Jovem interno na Fundação Casa, em São Paulo
O debate sobre a redução da maioridade penal não deve se reduzir a punir ou deixar impune
Por Juvenal Savian Filho
A esclarecedora reportagem de Miguel Martins poderia ser comentada de
várias maneiras. A melhor delas consistiria, certamente, em refletir
sobre o que há por trás da opinião de grande parte dos brasileiros no
tocante à redução da idade da maioridade penal de 18 para 16 anos.
É o que pretendo fazer, porém, de uma forma que inicialmente pode
parecer estranha. Vamos com calma. Ao final do caminho, veremos que o
que proponho aqui tem tudo a ver com o tema.
Costuma-se dizer que o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716)
denunciou o seguinte raciocínio: “Quando estamos doentes, só há duas
possibilidades: ou ficamos curados ou continuamos doentes”. Ao pensar
dessa maneira, ignoramos a possibilidade de sermos curados em certa
medida, mas não completamente, o que não nos impede de ter uma vida
saudável. De acordo com o raciocínio, um diabético, por exemplo, será
sempre um doente, mesmo se sua vida for perfeitamente saudável tomando
insulina. Leibniz dizia que, por trás desse pensamento, há um fatalismo,
ou seja, uma crença de que o futuro é sempre determinado, sem que as
pessoas possam interferir nas determinações e relativizá-las.
Um raciocínio parecido com esse é o que diz: “Ou você é meu amigo ou é
meu inimigo”. Não se leva em conta a possibilidade de que alguém não
seja nosso amigo, mas também não seja nosso inimigo. É uma espécie de
“raciocínio à George Bush”, ex-presidente norte-americano que gostava de
tomar por inimigos quem não venerasse o american way of life (estilo de
vida americano).
Outra dessas pérolas é a que os filósofos megáricos (séculos V-IV a.C.)
inventaram como raciocínio das perguntas múltiplas. Por exemplo, posso
perguntar a alguém: “Você parou de bater no seu pai?” Se a pessoa disser
“não”, porque nunca bateu no próprio pai, acaba dando a entender que
bate nele. Se disser “sim” (para não dar a impressão de que bate no
próprio pai), acabará dando a entender que um dia já bateu nele.
Conclusão: dizendo “não” ou “sim”, a pessoa admite que tem o costume de
bater no próprio pai...
Leibniz chamava o primeiro de falácia do preguiçoso, pois, em vez de
incluir os diferentes matizes da existência real, reduz tudo a dois
extremos. O segundo raciocínio poderia ser chamado, aqui, de falácia do
“quem não está conosco está contra nós”, pois também não deixa
alternativa a não ser declarar guerra contra quem não se diz nosso
amigo.
Ambos são falácias, quer dizer, raciocínios com aparência de bons, mas
que, no fundo, são ruins ou inválidos. São montados de maneira
problemática, pois não traduzem a complexidade humana, embora deem a
impressão de fazê-lo. Quanto à pergunta dos megáricos, poderíamos
chamá-la de pergunta falaciosa, pois induz à falácia das questões
múltiplas, ou seja, das questões implícitas numa pergunta básica.
Você talvez pergunte o que os preguiçosos, os amigos/inimigos e as
questões múltiplas têm a ver com o tema da redução da maioridade penal.
Tem tudo a ver. Como mostra Miguel Martins, a pergunta feita pelo Vox
Populi, para saber se as pessoas eram favoráveis ou contra a redução da
idade penal, era: “Você concorda ou não com a redução da idade da
maioridade penal?”. É a mesma coisa que perguntar: “Você é a favor da
redução da maioridade penal?” É um caso explícito de preguiça
intelectual!
A do Vox Populi, para ser respondida, precisa de muitos
esclarecimentos. Mas, não deixando chance para os entrevistados, talvez a
pergunta não seja só preguiçosa, mas também mal-intencionada. Vejamos:
se a atitude de “ser a favor da redução” é associada com punição, ao
passo que a de “ser contra” é associada com não punição, então é óbvio
que a imensa maioria dos entrevistados vai dizer que é a favor.
A pergunta deveria permitir que os entrevistados percebessem o que
estava em jogo. No modo como foi feita, ela fala de maioridade, mas o
que a fundamenta mesmo é o desejo de punição, que até pode ser legítimo
se for um verdadeiro ato de justiça. Porém, punição e redução da
maioridade não são a mesma coisa. Corremos o risco de, como diz o título
da reportagem, atacar o “inimigo errado”.
Já a pergunta do Datafolha é mais interessante, pois tira de foco o
dualismo “ou punição ou impunidade” e prefere nuançar as coisas: “Os
adolescentes que cometem crimes devem ser punidos como adultos ou
reeducados?” O índice de resposta favorável à punição foi um pouco
menor do que o índice dos favoráveis à redução na pesquisa do Vox
Populi, mas ainda assim continua alto. Então, se o índice continua alto,
não podemos concluir que, de fato, as pessoas são favoráveis a prender
os adolescentes desde os 16 anos?
Precisamos ter calma no raciocínio. Do contrário, encarnaremos uma nova
versão da falácia do preguiçoso. Se observarmos bem, veremos que o
problema está na alternativa “prisão” ou “reeducação”. Poucos, em sã
consciência, serão contra a reeducação e a favor de prender os
adolescentes. O que leva as pessoas, hoje, a votar pela prisão é
certamente a decepção com o que se chama de “reeducação”. Se esta for
mais eficaz, dificilmente as pessoas preferirão jogar os jovens na
prisão.
Porém, muitíssimos brasileiros estão condicionados pela obsessão do
“punir ou deixar impune” e pela dificuldade em ver melhoras na
reeducação dos jovens. Seja como for, tratar com coerência a maioridade
penal exige perguntar pelo que faz as pessoas responderem isso ou
aquilo. A imprensa não costuma fazer isso, porque nem sabe fazê-lo ou
porque não lhe interessa fazê-lo. Ou pelas duas razões.
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