Tatiana Salem Levy*
Embora o Brasil tenha se visto numa verdadeira arena de gladiadores
no período que antecedeu as eleições, foi triste perceber que, no fim,
muitas das questões fundamentais para a construção de uma verdadeira
democracia - como os direitos das minorias sexuais - não foram
discutidas com seriedade.
Por um lado, houve algum avanço. Levy Fidelix virou alvo de chacota.
Marina Silva desencadeou sua derrota depois de recuar no apoio ao
casamento gay. O deputado Jean Wyllys, único congressista abertamente
homossexual, recebeu dez vezes mais votos do que na sua primeira
eleição. Por outro, parece que esse tema só entra de raspão na
conturbada cena do nosso pensamento político, como uma criança que corre
entusiasmada para o mar num dia quente, mergulha o pé na água gelada e
decide voltar para o conforto da barraca dos pais.
Mas a criança está só aprendendo a lidar com as contradições da vida,
e a sua escolha não faz mal a ninguém. Ao contrário das decisões dos
políticos, que têm consequências na vida de todos nós. E o que ele
fazem? Tocam no assunto, depois recuam, como se concluíssem,
conformados: é assim mesmo, somos uma sociedade homofóbica, qual é o
próximo tópico? E continuam a discutir, como se nada fosse.
Mas, se não falam eles, falamos nós. Motivada pela leitura do último
romance de Alexandre Vidal Porto, "Sergio Y. Vai à América", eu queria
trazer à baila a abordagem da identidade sexual na literatura brasileira
contemporânea, que, do meu ponto de vista, é um passo importante para a
aceitação das minorias. Quando não há leis, temos de construí-las com a
arte, com o pensamento.
De forma geral, o livro de Vidal Porto aborda o tema como todos nós
deveríamos abordá-lo: com a maior naturalidade do mundo. Ser gay não é
nenhuma anormalidade, nenhum bicho de sete cabeças. É tão banal quanto
não sê-lo. O personagem principal do romance descobre-se transexual, sem
nenhum espanto. "Com Sandra, as coisas foram mais fáceis do que com a
maioria dos pacientes. Ela entendia muito claramente o que lhe passava,
sua condição", afirma a terapeuta americana de Sergio, que o ajudou a se
tornar Sandra.
"O corpo, a aparência física, é a maior fonte de angústia para um
transexual", diz o narrador. E quem narra a história é o Dr. Armando,
psiquiatra e terapeuta de Sergio, um adolescente que surge em seu
consultório por indicação da diretora da escola, em São Paulo. Armando é
um sujeito obcecado pelos detalhes, meticuloso no trabalho, dedicado a
cada paciente. "Se eu permitisse, minha vida seria invadida e tomada por
questões pessoais que não me pertencem", afirma. Mas só leva adiante
casos clínicos que o estimulam. Quando um paciente deixa de instigar seu
interesse, procura dispensá-lo o quanto antes. No entanto, se ocorre o
contrário, Dr. Armando sente "uma infelicidade profunda: infantil e
injustificável".
Esse é o motor da narrativa. Um belo dia, depois de uma viagem de
férias a Nova York com os pais, Sergio anuncia que vai interromper o
tratamento. Sem mais nem menos, some, dizendo ao médico que o que ele
fizera até ali era suficiente. Dr. Armando se mostra inconsolável diante
da decisão daquele paciente "articulado, inteligente e confuso". Anos
depois, encontra a mãe do rapaz num supermercado e acaba sabendo que ele
se mudou para Nova York, onde estuda gastronomia e abriu um
restaurante. Poucas semanas após esse encontro, o psiquiatra lê no
jornal o anúncio fúnebre de Sergio Y. Então, a ausência de sentido cai
no seu colo. Como pode ter morrido se a mãe lhe garantira que ele estava
feliz? Pode a morte chegar de repente para levar alguém que foi atrás
da felicidade e finalmente a encontrou?
As buscas se misturam: a busca do psiquiatra pelos vestígios do
antigo paciente a fim de reconstruir a sua história; a busca pela
identidade sexual de Sergio; a busca da própria literatura por um
sentido para a vida. Numa espécie de policial pós-moderno, em que as
perguntas interessam mais do que as respostas, Alexandre Vidal Porto
traça o percurso de um personagem que tem um único, e singelo, objetivo:
ser feliz. Como seu bisavô armênio, que trocou a terra natal pelo
Brasil, ou como Adriana Zebrowskas, imigrante lituana, que relata, numa
narrativa dentro da narrativa, sua transformação em homem no princípio
do século XX.
O primeiro passo de Sergio rumo à felicidade é encontrar um corpo em
que se sinta à vontade, e é assim que ele se torna Sandra. Depois de
resolvida essa questão, suas possibilidades existenciais se ampliam. O
corpo deixa de ser um problema, e ele pode se dedicar aos estudos, se
tornar um chef promissor, abrir um restaurante. Esse me parece um dos
pontos cruciais de "Sergio Y. Vai à América": a identidade de gênero é
apenas uma entre tantas outras coisas que fazem parte da vida do ser
humano. Se quem não se sente em casa no seu corpo puder escolher o que
fazer com ele, como se vestir, como se colocar no mundo, o problema
deixa de existir. Infelizmente, Sergio precisa se distanciar da família,
sair do Brasil, para encontrar em Nova York a tranquilidade que aqui
não encontraria.
Talvez encontre um dia. Não o Sergio Y. do romance, mas outros que
também precisam construir e afirmar sua identidade sexual longe da
árvore, como diria Andrew Solomon em seu estudo sobre famílias com
filhos marcados pela excepcionalidade. Por isso, é bom que a literatura
brasileira contemporânea esteja abordando esse tema de forma mais aberta
e recorrente. Autores como Silviano Santiago, Cíntia Moscovich,
Marcelino Freire, Simone Campos, Santiago Nazarian, entre outros, têm
trazido para a cena personagens que lidam naturalmente com a sua
homossexualidade. Luiz Ruffato organizou a antologia "Entre Nós", que
gira em torno dessa temática.
Sobre o universo transexual, além do livro de Alexandre Vidal Porto,
também podemos pensar em "Do Fundo do Poço Se Vê a Lua", de Joca Reiners
Terron, em que Wilson, para se livrar da semelhança com seu irmão
gêmeo, se transforma em Cleópatra, e em "Deixei Ele lá e Vim", de Elvira
Vigna, que conta a história da morte de uma garota de programa, narrada
por um travesti.
Voltando no tempo, talvez não seja exagero pensar em "Grande Sertão:
Veredas" como uma possível abertura para o tema. Ao ler, no livro de
Vidal Porto, o trecho em que Adriana Zebrowskas se veste de homem pela
primeira vez, logo me lembrei de Diadorim. É verdade que Diadorim se
veste de homem por outro motivo: precisa contornar o fato de ser mulher
para se tornar um jagunço. Mas também é verdade que ela encontra prazer
na sua persona masculina, e o amor de Riobaldo começa, e se estende,
enquanto Diadorim aparece com identidade masculina.
Haverá controvérsias sobre essa leitura, sem dúvida. Como também
haverá controvérsias na interpretação de Dr. Armando, o psiquiatra que
falta com seu juramento profissional para contar aos leitores a
trajetória de um paciente cuja morte "não fazia sentido". Alexandre
Vidal Porto inverte o que se espera de um terapeuta e de um paciente. Em
seu romance, é o primeiro quem percorre caminhos sinuosos em busca de
uma resposta. A partir de sua inquietação, acabamos mergulhando no
universo de Sergio/Sandra. Mas quem nos garante que os fatos aconteceram
tal como ele narra? Quem garante que nessa investigação supostamente
neutra médico e paciente não se misturam?
Tanto o processo de terapia quanto a própria literatura nos levam a
essa multiplicidade de interpretações. O que importa, mais do que a
chegada, é a travessia. E a travessia de Alexandre Vidal Porto nesse
romance se faz com uma escrita extremamente sóbria, natural e simples,
tal como a sociedade brasileira deveria encarar a questão da homo e da
transexualidade. Sem grande alarde, sem grandes firulas, sem julgamento
moral, mas com a seriedade que o tema merece. Se os nossos políticos
seguissem o seu exemplo, Sergio Y. não precisaria ir à América para
encontrar a felicidade.
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 21/11/2014
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