existência coletiva é a alavanca. Neste sentido, as numerosas trocas que pude ter com colegas brasileiros e as viagens que pude fazer neste país fertilizaram meu pensamento.
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Reportagem por
Didier Goupy / Divulgação

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