quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Hitler e Pio XI (1)

André Gonçalves Fernandes*


Passados 70 anos da invasão nazista na Polônia, a relação entre Hitler e a Igreja de Pio XI não se resume a um capítulo de um livro de história. É um assunto presente, porque a consciência humana vive na tensão constante entre o tempo e os princípios universais e eternos, que, muito antes de terem recebido a chancela da tradição ou do magistério da Igreja, já eram reconhecidos pela filosofia de Platão e Aristóteles no campo da ética natural.

Logo, se este ou aquele princípio da ética natural foi erigido à categoria de cristão, muito antes disso, seu berço foi grego. A ressalva é pertinente, pois o laicismo procura se valer de um argumento ad hominem elementar: vestir um princípio, como, por exemplo, o da transcendência humana (que remonta a Platão), com uma roupagem clerical, acrescentando uns adornos bem “obsoletos” (leia-se: qualquer referência à Idade Média) e apresentando o conjunto da vestimenta, por corolário, como um produto genuinamente religioso, o qual deve ser expurgado do diálogo e relegado à esfera privada.

Em suma, se, no passado, os cristãos eram jogados às feras no Coliseu para o deleite da populaça romana, hoje, os argumentos ditos “cristãos” devem ser lançados, na arena do debate, às “feras” atuais: intelectuais ou escritores que, no dizer de Kingsley Amis, em causa própria, preferem não acreditar em Deus. Preferem detestá-lO. E, no mundo lusitano, Saramago, de estilística formidável, presta-se à tarefa de porta-voz do laicismo, cujo eco ressoa localmente, no brasileiro, aquele que, segundo Eça, seria o português dilatado pelos trópicos.

Saramago, um dos últimos representantes ativos das experiências totalitárias passadas e que pensa que a democracia parlamentar, diante de seu esgotamento, deve ser liquidada pela força massiva do voto em branco, não nega Deus. Apenas detesta-O com uma força comparável à alienação dos fanáticos. Basta notar que, em seus livros, o mal reside na religião tradicional e na fonte. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Deus é um bandido hediondo.

Não se é religioso apenas porque se ama Deus, mas também quando se detesta: o ódio é também uma forma de afirmação. De afirmação pela negação. “Eu sou o espírito que nega!”, exclama Mefistófeles ao doutor Fausto. Em razão disso, Saramago e os fanáticos religiosos que ele critica com ímpeto falam a mesma linguagem, ainda que tomem pontos opostos do colóquio.

Mas voltemos a Pio XI e seus dilemas. A situação política da Europa, no início de seu pontificado, era muito parecida com o período anterior ao Congresso de Viena. Almejava-se um novo equilíbrio geopolítico e os Estados (o que sobrou da 1 Guerra Mundial) tinham interesse em obter o apoio diplomático do Vaticano. Um bom número deles, criados há pouco ou ressuscitados a partir das cinzas do conflito armado, preocupava-se em organizar suas Igrejas e o auxílio da Santa Sé era inevitável. E, em razão do princípio da reciprocidade, o momento era propício para a Igreja concretizar, juridicamente, uma série de propósitos.

Foram celebrados uma série de tratados: Letônia, Baviera, Polônia, Lituânia, Checoslováquia, Itália, Romênia, Prússia, Baden, Áustria e a Alemanha de Hitler. Nesse país, alguns anos antes, sob a República de Weimar, havia um clima favorável para a negociação de acordos, tanto que vários foram celebrados com diversos dos Länder que formavam a Alemanha: Baviera, Baden-Baden e Prússia.

Contudo, quando o regime republicano, liquidado pela própria democracia, ruiu, inquieto com o desejo de muitos católicos alemães de ter um modus vivendi com o nacional-socialismo a fim de refrear a ação dos elementos hostis à Igreja, Pio XI, perfeitamente consciente dos perigos que corria, retomou as negociações iniciadas com a República de Weimar, arrastadas por anos diante da oposição conjunta da esquerda e dos protestantes, e, em julho de 1933, chegou-se ao termo final. Continuo no próximo artigo.

*André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2 Vara Cível da Comarca de Sumaré
FONTE: http://cpopular.cosmo.uol.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1665423&area=2190&authent=3EBF80336AC882062DB8A1525ABA94 09/12/2009

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