segunda-feira, 24 de novembro de 2014

TRANSEXUAL, e daí?

 Tatiana Salem Levy*
 Cris Bierrenbach
Embora o Brasil tenha se visto numa verdadeira arena de gladiadores no período que antecedeu as eleições, foi triste perceber que, no fim, muitas das questões fundamentais para a construção de uma verdadeira democracia - como os direitos das minorias sexuais - não foram discutidas com seriedade.
Por um lado, houve algum avanço. Levy Fidelix virou alvo de chacota. Marina Silva desencadeou sua derrota depois de recuar no apoio ao casamento gay. O deputado Jean Wyllys, único congressista abertamente homossexual, recebeu dez vezes mais votos do que na sua primeira eleição. Por outro, parece que esse tema só entra de raspão na conturbada cena do nosso pensamento político, como uma criança que corre entusiasmada para o mar num dia quente, mergulha o pé na água gelada e decide voltar para o conforto da barraca dos pais.

Mas a criança está só aprendendo a lidar com as contradições da vida, e a sua escolha não faz mal a ninguém. Ao contrário das decisões dos políticos, que têm consequências na vida de todos nós. E o que ele fazem? Tocam no assunto, depois recuam, como se concluíssem, conformados: é assim mesmo, somos uma sociedade homofóbica, qual é o próximo tópico? E continuam a discutir, como se nada fosse.

Mas, se não falam eles, falamos nós. Motivada pela leitura do último romance de Alexandre Vidal Porto, "Sergio Y. Vai à América", eu queria trazer à baila a abordagem da identidade sexual na literatura brasileira contemporânea, que, do meu ponto de vista, é um passo importante para a aceitação das minorias. Quando não há leis, temos de construí-las com a arte, com o pensamento.
De forma geral, o livro de Vidal Porto aborda o tema como todos nós deveríamos abordá-lo: com a maior naturalidade do mundo. Ser gay não é nenhuma anormalidade, nenhum bicho de sete cabeças. É tão banal quanto não sê-lo. O personagem principal do romance descobre-se transexual, sem nenhum espanto. "Com Sandra, as coisas foram mais fáceis do que com a maioria dos pacientes. Ela entendia muito claramente o que lhe passava, sua condição", afirma a terapeuta americana de Sergio, que o ajudou a se tornar Sandra.

"O corpo, a aparência física, é a maior fonte de angústia para um transexual", diz o narrador. E quem narra a história é o Dr. Armando, psiquiatra e terapeuta de Sergio, um adolescente que surge em seu consultório por indicação da diretora da escola, em São Paulo. Armando é um sujeito obcecado pelos detalhes, meticuloso no trabalho, dedicado a cada paciente. "Se eu permitisse, minha vida seria invadida e tomada por questões pessoais que não me pertencem", afirma. Mas só leva adiante casos clínicos que o estimulam. Quando um paciente deixa de instigar seu interesse, procura dispensá-lo o quanto antes. No entanto, se ocorre o contrário, Dr. Armando sente "uma infelicidade profunda: infantil e injustificável".

Esse é o motor da narrativa. Um belo dia, depois de uma viagem de férias a Nova York com os pais, Sergio anuncia que vai interromper o tratamento. Sem mais nem menos, some, dizendo ao médico que o que ele fizera até ali era suficiente. Dr. Armando se mostra inconsolável diante da decisão daquele paciente "articulado, inteligente e confuso". Anos depois, encontra a mãe do rapaz num supermercado e acaba sabendo que ele se mudou para Nova York, onde estuda gastronomia e abriu um restaurante. Poucas semanas após esse encontro, o psiquiatra lê no jornal o anúncio fúnebre de Sergio Y. Então, a ausência de sentido cai no seu colo. Como pode ter morrido se a mãe lhe garantira que ele estava feliz? Pode a morte chegar de repente para levar alguém que foi atrás da felicidade e finalmente a encontrou?

As buscas se misturam: a busca do psiquiatra pelos vestígios do antigo paciente a fim de reconstruir a sua história; a busca pela identidade sexual de Sergio; a busca da própria literatura por um sentido para a vida. Numa espécie de policial pós-moderno, em que as perguntas interessam mais do que as respostas, Alexandre Vidal Porto traça o percurso de um personagem que tem um único, e singelo, objetivo: ser feliz. Como seu bisavô armênio, que trocou a terra natal pelo Brasil, ou como Adriana Zebrowskas, imigrante lituana, que relata, numa narrativa dentro da narrativa, sua transformação em homem no princípio do século XX.

O primeiro passo de Sergio rumo à felicidade é encontrar um corpo em que se sinta à vontade, e é assim que ele se torna Sandra. Depois de resolvida essa questão, suas possibilidades existenciais se ampliam. O corpo deixa de ser um problema, e ele pode se dedicar aos estudos, se tornar um chef promissor, abrir um restaurante. Esse me parece um dos pontos cruciais de "Sergio Y. Vai à América": a identidade de gênero é apenas uma entre tantas outras coisas que fazem parte da vida do ser humano. Se quem não se sente em casa no seu corpo puder escolher o que fazer com ele, como se vestir, como se colocar no mundo, o problema deixa de existir. Infelizmente, Sergio precisa se distanciar da família, sair do Brasil, para encontrar em Nova York a tranquilidade que aqui não encontraria.

Talvez encontre um dia. Não o Sergio Y. do romance, mas outros que também precisam construir e afirmar sua identidade sexual longe da árvore, como diria Andrew Solomon em seu estudo sobre famílias com filhos marcados pela excepcionalidade. Por isso, é bom que a literatura brasileira contemporânea esteja abordando esse tema de forma mais aberta e recorrente. Autores como Silviano Santiago, Cíntia Moscovich, Marcelino Freire, Simone Campos, Santiago Nazarian, entre outros, têm trazido para a cena personagens que lidam naturalmente com a sua homossexualidade. Luiz Ruffato organizou a antologia "Entre Nós", que gira em torno dessa temática.

Sobre o universo transexual, além do livro de Alexandre Vidal Porto, também podemos pensar em "Do Fundo do Poço Se Vê a Lua", de Joca Reiners Terron, em que Wilson, para se livrar da semelhança com seu irmão gêmeo, se transforma em Cleópatra, e em "Deixei Ele lá e Vim", de Elvira Vigna, que conta a história da morte de uma garota de programa, narrada por um travesti.

Voltando no tempo, talvez não seja exagero pensar em "Grande Sertão: Veredas" como uma possível abertura para o tema. Ao ler, no livro de Vidal Porto, o trecho em que Adriana Zebrowskas se veste de homem pela primeira vez, logo me lembrei de Diadorim. É verdade que Diadorim se veste de homem por outro motivo: precisa contornar o fato de ser mulher para se tornar um jagunço. Mas também é verdade que ela encontra prazer na sua persona masculina, e o amor de Riobaldo começa, e se estende, enquanto Diadorim aparece com identidade masculina.

Haverá controvérsias sobre essa leitura, sem dúvida. Como também haverá controvérsias na interpretação de Dr. Armando, o psiquiatra que falta com seu juramento profissional para contar aos leitores a trajetória de um paciente cuja morte "não fazia sentido". Alexandre Vidal Porto inverte o que se espera de um terapeuta e de um paciente. Em seu romance, é o primeiro quem percorre caminhos sinuosos em busca de uma resposta. A partir de sua inquietação, acabamos mergulhando no universo de Sergio/Sandra. Mas quem nos garante que os fatos aconteceram tal como ele narra? Quem garante que nessa investigação supostamente neutra médico e paciente não se misturam?

Tanto o processo de terapia quanto a própria literatura nos levam a essa multiplicidade de interpretações. O que importa, mais do que a chegada, é a travessia. E a travessia de Alexandre Vidal Porto nesse romance se faz com uma escrita extremamente sóbria, natural e simples, tal como a sociedade brasileira deveria encarar a questão da homo e da transexualidade. Sem grande alarde, sem grandes firulas, sem julgamento moral, mas com a seriedade que o tema merece. Se os nossos políticos seguissem o seu exemplo, Sergio Y. não precisaria ir à América para encontrar a felicidade.
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 21/11/2014
 

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