Gianfranco Ravasi*
O Deus do Saltério é
o Senhor da história, a qual,
portanto, deixa de ser apenas uma
nomenclatura de
datas e de dados, mas se transforma em história santa.
Publicamos aqui uma das intervenções do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, nos Exercícios Espirituais da Cúria Romana, com a presença de Bento XVI, encerrados no último sábado.
Eis o texto.
Uma parábola judaica imagina que, quando Deus criou o mundo, os anjos se aproximaram dele para servi-lo. Um deles trazia em uma bandeja dez porções de beleza: o Senhor entregou nove delas a Jerusalém e uma apenas a todo o resto do mundo. Outro se aproximou com a bandeja da sabedoria e as suas dez quantidades: também neste caso, o Criador atribuiu nove à cidade santa nove, e apenas uma para o resto da terra. Assim ocorreu com muitos outros dons criaturais. Chegou, no fim, também o anjo que trazia a grande bacia da dor. E aqui o leitor pensa que as proporções devem se inverter, mas, em vez disso, Deus jogou igualmente sobre Jerusalém nove porções de sofrimento e deu uma só para o resto da humanidade.
Evocamos esse relato porque ele nos introduz ao quarto lugar onde podemos encontrar o rosto de Deus e a sua revelação, depois da Palavra, da criação, do templo com a liturgia.
Trata-se do horizonte em que se desenvolve a história humana, isto é, o rio do tempo: lá vivem-se a alegria, a festa, o bem-estar, os sorrisos, a beleza, a luz, mas também estão à espreita o mal, o luto, a tristeza, a desgraça, as lágrimas, a fealdade e as feiuras, as trevas.
Todas essas realidades estão igualmente distribuídas em todas as vicissitudes pessoais e sociais, entre crentes e incrédulos, entre homens e mulheres, permeando os séculos e os eventos.
Pois bem, a Bíblia – de modo bastante original em todas as culturas – privilegia o tempo como categoria religiosa: você não deve procurar Deus em primeiro lugar no espaço onde, como se viu, ele também se mostra, mas deve descobri-lo sobretudo enquanto ele entra na história humana, tornando-se verdadeiramente o Emanuel, o Deus-conosco.
Ele escolhe, portanto, a realidade que mais adere a nós, que é intrínseca ao nosso existir. Nascendo, saímos do útero da nossa mãe para sermos acolhidos por dois imensos ventres, o do espaço e o do tempo. Mas este último se apega mais intimamente a nós, principalmente na sua forma – como diziam os gregos – de kairós, isto é, de tempo pessoal vivido, e não tanto de chrónos, ou seja, de passagem temporal objetiva marcada atualmente pelos relógios atômicos.
Deus, o Eterno por excelência, se comprime no tempo humano, que é desenvolvimento sucessivo, e se apresenta nas encruzilhada da história, além dos cruzamentos do espaço, um pouco como acontece nos quadros bíblicos de Chagall, que introduzem anjos e presenças divinas na cotidianidade modesta do shtetl, o vilarejo judaico da Europa Central (imagem acima).
Gandhi, de maneira feliz, chamava a oração de "a chave da manhã e o cadeado da noite". Ela busca e encontra Deus justamente na existência do orante. Ela o encontra nos grandes eventos da história da salvação, onde até mesmo Deus caminha com a sua criatura. Com o cristianismo, ela o descobre em um homem que também é Deus, Jesus Cristo, cuja história é, por isso, irradiada de eterno. Por fim, ela o intui no próximo e nos simples fatos da cotidianidade.
O Deus do Saltério é o Senhor da história, a qual, portanto, deixa de ser apenas uma nomenclatura de datas e de dados, mas se transforma em história santa. E isso acontece na linha da tradição bíblica que professa o chamado "Credo histórico". Ele é proclamado, por exemplo, pelo judeu fiel na primavera, ao apresentar ao templo o cesto da oferta das primícias (Dt 26, 5-9), é proposto solenemente por Josué a todo o Israel, recém-entrado na Terra Prometida com a assembleia de Siquém (Js 24, 1-13), e é cantado também na liturgia do Templo de Sião. Análogo também será o Credo cristão, fundamentado na encarnação do Filho de Deus na história.
Nós, agora, nos confiaremos a um Credo cantado no culto do templo, lendo o Salmo 136, que o judaísmo chamou de "o Grande Hallel", um hino de louvor pascal para solista e coro. Entra em cena justamente um solista levita que, após o convite ao louvor ao "Deus dos deuses, ao Senhor dos senhores, porque ele é bom", entoa com asserções lapidares os eventos da história da salvação em 22 dísticos, tantos quantos as letras do alfabeto hebraico: é quase uma síntese alegre de todas as ações divinas e de todas as nossas palavras de agradecimento.
A assembleia responde constantemente, a cada asserção, com uma antífona fixa: kî le‘olam hasdô, "porque o seu amor é para sempre". Aflora o vocábulo hesed, "fidelidade, amor, graça", particularmente caro ao Saltério, que o usa 127 vezes. É difícil tornar a trama alusiva aos significados desse termo com uma única palavra nossa.
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Fonte: IHU on line, 25/02/2013. - O texto foi publicado no jornal Corriere della Sera, 24-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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