Entrevista especial com Massimo Faggioli
"Essa mudança de pontificado em 2013 – que é a primeira
nos tempos modernos após uma renúncia papal – poderia modificar muitas
coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado de preparação para um
novo concílio ecumênico", avalia especialista
em assuntos do Vaticano.
“A
decisão de renunciar é surpreendente, mas não está em contradição com a
identidade teológica de Ratzinger. Pode-se classificar
Bento XVI como “teologicamente conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do ministério papal – na tradição e no
Vaticano II”, afirma
Massimo Faggioli, em entrevista por e-mail à
IHU On-Line.
Em sua opinião, ser papa no catolicismo global se tornou uma “tarefa
muito moderna e desafiante, e é provável que um teólogo conservador a
sinta como um fardo insuportável (além das razões relacionadas à sua
saúde)”.
Faggioli pontua que em certos aspectos o
Concílio Vaticano II veio “cedo demais”, e questões silenciadas pela
Santa Sé, como o papel das mulheres na Igreja, o casamento dos sacerdotes e a ordenação de homossexuais, devem ser revistas.
Massimo Faggioli
(foto) é doutor em História da Religião e professor de História do
Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de
Minnesota, Estados Unidos. Seus livros mais recentes são
Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013) e
True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012) e, em espanhol,
Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI, (Madrid: PPC Editorial), 2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sob quais aspectos deve ser compreendida a renúncia de Bento XVI?Massimo Faggioli – O
papa pode renunciar, e certamente esse ato não é ilegal. Mas ele também
deve ser entendido como um ato de governo e como uma decisão pessoal do
papa, que tem a ver com seu estado de saúde, mas também com o caos
existente no Vaticano e em algumas áreas do catolicismo. Chama a atenção
que
Bento XVI tenha dito que tomou essa decisão
sozinho, sem consultar ninguém. Esse é um elemento muito interessante.
Uma decisão tomada pelo papa após uma consulta com alguém outro teria
levantado questões canônicas, mas também teria sido um sinal de
colegialidade na Igreja – e a colegialidade é algo que foi aprovado pelo
Vaticano II, mas jamais chegou a fazer parte do governo da Igreja, com exceção de alguns poucos casos.
IHU On-Line – Quais foram suas principais motivações?
Massimo Faggioli – Paulo VI foi o papa que concluiu o Vaticano II; João Paulo II foi o último papa que também foi padre conciliar no Vaticano II; Bento XVI é o último papa que esteve no Vaticano II
(como teólogo, não como bispo). Essa mudança de pontificado em 2013 –
que é a primeira nos tempos modernos após uma renúncia papal – poderia
modificar muitas coisas, e poderia até pôr a Igreja em um estado de
preparação para um novo concílio ecumênico ou colocar em pauta muitas
questões que, durante demasiado tempo, foram consideradas “resolvidas”.
IHU On-Line – Em que sentido a renúncia do papa e a escolha
de um novo pontífice podem representar uma mudança nos rumos da Igreja
Católica?
Massimo Faggioli – A renúncia é o
acontecimento principal, porque nas leis da Igreja havia um cânone que
permitia isso ao papa, mas não dispunha o que aconteceria depois da
renúncia. Nesse sentido, trata-se de uma decisão que cria um precedente,
mas ainda há muitas coisas que não sabemos como irão se desdobrar, e
este é um momento muito delicado. Trata-se de um conclave excepcional, e
não normal. Também é uma situação perigosa, porque o papa disse que a
“Sede vacante” começa em 28 de fevereiro, mas, em certo sentido, desde
seu anúncio em 11 de fevereiro a Sé de Pedro já está vacante na prática.
IHU On-Line – A renúncia de Bento XVI ocorre 50 anos depois
do Concílio Vaticano II e 600 anos depois da última renúncia papal.
Podemos dizer que se trata do principal acontecimento no Vaticano nas
últimas décadas? Por quê?
Massimo Faggioli – A decisão de renunciar é surpreendente, mas não está em contradição com a identidade teológica de
Ratzinger. Pode-se classificar o papa
Bento XVI como “teologicamente conservador”, mas ele está consciente da eclesialidade do ministério papal – na tradição e no
Vaticano II. Suas concepções conservadoras são coerentes com a renúncia, já que o papa
Bento XVI
provavelmente sabia que o ministério papal tinha se tornado algo
diferente do que ele achava que devia ser: exposição excessiva à mídia,
excesso de responsabilidades para com o mundo e a política, excesso de
tarefas administrativas. Ser papa no catolicismo global se tornou uma
tarefa muito moderna e desafiante, e é provável que um teólogo
conservador a sinta como um fardo insuportável (além das razões
relacionadas à sua saúde).
IHU On-Line – Como explicar que um papa, reconhecidamente conservador, tenha tomado uma atitude tão moderna?
Massimo Faggioli – A tentativa de
Bento XVI
não foi exatamente restaurar o poder da Igreja na sociedade moderna, e
sim restaurar o ensinamento coerente (segundo sua concepção) da Igreja
sobre questões centrais. Nesse aspecto,
Joseph Ratzinger nunca foi ingênuo a ponto de acreditar que pudesse recristianizar um mundo secular.
João Paulo II era mais confiante nesse sentido; o papa
Bento sempre foi menos “romântico” e mais realista.
"Só há
liberdade na verdade, e,
para o papa Bento, o que é
típico
da modernidade é a tentativa de “decidir”
o que é a verdade. Na
concepção dele,
a verdade é revelada por Deus,
e você tem de entendê-la e
aceitá-la,
e não decidir a respeito dela.
Isso é típico de suas
concepções
de modernidade, democracia
e mudanças sociais."
IHU On-Line – O senhor considera que o desafio para o novo
pontífice é, de alguma forma, restaurar a autoridade da Igreja em um
mundo contemporâneo? Como fazer isso em uma sociedade pós-moderna e, em
grande parte, secularizada?
Massimo Faggioli – Para
essas questões a Igreja necessita de um momento de debate conciliar – um
concílio ou sínodo que tenha real liberdade para falar. Esse é um dos
pontos da pauta do conclave de 2013. Quanto a essas questões, há um
aspecto de conteúdo do ensino da Igreja, e há um aspecto de estilo do
ensino. Ambos são muito urgentes. Os primeiros assuntos que são
teologicamente menos desafiadores do que outros são a ordenação de viri probati e o diaconato para mulheres.
IHU On-Line – A igreja tem ouvido aos sinais dos tempos? Como
essa instituição pode dialogar sobre temáticas como casamento
homoafetivo, métodos contraceptivos, fim do celibato, aborto e ordenação
de mulheres, por exemplo?
Massimo Faggioli – Em muitos aspectos, o
Vaticano II ainda não foi implementado, por exemplo no que diz respeito à colegialidade na Igreja. No tocante a outras questões, o
Vaticano II veio cedo demais, de modo que temos de explorar soluções para novas questões sobre as quais o
Vaticano II silencia, tais como o papel das mulheres na Igreja, sacerdotes casados. Uma abordagem hermenêutica correta do
Vaticano II consiste em fazer a ele perguntas que o Concílio de 1962-1965 pode responder, e não perguntas que o
Vaticano II não pode responder.
IHU On-Line – Qual é a atualidade do Concílio Vaticano II na Igreja Católica frente aos problemas contemporâneos?
Massimo Faggioli –
Na alocução de 22 de dezembro de 2005, o papa fez uma distinção entre
“hermenêutica da continuidade e reforma” e “hermenêutica da
descontinuidade e ruptura”. Essa alocução foi também uma reação às novas
contribuições para o debate teológico acadêmico, particularmente uma
reação à historicização do
Concílio empreendida pela obra em cinco volumes intitulada
História do Vaticano II, editada por
Alberigo e pela “Escola de Bolonha” (concluída em 2001 e publicada em sete línguas), e ao
Comentário teológico do Vaticano II, em cinco volumes, que teve origem em Tübingen e foi editado por
Peter Hünermann (que tinha presenteado ao papa exemplares dele poucas semanas antes da alocução à Cúria Romana). A reputação do
Vaticano II foi profundamente afetada pelo papa
Bento e pela alocução de 2005, em especial pelas interpretações simplistas e ideológicas do
Concílio. Um primeiro elemento visível é a mudança da linguagem usada para falar do
Vaticano II nos últimos oito anos. A partir de fins de 2005, um papa,
Bento VI, sentiu-se no direito de questionar o que tinha sido alcançado pelos estudos históricos e teológicos sobre o
Vaticano II publicados pela comunidade científica internacional desde a década de 1980, ao menos. Por um lado,
Bento XVI pôs fim ao “nominalismo do
Vaticano II” típico de
João Paulo II – o
Vaticano II usado como cobertura ou manto para dar legitimidade a muitas coisas que não provinham dele. Por outro lado,
Bento XVI também começou a remover programaticamente da mensagem proveniente do Vaticano aquelas “improvisações” feitas por
João Paulo II (judaísmo, islã, inculturação) que tinham permitido aos teólogos católicos não falar de um repúdio completo do
Vaticano II
por parte dos papas pós-conciliares. Por fim, é difícil negar que o
movimento contra a reforma litúrgica do concílio é produto do
pontificado de
Bento XVI (veja o
motu proprio intitulado
Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007 e a nova tradução do missal para o inglês): a “reforma da reforma litúrgica” nunca foi um problema sob
Paulo VI e
João Paulo II, mas se tornou um problema sob
Bento XVI.
IHU On-Line – Como analisa os discursos de
Bento XVI quando assumiu, em 2005, e quando anunciou sua renúncia?
Tomando em consideração o Concílio Vaticano II, que leituras podem ser
feitas dessas duas falas?
Massimo Faggioli – O pontificado foi muito influenciado por esse legado. O papa Bento
é um teólogo neoagostiniano, com uma profunda percepção da diferença
entre a Igreja e o “mundo” numa compreensão metafísica. Ele não acredita
que a Igreja possa e deva ser um agente de transformação social, e essa
ideia é típica de suas concepções sobre a relação entre a Igreja e a
política e a Igreja e a cultura. Nesse aspecto, temos uma diferença
profunda entre ele e seus predecessores Paulo VI e João Paulo II.
IHU On-Line – Como a formação agostiniana do papa se revelou à frente de seu pontificado?
Massimo Faggioli –
Essa análise é típica de um teólogo neoagostiniano, especialmente de um
teólogo neoagostiniano que se criou na Alemanha nazista e viu o lado
muito perigoso da modernidade. Dito isso, Joseph Ratzinger
tem uma compreensão profunda das contradições da modernidade,
especialmente entre a ideia de modernidade e o acesso à verdade. Só há
liberdade na verdade, e, para o papa Bento, o que é
típico da modernidade é a tentativa de “decidir” o que é a verdade. Na
concepção dele, a verdade é revelada por Deus, e você tem de entendê-la e
aceitá-la, e não decidir a respeito dela. Isso é típico de suas
concepções de modernidade, democracia e mudanças sociais.
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Fonte: IHU on line, 25/02/2013