As noções de sujeito e subjetividade
ganham na modernidade acepções especiais. A subjetividade moderna
engloba três instâncias centrais: consciência, identidade e autonomia. A
consciência é a instância que sabe e sabe que sabe. A identidade é o eu
que, apesar de mudanças de tempo e lugar, se vê como o mesmo. O sujeito
é a instância que delibera pensar e agir, e que assim o faz em situação
de consciência, inclusive consciência da identidade. Peter Sloterdijk
lembra bem que essa última instância requer um “desinibidor”, ou seja,
elementos que fazem o eu se por em movimento; em geral trata-se de seu
cabedal de narrativas e desejos, mais ou menos racionais. Além disso, se
queremos ampliar a noção de subjetividade incorporando uma visão
contemporânea, então também falamos de “inconsciente” e enveredamos
pelas tópicas de Freud e todo o saber da psicanálise e derivados.
Uma das formulações de Sloterdijk para o
sujeito moderno é útil aqui, nesse esclarecimento inicial:
“ser-‘sujeito’ significa tomar uma posição a partir da qual um ator pode
passar da teoria à prática. De ordinário, essa transição produz-se
quando um ator encontrou o motivo que o libera da hesitação e o
desinibe, de modo a possibilitar-lhe a ação”. E ele continua,
significativamente, em um trecho em que corrige lacanianos e católicos
ou criptocatólicos: “Quem quer se que encontre sob a influência de um
‘grande Outro’, seja ele Deus ou pátria, não é também um sujeito (…),
para o ser há que participar nas experiências da modernidade visando uma
formatagem psíquica das energias empresariais”. Essa experiência
moderna, a do empreendedor ou, em sentido lato, do empresário, não pode
ficar de lado na condição do sujeito: “Temos sempre de integrar esta
tarefa na reflexão quando falamos do ser-sujeito como de ‘uma ação por
conta própria’ ou como um pensamento autônomo”. Ou seja: “um empresário
vive sempre na transição para o agir ‘a partir de si próprio’, pelo que a
ponte para a ação se constrói ou manda construir é também feita de
interesses – entre os quais é perfeitamente possível encontrar
interesses racionais”. Desse modo, se para crer na “linguagem da
filosofia moderna, quem sabe interpretar corretamente os seus interesses
não obedece a mais ninguém senão à ‘voz da razão’. Por conseguinte,
basta proclamar a razão, no seu todo, como coisa própria, para libertar a
ação da suspeita de determinação exterior”. [1]
Que fique registrado: a subjetividade
moderna tende a ser o nome para uma instância maior que o sujeito, que
ao longo da modernidade se torna, em algumas passagens, um sinônimo de
intimidade, ainda que esta, não raro, possa ser tomada como interna
àquela. Por sua vez, o sujeito é menor que a subjetividade e depende
dessa disposição para a passagem da teoria à prática e autonomia para
tal. O sujeito faz isso por meio da sujeição. Isto é, se
sujeita às determinações de seu desinibidor que, enfim, é requisitado
por ele próprio – as narrativas motivacionais e racionais que permitem
torná-lo, então, um ator que age por si mesmo, um sujeito.
Ora, talvez seja desnecessário dizer que
essas observações encontram seu elemento de configuração histórica, em
síntese na filosofia moderna, no trecho de “Resposta à pergunta: que é Esclarecimento (Aufklärung)?”
(1783), de Kant. Este é o lugar que o filósofo alemão do século XVIII
diz que é “tão cômodo ser menor”, mas se expulsarmos de nós a “a
preguiça e a covardia” e dispensarmos tutores externos, então poderemos
usar do próprio entendimento e, dessa forma, sairmos da condição
infantil. “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [‘Auflärung’]”. [2]
Sloterdijk inova ao trazer como
autêntico primeiro sujeito moderno não um iluminista ou nem mesmo forças
protestantes luteranas, mas a força católica da Contra-Reforma. O
primeiro sujeito é, para ele, o jesuíta. Este é aquele que age motivado
pela preparação intelectual, moral e física sujeitando-se a um
desinibidor que ele incorpora a ponto de torna-lo praticamente
desnecessário: a vontade de Deus através do voto de obediência ao Papa.
Um voto que é tão seguido que o próprio Papa se vê, então, deixado de
lado.[3]
Levando adiante essa caracterização,
Sloterdijk chega a um curioso resultado: o sujeito sempre irá necessitar
desse desinibidor para ser sujeito, pois isso faz parte de sua própria
definição, mas o problema se revela quando o candidato a sujeito já não
tem mais a preparação do tipo da do jesuíta e, então, de modo esquisito,
requisita o desinibidor externo na forma de consultor. Sai de cena o
filósofo ou o ideólogo e inaugura-se o palco liberal povoado de empresas
de consultoria. Estas, por sua vez, produzem a desinibição heterônoma
em forma de máxima autonomia. Todos imaginam serem sujeitos quando, na
verdade, por esse processo, a última coisa que fazem é exercer alguma
atividade parecida com a de um deliberador por si mesmo. O sujeito
torna-se aquele que se sujeita sem com isso se tornar efetivamente um
sujeito segundo o consagrado pelo Iluminismo.
O homem se vê como homem se é sujeito, mas este, nessa hora, está amarrado em sua caracterização pelas determinações do personal training,
do consultor imobiliário, do consultor religioso ou mediúnico ou
terapêutico, do consultor de investimentos, do programa de TV que ensina
a cozinhar, dos inúmeros manuais – agora no Youtube – do “faça você
mesmo” e de uma lista de outros comandantes e conselheiros. Todos eles
em um mundo no qual o homem é supérfluo – pois outros homens ou máquinas
podem substituí-lo – e deve adquirir afazeres quaisquer que o mantenham
passivo no mais louco frenesi da vida moderna do trabalho maquinal.
Todos são sujeitos enquanto trabalhando se divertem. Pois só a diversão é
aparentemente o não maquinal e, assim, proporcional ao homem a sua
última sensação de ser especial. O mundo passa a ser o mundo do
entretenimento e tudo se faz segundo uma agenda motivacional que precisa
ser tão lúdica quanto o que se mostra a ludicidade típica dos programas
de TV, em especial os de tipo reality show.
Essa caracterização do sujeito moderno
não é um produto abrupto. Sloterdijk pode apresenta-la e teorizar sobre
ela, inclusive refazendo-a de modo talvez menos pessimista, ao esboçar
sua esferologia. Nesse caso, tem de ultrapassar o vagalhão negativo em
relação ao sujeito na filosofia contemporânea.
A noção de sujeito moderno é o alvo da
filosofia contemporânea. Esta, por sua vez, fez alguns movimentos
radicais contra o sujeito: ou o criticou para descartá-lo de vez ou o
criticou para repô-lo de modo novo ou fragmentado ou dividido, ou o
desconstruiu simplesmente para por no seu lugar a pura exterioridade ou,
então, fez dele uma peça visível por conta de comportamentos de um ator
ou um “organismo”. Todavia, até que ponto esse movimento que se fez
contra a “filosofia do sujeito” não eliminou também da filosofia sua
capacidade de compreender o próprio sujeito e seus derivados
transformados? Afinal, a vida cultural contemporânea eliminou o sujeito
ao modo requisitado pelas observações contemporâneas? Não valeria a pena
ter em mãos uma filosofia que levasse a sério o sujeito e a
subjetividade, sem uma crítica que ao procurar riqueza em ovos acabe por
matar a própria galinha dos ovos de ouro?
Peter Sloterdijk é o filósofo que, entre
outras coisas, nos ajuda a repor à filosofia a capacidade de falar do
sujeito e da subjetividade de um modo mais rico, após o período contemporâneo de crítica.
Nesse período crítico a subjetividade
sofreu revezes a partir de quando o homem foi posto em continuidade com
os brutos (Darwin), e então a consciência se viu crivada por ideologias
(Marx), o sujeito foi tomado como uma mera cristalização executada sobre
a gramática (Nietzsche) e logo depois fatiado em tópicos quase que
autônomos (Freud). Na sequência ganhou uma interioridade vítima de
olhares desconfiados de sua existência (Wittgenstein), foi exposto como
dado de uma metafísica derradeira (Heidegger) e caiu na mesa da história
(Foucault) e da bancada de desconstruções (Derrida). Após receber
estocadas de desconsideração (Frege) tornou-se um aparato no organismo
(Quine) e, enfim, um falante sem interior (Davidson). No máximo
conseguiu ser vista como uma rede de crenças e desejos (Davidson/Rorty).[4]
Ora, por que Sloterdijk se faz
privilegiado nisso, ao menos ao meu olhar? Creio que o seu paradigma o
ajuda bastante. Sua pergunta filosófica chave é porta estandarte de seu
paradigma.
Sua pergunta filosófica essencial, “onde
estamos quando estamos no mundo”, o empurra para a tarefa de repensar a
subjetividade de modo não apressado. Afinal, na resposta à sua pergunta
ele não vê como evitar em dizer que estar no mundo é se por em fuga de
estar no aberto. O aberto ou o exterior é temeroso, um completo
desamparo. O homem não nasce, é um aborto, e por isso mesmo precisa ser
amparado. Ele busca se amparar. O homem é homem quando cria esferas
que são espaços imunológicos aclimatados e de ressonância de ao menos
dois polos. Em termos ontogenéticos (também há a versão em termos
filogenéticos), o homem vem de uma esfera aquática acompanhado de seu
duplo, o elemento placentário – seu parceiro, alimentador e ampliador.
Todo o trabalho que faz ao entrar para o aborto que é o nascimento é
tentar repor-se em esferas com novas ressonâncias e nova aclimatação
capaz de reproduzir a presumida harmonia inicial. Nesse caso, o homem
não nasce só. Sua aquisição da linguagem para a socialização e vice
versa não é a responsável exclusiva pela sua subjetividade na sua melhor
forma. Esta vem antes e já é dada por uma instância que pode garantir a
verdade da frase de Platão sobre o pensamento. “O pensamento é a
conversa da alma consigo mesma” – disse Platão. Sendo assim,
consciência, identidade e autonomia (e pode-se falar aí também, caso se
deseje, de inconsciente) estão já projetados para acontecer desde a
primeira situação de lugar, a primeira esfera.
Dizendo isso Sloterdijk quer levar a
sério os discursos antissubstancialistas e antiindividualistas da
filosofia contemporânea. No limite, naturaliza Platão para afrontar
Aristóteles. Busca o homem vindo da escuridão do mundo real das formas, a
placenta que acolhe o elemento que vive da sinestesia colocando-o como
alguém que possui uma “experiência” em favor de uma situação esférica
desde sempre relacional.
Todavia, se sua narrativa é apresentável
como plausível, ele tem de perguntar a razão pela qual essa sua teoria
passou despercebida por outros. Sua resposta é relativamente simples, e
de certo modo é a de praxe: os outros filósofos entraram por um cânone
filosófico que os levou muito rapidamente para um caminho improdutivo.
Na verdade, os filósofos modernos se dividiram entre os que fundaram o
modo de pensar liberal e os que morderam a isca da narrativa liberal.
Todas as suas narrativas fizeram do homem algo portador de alguma
substância, algo unitário e individual. Tiveram então de, para sair de
visões solipsistas do sujeito, criar a intersubjetividade. Depois,
quando a crítica contemporânea veio, apesar de trazer insights
maravilhosos, em parte ela qualificou a exterioridade e diluiu um pouco a
importância da subjetividade. De certo modo, talvez isso nunca tenha
sido outra coisa senão efeito do trança pés liberal, pois sempre a
subjetividade foi tomada como uma relação de duas unidades atômicas
individuais que se põe como sujeitos. O problema do cachorro atrás do
próprio rabo se coloca aqui facilmente.
Sendo assim, para derrubar a ideia de que estamos bem descritos se a narrativa que fala de nós descreve um “clube liberal”[5],
Sloterdijk tem de desmentir aqueles que estiveram à frente dessa
narrativa. Principalmente seus construtores principais. Ele realiza uma
“arqueologia da intimidade” de modo a construir uma narrativa na qual os
espaços íntimos sempre são no mínimo duplos, em forma de esferas, e com
isso, concomitantemente, fustiga os proprietários da narrativa liberal.
Em parte, Rousseau é o alvo das setas mais ferinas.
Ao menos em um primeiro momento,
Rousseau é o alvo. Ele é o polo negativo, adversário, na narrativa de
Sloterdijk. E se o melhor caminho para se falar de uma proposta
filosófica é toma-la no seu trajeto de aventura e combate, temos de
falar de Rousseau. Ora, mas Rousseau não agiu sozinho. Rousseau disse
trabalhar em projetos semelhantes, mas com propósito outro, de Montaigne
e Descartes. Ele se pôs, então, como herdeiro do Renascimento e da
Modernidade.
Como um típico filósofo do século XVIII, Rousseau trabalhou no campo da intentio obliqua:
na investigação filosófica não vamos diretamente à realidade para criar
narrativas verdadeiras e confiáveis, mas antes passamos por uma
instância, a tal subjetividade, que é o local ou de fabricação ou de
processamento ou de recolhimento da verdade. Discutem-se então critérios
de verdade inerentes ao funcionamento do aparato chamado
subjetividade. Assim, no “Profissão de fé do vigário saboiano”, interno
ao O Emílio ou Da educação (1772) Rousseau mostra seu projeto em semelhança a Descartes enquanto alguém que quer um critério de verdade. Em Os devaneios do caminhante solitário
(1776) Rousseau diz que seu projeto está em semelhança ao de Montaigne
enquanto alguém que quer desenhar a própria instância subjetiva, íntima,
no caso o eu ou, melhor ainda, o si-mesmo.
Retomo Montaigne e Descartes para então, depois, voltar a Rousseau.
Montaigne fala da consciência em um tópico com este mesmo nome em seus Ensaios (1588).[6]
Ele conta sobre um homem que tinha pavor de cruzar com outros
cavaleiros. Pois, em meio à guerra de religião, sendo todos os lados
muito parecidos, o que restava quando se encontrava o inimigo era tentar
fechar a boca e passar como sendo um deles, e nisso esse tal homem
oscilava entre achar que conseguiria e também pensar que não conseguiria
fingir. Em ambos os casos, Montaigne diz que se trata de um trabalho de
sua consciência. Ela seria requisitada para fingir e, ao mesmo tempo,
parecia ser o elemento que poderia lhe trair.
Não é difícil entender isso, sem que
seja necessário ultrapassarmos o Renascimento. O indivíduo aí envolvido é
um eu que atua com consciência, identidade e autonomia. É um sujeito.
Trata-se de um eu que sabe que é um inimigo dos que estarão à sua frente
logo, no cruzamento, e nisso consiste seu saber, mas que também sabe
que sabe esse saber. Sendo assim, pode-se colocar como um segundo eu que
olha para o primeiro como se estivesse de fora. Isso o amedronta.
Afinal, se ele é um eu que olha de fora e vê tudo, o outro que é um eu
que já está fora também pode ver tudo – descobriria assim o segredo. A
partir daí o atacaria e o mataria. Montaigne diz exatamente isso: a
consciência guarda o segredo e então é aquele espaço que pode se
desnudar sem querer. Pode-se atuar deliberadamente para que não faça
isso, mas ter esse controle garantido, de modo a fazer cessar o medo
antes da ocorrência do encontro, não é possível. Só depois de cruzar com
os cavaleiros se saberá que a tomada de decisão por fingir foi bem
sucedida.
O critério de verdade aí é contingente.
Não há garantias que ele seja alcançado de modo a dar a alguém, diante
de uma situação, a capacidade de circunscrever o que é a verdade e o que
não é. Nesse caso, o sujeito antes aparece para se constituir como eu
que para fundar uma epistemologia e então abrir caminho para a
construção do conhecimento. Por isso mesmo ou como resultado disso
Montaigne namorou o ceticismo.
Ora, Descartes começou com o ceticismo, mas de maneira metódica. É isso o que faz em suas Meditações metafísicas (1641).[7]
Seu objetivo era encontrar um ponto sólido para ver se o que até então
sabia era verdadeiro ou não e, ao mesmo tempo, obter um procedimento ou
um elemento que lhe fornecesse condições de avaliar se estaria ou não
com a verdade em investigações futuras. Ele suspende todos os juízos que
avalia vir de faculdades sensíveis, tomando-os como sempre enganosos.
Suspende todos os juízos vindos do que conjectura vir de seu próprio
pensamento (de maneira inata) por meio da hipótese do gênio maligno, um
elemento interior ao pensamento que sempre lhe estaria engando toda vez
que ele pensasse. Bem, uma vez assim, logo percebe que se o gênio iria
lhe enganar toda vez que pensasse, mesmo que estivesse sempre pensando
algo errado, ainda sim estaria pensando. O pensamento seria então o
existente básico. “Penso, logo sou”. Eis aí a “certeza do Cogito” – um ponto arquimediano e ao mesmo tempo um método para encontra verdades “claras e evidentes”.
Isso deu a Descartes o seu critério de
verdade e seu “fundamento”. Mas não lhe deu as características do eu.
Este, por sua vez, é tecido à medida que ele percorre as suas Meditações e amplia o seu Cogito
ou sua alma com aspectos psicológicos em conjunto com a articulação
entre o sensível e o suprassensível, na famosa estrutura corporal que
envolve sua “glândula pineal”, o lugar pelo qual os “espíritos animais”
do corpo adentram de modo a fazer vibrar o que não é sensível. Um pouco
de pensamento quase mágico, nesse caso, ainda estava presente aí no pai
da modernidade!
Dos aspectos psicológicos recebidos pelo
eu cartesiano, então, talvez o principal tenha sido a configuração de
como que o indivíduo faz o seu erro comum. Cada um de nós erraria por
causa da pressa e do poder avassalador e infinito da vontade. O querer
em nós e o que nos aproxima do Criador em seu não limite. Nesse caso, a
vontade sempre pode atropelar o entendimento e força este a produzir
juízos errados. Não se trata de errar só pelas paixões, mas de errar até
mesmo pela vontade, exatamente porque o entendimento necessita de tempo
para elaborar a partir do “claro e distinto” as cadeias silogísticas e,
então, estabelecer conclusões e vereditos.
Ora, no capítulo “Profissão de fé do
vigário saboiano” Rousseau substitui esse procedimento cartesiano por
uma versão moralizada. Ele moraliza a epistemologia ao por a verdade em
função da honestidade. Há um trecho significativo sobre isso, citado
após ele mesmo dizer que estava cheio de dúvidas como Descartes, que
efetivamente disso isso nas Meditações. Rousseau diz:
“Tendo pois em mim o
amor da verdade como filosofia, e como único método único uma regra
fácil e simples que me dispensa da vã sutileza dos argumentos, volto com
esta regra ao exame dos conhecimentos que me interessam, resolvido
admitir como evidentes todos aos que, na sinceridade de meu coração,
não puder recusar meu assentimento, como verdadeiros todos os que me
parecerem ter uma ligação necessária com os primeiros, e deixar todos os
outros na incerteza, sem os rejeitar nem os admitir, e sem me
atormentar com os esclarecer desde que não me levam a nada de útil na
prática.” (grifo meu).[8]
Eis aí o critério de verdade: o coração
sincero. Antes da entrada da razão para dar o veredito, é necessário
recolher-se e diante de uma instância necessariamente moral e de
sentimento, dar o aval para o que se pode crer e o não assentimento para
o que não se pode crer. A intimidade é nesse caso o elemento
efetivamente avaliador. O juiz é interno, está longe então de ser algo
parecido com a “ideia clara e distinta” de Descartes que, enfim, deve
vir do que é possível de promovê-la a todos. Aqui, no caso
rousseauniano, pode-se querer ver cada homem munido de um coração
sincero tanto quanto Descartes quis que todo homem pudesse ser dotado de
razão para proferir a sabedoria da intuição intelectual “penso, logo
sou”. Mas a garantia de não se mentir para si mesmo, ainda que a quatro
paredes, é mais complicada do que não mentir diante da evidência da
intuição intelectual. Não temos como evitar dizer que Rousseau criou
algo para além do sujeito enquanto consciência, identidade e autonomia,
algo como a intimidade – um campo que englobaria o eu e o colocaria já
no interior enquanto reunião das instâncias subjetivas todas.
Essa sugestão de leitura de Rousseau que forneço me parece mais segura quando vamos adiante, vendo que, no mesmo livro, Emílio,
em parágrafos pouco distantes ele pergunta “quem sou eu?”. Sócrates fez
essa pergunta e procurou distinguir-se de deuses, monstros e animais.
Rousseau dirige-se diretamente ao que chama de “sentimento do eu”.
Distingue-se então pela sensação, mas por algo especial nessa sensação.
Ele divide o que é sensação do interior e sensação do exterior. Essa
dualidade abre espaço para o íntimo e o não íntimo e se faz necessária
para que o eu possa se por como uma instância recortada. O eu se
apresenta, então, não como uma substância chamada res cogitans
como em Descartes, nem algo como uma consciência que se mostra e se
esconde como em Montaigne. O eu é delimitado melhor na solidão. Esse eu é
o que Rousseau encontra em sua segundo autobiografia, Os devaneios do caminhante solitário.
Esse livro é fruto de seu retiro após
várias decepções e brigas. Conta nele que está ecluso em uma ilha na
qual passeia diariamente. Ao final de cada passeio escreve o que lhe
ocorreu. São devaneios, ele confessa. No registro da primeira caminhada
diz seu propósito: “Minha empresa é a mesma de Montaigne, mas com uma
finalidade totalmente contrária à sua: pois ele não escrevia seus
ensaios senão para os outros e eu não escrevo meus devaneios senão para
mim”.[9]
Assim fazendo, desenvolve uma teoria do eu que parece se apresentar em
três figuras, não com menos megalomania aparente que a daquele filósofo
que o elegerá como arqui-inimigo, Nietzsche, em especial em Ecce Homo. As três figuras são as da Santíssima Trindade.
Quase se diz Jesus ao ser crucificado
pelos homens, se diz mesmo Deus ao se tornar inatingível e impassível e,
por fim, praticamente se diz espírito santo ao se confessar ser uma
alma que, de certo modo, consegue momentos de pureza.
Rousseau inicia dizendo ter sido
expulso do convívio com os homens por eles mesmos. Ele é como o bom
selvagem que fez o contrato social e que agora se vê forçado em dizer a
todos que, para ele, o contrato não tem mais valor. Retira-se da
convivência social. Seu rosto de Jesus se apresenta na frase “teria
amado os homens a despeito deles próprios”.[10]
Mas, como teve de cair fora do campo humano, vê os homens perderem seu
afeto e se tornarem estranhos a ele. Nesse caso, em condições assim, que
ele avalia estranha, lança a questão “que sou eu mesmo?”.[11]
Dedica-se então, no registro das
caminhadas, ao seu desiderato: “entreguemo-nos inteiramente à doçura de
conversar com a minha alma, já que é a única coisa que os homens não
podem me tirar”. Na segunda caminhada descobre que “estas horas de
solidão e de meditação são as única do dia em que sou plenamente eu
mesmo e em que me pertenço sem distração, sem obstáculos e em que posso
verdadeiramente dizer que sou o que desejou a natureza”.[12]
Claro que aí se está de volta ao que no escrito sobre o vigário
saboiano é a condição para alcançar a verdade, a de solidão diante do
coração sincero; ora, é nessa hora, nessa intimidade, é que ele é ele
mesmo. Nessa situação da alma vive-se uma hora doce. Trata-se aí de uma
meditação, mas só no seu início ocorre alguma deliberação, isto é, a de
ficar só. Só assim age como sujeito que toma a dianteira e decide,
depois disso a meditação ganha uma conotação não cartesiana, não
investigativa, de puro devaneio, em um sentido que hoje até
confundiríamos com o que nos dizem popularmente os influenciados pelo
orientalismo. Nesse caso o critério de verdade dá espaço para a
construção do próprio eu enquanto si-mesmo. Trata-se de ir além da
instância da consciência e até mesmo além da própria identidade, mas de
fundar um campo especial, a intimidade, em que há o encontro consigo
mesmo.
Essa meditação ou devaneio é relatado em
um parágrafo que, inclusive, ganha destaques em algumas passagens que
Sloterdijk observa o rousseauísmo. É uma passagem da quinta caminhada:
“Quando a noite se
aproximava, descia dos cumes da Ilha e ia de bom grado sentar-me à beira
do lago, sobre a praia, em algum refúgio escondido; lá, o ruído das
vagas e a agitação da água fixando meus sentidos e expulsando de minha
alma qualquer outra agitação, a mergulhavam num devaneio delicioso (…) O
fluxo e o refluxo dessa água, seu ruído contínuo mas crescente por
intervalos, atingindo sem repouso meus ouvidos e olhos, supriam os
movimentos internos que o devaneio extinguiam em mim e bastavam para me
fazer sentir com prazer minha existência sem ter o trabalho de pensar.” (grifo meu).[13]
Não é possível deixar de notar a
conclusão inversa à cartesiana: ao invés de “penso logo sou” o que se
encontra no que seria um lema rousseauniano é o existo quando sinto o prazer de minha existência sem ter o trabalho do pensar,
ou seja, “não penso, logo sou”. Não pensar aqui é não conduzir o fluxo
de ideias que porventura venham se estabelecer na minha cabeça, muito
menos produzir com eles proposições. Trata-se de “sentir a existência”.
Isso ocorre em uma situação de não controle, de nenhuma autonomia ou
heteronomia e, enfim, em um campo regido por certa intimidade.
Assim, na busca da verdade, se sou
rousseauniano, vou pelo coração sincero, na busca de mim mesmo
simplesmente não vou, apenas me deixo ao leu. Encontro-me quando me
perco. Sou eu não no exercício do pensamento, mas no não exercício. Não
sou minha consciência ou minha identidade atualmente como sujeito, mas
um eu passivo que sente sua existência por não ser ator ou autor. Uma
vez na intimidade não me recolho para agir como sujeito, mas me recolho
para sentir o que sou eu. Sou essa doçura que se sente doce no
deleitar-se de estar ao leu e, então e só então, consigo ser eu mesmo.
A “alma que conversa consigo mesma”, que
é o pensamento segundo Platão, aqui não ocorre, pois não há pensamento.
De modo que Rousseau procurar evitar qualquer resquício de encontrar
elementos de reflexão, de ir e vir, para não ter que ter como testemunho
qualquer duplo. A intimidade, nesse caso, é o reino do isolamento. Eis o
eu como o não duplo, o eu como indivíduo em sua máxima individualidade.
Eis aí a intimidade como intimidade em que não há razão alguma para se
falar em íntimo, pois o íntimo aí é o espaço imaginado pela doutrina
liberal, o espaço de um eu que é só, que não é duplo, que não pode ser o
“dois em um” de Sócrates, aquele dois notado por Hannah Arendt em sua
leitura do Hippias maior de Platão.[14]
No entanto, enquanto Montaigne,
Descartes e Rousseau elaboraram suas noções de eu, segundo propósitos
semelhantes Pascal e Hume apontaram para concepções distintas.
Pascal não viu o eu senão como conjunto
de qualidades que, uma vez retiradas, nada deixariam em permanência.
Contra a res-extensa cartesiana que, de modo substancial, seria um eu
desde que a cogitação não cessasse, em seus Pensamentos (1670) Pascal não vê qualquer possibilidade de cada pessoa ser um eu próprio senão por meio de títulos e adornos.[15]
Por sua vez, Hume capta a consciência ou eu como um fluxo de ideias e
sensações que configuram uma corrente passageira, não um receptáculo
capaz de exibir mais do que o não permanente.[16]
Em nenhum dos casos a instância subjetiva se espraia em uma esfera
íntima que possa fornecer a sensação doce de estar ao leu e, então,
estar consigo mesmo, desfrutada por Rousseau. Somente Rousseau viu algo
efetivamente responsável, em solidão e vazio, como preenchido pelo doce
irreflexivo. Por isso mesmo, parece ser ele a figura contra qual
Sloterdijk deve se insurgir. Todavia, também por isso mesmo, por negar
qualquer duplo, Rousseau pode ser a fagulha que chama a atenção do
filósofo alemão para o ápice da ideologia do individualismo do clube
liberal que busca obstaculizar um projeto diferente, o projeto da
esferologia.
Talvez se possa dizer que Sloterdijk
constrói sua esferologia, ao menos quanto ao processo da microesfera que
nada mais é que uma arqueologia da intimidade, contra Rousseau e a
partir de Rousseau. Trata-se do projeto que nega a intimidade como
alguma coisa dada, mas não segundo a crítica de Nietzsche a Descartes e
Rousseau, mas na alternativa de construção do processo de reposição de
esferas segundo a “ontologia do dois” e segundo a tese de que o homem
tenta escapar do aberto, do puro exterior.[17]
Contra Descartes, Nietzsche disse que
não sou eu que penso, mas o pensamento me vem. Contra Rousseau disse que
o eu abaulado não nasceu pronto, mas se fez pela má consciência, pelo
trajeto desta segundo o fio do niilismo, alimentado principalmente pelo
cristianismo – uma conclusão também partilhada por Hegel, mas vista
positivamente. Por sua vez, Sloterdijk conhece mais que ninguém as
críticas nietzschianas que dão abertura para o contemporâneo. Mas ele
não vê esse tal caminho como o de uma boa narrativa. Para ele, a
narrativa melhor sobre a subjetividade, ou seja, a narrativa sobre a
esfera íntima é aquela gerada pela sua pergunta filosófica “onde estamos
quando estamos no mundo”. É por aí que se pode pensar em outros
parâmetros da subjetividade, para uma narrativa em que possamos nos
entender que o sujeito amarrado ao consultor é uma faceta do campo
subjetivo, mas não a única. Há uma outra faceta, a do duplo, e que noção
é a melhor narrativa para nos dizer sobre este lugar do mundo, o
próprio mundo, que são a intimidade ou as esferas.
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*Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo
Texto elaborado a partir do II Encontro Sloterdijk no CEFA, novembro de 2014.
Sobre Hora da Coruja com o mesmo tema ver: Intimidade
*
Nesse texto opto por referenciar os livros de Sloterdijk e outros, na
medida do possível, pelas traduções em português e, na falta dessas, em
inglês e espanhol, de modo a facilitar para o leitor brasileiro, em
geral menos familiarizado com o alemão.
[1] Sloterdijk, P. O Palácio de Cristal. Lisboa: Relógio D’Agua, 2008, pp. 65-6.
[2] Kant, I. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 100-2.
[3] Sloterdijk, P. O Palácio de Cristal, op. cit, capítulo 11.
[4]
Esse trajeto da filosofia contemporânea está no final do volume I e em
todo o volume II de A aventura da filosofia. Barueri: Manole, 2010 e
[5] Sloerdijk, P. Bubbles. Spheres I. Los Angeles: Semiotext(e), 2011, p. 85
[6] Montaigne, M. Sobre a consciência. Os ensaios. São Paulo. Penguim-Cia das Letras, 2010, pp. 228-33.
[7] Descartes, R. Descartes I. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
[8] Rousseau, J.J. Emílio ou da educação. São Paulo e Rio de Janeiro: Difel, 1979, pp. 303-4.
[9] Rousseau, J.J. Devaneios do caminhante solidário. Brasília: Hucitec e Editora da UnB, 1986, p.27.
[10] Idem, ibidem, p.23.
[11] Idem, ibidem.
[12] Idem, ibidem, pp. 26-7.
[13] Idem, ibidem, p. 75.
[14] Arendt, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
[15] Pascal, B. Pensamentos. In: Pascal – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 117, parágrafo 323.
[16] Hume, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Ed. Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2000, Livro I, Parte IV, Seção VI, § 1-6.
[17] Sloterdijk, P. O sol e a morte. Lisboa: Relógio D’água, 2007, p. 122.
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Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/12/11/2014
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