terça-feira, 1 de novembro de 2011

O NOVO CONFESSIONÁRIO



Já que ninguém mais é confiável o bastante
para ouvir segredos, anônimos compartilham
os seus em site que mistura correio
convencional com rede social

Se está difícil estabelecer laços duradouros, se é dúvida que o amigo de hoje será o mesmo de amanhã, a quem confiar nossos segredos?
A estranhos, prega o americano Frank Warren, criador do PostSecret, projeto alimentado por confissões, correio e um site que é sucesso.
Como são sucesso, também, as palestras, o aplicativo para celular e os livros do empresário. O mais recente, "Confessions on Life, Death, and God" (confissões sobre a vida, a morte e Deus, sem edição aqui), ficou no topo da lista de mais vendidos do "New York Times".
A ideia é simples: anônimos enviam segredos a um endereço e esperam vê-los publicados no site. É como um confessionário. Só que em vez de padre há milhares de curiosos e "voyeurs" navegando ali atrás de intimidades alheias.
Os relatos chegam à caixa postal em forma de cartões artesanais. Uns usam colagens sobre fotos, outros, recortes de revista. Ora parecem trabalhos escolares, ora obras de arte. Para Warren, são "haicais gráficos".
Os segredos vão dos pueris, como o do funcionário que se imagina atirando pássaros raivosos do jogo "Angry Birds" na careca do chefe, aos crimes, caso de alguém confessando que estava enviando torpedos quando causou um acidente.
Warren diz receber 500 cartões por semana, a maior parte dos EUA, mas também "de qualquer lugar que tenha falantes de inglês com segredos para contar".
O carioca Fellipe Gilard, 23, analista de marketing, já teve um segredo publicado no PostSecret: "Meu cartão demorou cinco meses para ir ao ar, mas foi legal ver algo meu ali no meio. É como um grupo de apoio à distância: cada um diz como se sente, ninguém julga ninguém. Meu segredo era sobre relacionamentos. É bom saber que você não é o único a se dar mal".

MENOS ESQUISITO

A ideia prospera por aqui. O site PostSecret Brasil traduz os segredos editados por Warren toda semana. Já o site Segredo Total, sem o glamour dos cartões, compartilha depoimentos anônimos, geralmente sobre sexo.
Revelar segredos liberta e salva vida, acha Warren: "Contando coisas, a gente se aproxima das pessoas e se sente menos esquisito".
Para ele, a sociedade vende perfeição e o individualismo afasta as pessoas. "A combinação dessas tendências gera a ilusão de que todos se encaixam nos modelos, só você é essa criatura estranha."
A terapeuta familiar Vivien Bonafer Ponzoni concorda: "As pessoas guardam coisas muito dolorosas ou que dão vergonha. Só o fato de compartilhar já diminui o peso do segredo. Ver que outros viveram a mesma coisa torna a experiência mais natural".
Com sua caixa postal aberta às vergonhas do mundo, Warren pensa ter achado o meio-termo entre respeito à privacidade e vontade de exibir problemas.
Mas será que as confidências trocadas no PostSecret são assim tão secretas? "Alguns usam fotos tiradas por eles mesmos. Aí não é tão difícil para alguém próximo reconhecer o lugar ou o fotografado, mas assumir esse risco foi uma escolha dele."
Nem todos acham que o anonimato gera terreno livre para entregar tudo. "Ter segredos e não contar para ninguém é saudável", diz Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Unicamp.
Para ele, o equilíbrio entre o direito ao segredo e a necessidade de comunicação é o que torna a vida social possível: "Escondendo tudo não há diálogo, não há universo compartilhado. Mas, se tudo é compartilhado, não há sujeito, só uma massa coletiva".

CASA DE VIDRO

Em "A Insustentável Leveza do Ser" (Cia. das Letras), o tcheco Milan Kundera trabalha esse difícil equilíbrio a partir de dois amantes com ideias opostas sobre o que seria "viver na verdade".
Para a personagem Sabina, só existe verdade na privacidade, quando não se é observado. "Ter um público, pensar num público, é viver na mentira. (...) Quem perde sua intimidade perde tudo (...) e quem renuncia voluntariamente a ela é um monstro", diz Sabina. Ela não foi apresentada às redes sociais, esse reduto de "monstros".
Já seu amante acha que viver na verdade é abolir a barreira entre público e privado. É morar numa casa de vidro onde todos sabem de tudo.
Construir uma com paredes meio finas e algumas gavetas trancadas é o desafio.


'Nossos segredos são todos parecidos', diz fundador do PostSecret
Até janeiro de 2004, Frank Warren era um pacato empresário americano com um sonho incomum: ajudar estranhos a compartilhar segredos.
Hoje ele é um dos palestrantes motivacionais mais famosos dos Estados Unidos, embora não simpatize com o termo. O trabalho de Warren consiste em fazer com que pessoas comuns contem seus segredos em cartões-postais customizados e anônimos, que ele divulga em seu site, em seus livros, em suas plaestras e também em um aplicativo para celular.
Todo domingo, Warren publica na internet cerca de 20 desses cartões-postais, que chegam em sua caixa postal analógica por meio dos correios.
A mistura entre troca de confidências digitais e cartões feitos à mão,enviados fisicamente, fez do projeto de Warren, o PostSecret, um sucesso.
Hoje, o site já teve mais de 400 milhões de visitas. Seu livro mais recente, "Confessions on Life, Death & God" (confissões sobre a vida, a morte e Deus, na tradução), chegou a alcançar o posto de mais lido na lista do "New York Times". O aplicativo para compartilhar segredos via iPhone recebeu mais de 600 mil confissões em apenas dois meses de lançamento.
Em entrevista por telefone, Warren diz receber em média 500 postais por semana e confessa publicar um segredo seu em cada livro do PostSecret.

Folha - Quantos segredos você recebe por semana? Você lê todo o material sozinho?
Frank Warren - Em média 500 segredos são enviados para minha casa toda semana. Eu leio cada um deles e guardo todos. Acredito que seja um arquivo muito especial.

Folha - Quanto tempo um segredo costuma demorar para ser publicado?
Recebo tantos que, infelizmente, a maioria deles nunca chega a ser publicada. Os que aparecem no site [que é atualizado todo domingo] geralmente são os que recebi naquela mesma semana.

Folha - Você já publicou cinco livros com segredos. Qual a diferença entre eles?
Em cada um deles eu conto uma história diferente sobre nós com nossos segredos. O enfoque e a seleção de segredos é completamente diferente de um livro para o outro.

Folha - Pode nos contar como são as palestras do PostSecret?
Minha parte favorita do projeto é viajar para contar histórias inspiradoras e engraçadas que estão por trás dos segredos, compartilhar imagens e cartões-postais que foram deixados de fora dos livros e ouvir as pessoas contarem seus segredos ao vivo, na frente de centenas de pessoas.
Na semana passada, em uma palestra na Espanha, acabamos reconfirmando que os segredos revelam que todos nós somos as mesmas pessoas. Tudo isso que a gente sente e pensa: "Meu Deus, sou a criatura mais esquisita do universo", na verdade é sentido por muitos outros.

Folha - Qual a relação entre o PostSecret e os centros de valorização da vida e entidades de prevenção de suicídios?
Quando eu comecei o projeto eu atendia ligações no turno da madrugada em um serviço de prevenção de suicídios. Até agora, o PostSecret conseguiu levantar US$ 500 mil (cerca de R$ 866 mil) para centros de valorização da vida. E o novo aplicativo para celular do PostSecret é uma ótima ferramenta que permite aos usuários encontrar ajuda a qualquer hora em um lugar próximo. Você fala anonimamente o que está te afligindo e alguém conversa com você sobre isso.

Folha - Na tradição católica, as pessoas confessam seus segredos em busca de perdão. Já na psicanálise os segredos precisam ser ditos para serem trabalhados pela pessoa. Qual o benefício que uma rede como o PostSecret, desvinculada da religião e da psicanálise, pode trazer?
O PostSecret é uma forma nova de revelar segredos a estranhos usando, para isso, cartões artísticos. Ironicamente, acho que o projeto ajuda as pessoas quando mostra a elas que outras pessoas que elas nunca conheceram têm exatamente os mesmos segredos. Dessa forma, elas sentem pela primeira vez que não estão sozinhas.
Já no caso de quem envia seus segredos para o PostSecret, eu espero que o processo de encontrar as palavras para contar seu segredo, de preparar o cartão e de enviá-lo fisicamente e deixá-lo ir embora pelo correio possa trazer algum conforto ou ser, ao menos, o primeiro degrau de uma jornada muito maior para um lugar melhor.

Folha - Você já publicou seus próprios segredos no PostSecret?
Sim, eu tenho um segredo meu em cada um dos livros.
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Reportagem por JULIANA CUNHA COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Fonte: Folha on line, 01/11/2011
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