Luiz Felipe Pondé*
Eis a máxima da portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje, todo o mundo quer agradar, até o metafísico
No dia da renúncia do papa, uma amiga minha querida, portadora de uma
personalidade difícil (acha quase todo mundo bobo), mandou-me uma
mensagem assim: "Nem o papa aguentou!".
Afinal, o que ele não teria aguentado? Peço licença à minha amiga
nojenta para tomar sua exclamação e fazer um pouco de filosofia selvagem
a partir dela.
Antes, esclareço que não sofro do comum preconceito de pessoas
inteligentinhas contra a Igreja Católica. Qual é esse preconceito? Hoje
em dia, num mundo em que todo o mundo diz que não tem preconceito, o
único preconceito aceito pelos inteligentinhos é contra a igreja:
opressora, machista, medieval...
Estudei anos num colégio jesuíta. Graças aos padres aprendi a coragem
intelectual, o gosto pelas letras, o valor da liberdade religiosa, o
esforço de pensar de modo claro e distinto, o respeito pelas meninas, ao
mesmo tempo em que crescíamos num ambiente no qual Eros nunca foi
demonizado; enfim, só tenho coisas boas para dizer sobre meus anos de
escola jesuíta.
Cresci numa escola na qual, durante a semana, discutíamos como um "mundo
mau" pode ter sido criado por um Deus bom. No final de semana, íamos à
praia todos juntos, dormíamos lá, meninos e meninas, em paz, namorando, e
enchíamos a cara. Noutro final de semana, o mesmo grupo ia a favelas
ajudar doentes.
Tive, numa pequena amostra, uma prova do enorme papel civilizador da igreja e do cristianismo como um todo no mundo.
Dizer que a igreja padece de males humanos e que compartilhou de
violência de todos os tipos é óbvio demais para valer a pena um minuto
de reflexão.
Em jargão teológico, essa "dupla personalidade de bem x mal" não é
bipolaridade moral, mas uma dupla identidade: a igreja teria um corpo
mundano (pecador como o de todo o mundo) e um corpo místico (voltado a
Deus, à eternidade, inserido no mundo assim como Deus encarnou num
homem, Jesus).
Portanto, não sou um desses ateuzinhos que, no fundo, não passam de
"teenager" bravo porque o pai não existe. Parafraseando o grande
Beckett, "God does not exist -that bastard!" (Deus não existe -aquele
bastardo!).
Joseph Ratzinger (Bento 16) é um homem inteligente que quis levantar o
nível do debate dentro da igreja e na sociedade como um todo. Um
filósofo. Resistiu bravamente à contaminação por uma teologia populista e
marqueteira, mas sucumbiu à ancestral vocação humana para a mentira e
para a vida burocrática.
Hoje, quase tudo no mundo é populista e marqueteiro; lembremos da máxima
da grande escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje todo mundo
quer agradar, até o metafísico.
Foi isso que o papa não aguentou: ele esbarrou no diagnóstico da contemporaneidade feito pela
Agustina Bessa-Luís. Todo o mundo só quer agradar "seu eleitorado" e Bento 16 quis tratar seu eleitorado como gente grande.
Resultado: angariou inimigos em toda parte porque rompeu o jogo comum de
"falar muito e dizer nada", típico da sensibilidade democrática em que
vivemos e também da igreja na "sua base popular".
Num mundo de sensibilidade democrática, ninguém quer saber de nada a
sério. A "afetação infantil" (Bessa-Luís, de novo) nos define. O "povo é
sempre lindo e certo!".
Na democracia, a soberania do governo emana do povo; daí que achar que o
"povo é sempre lindo" é um efeito colateral deste modo da soberania.
Logo, todo o mundo só quer agradar, e Bento 16 não quis agradar, quis
falar a sério.
Sucumbiu às intrigas palacianas, à inércia da estupidez do mundo de ruídos e baladas metafísicas.
As pessoas odeiam quem quer falar a sério. Não querem mais um papa, e
sim um consultor de sucesso espiritual e Ratzinger não tem vocação para
isso.
A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma
autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim, ter
uma vida moral de criança de dez anos de idade.
Nem o papa aguentou. Preferiu "fracassar como Sócrates" a vencer como um
demagogo feliz. No início da quaresma (período em que devemos refletir
sobre nossos demônios), denunciou com sua renúncia o mais velho demônio
da igreja: a política.
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* Filósofo. Prof. Universitário.
ponde.folha@uol.com.brFonte: Folha on line, 18/02/2013
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