segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

"Nem o papa aguentou!"

Luiz Felipe Pondé* 
Eis a máxima da portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje, todo o mundo quer agradar, até o metafísico 

No dia da renúncia do papa, uma amiga minha querida, portadora de uma personalidade difícil (acha quase todo mundo bobo), mandou-me uma mensagem assim: "Nem o papa aguentou!". 

Afinal, o que ele não teria aguentado? Peço licença à minha amiga nojenta para tomar sua exclamação e fazer um pouco de filosofia selvagem a partir dela. 

Antes, esclareço que não sofro do comum preconceito de pessoas inteligentinhas contra a Igreja Católica. Qual é esse preconceito? Hoje em dia, num mundo em que todo o mundo diz que não tem preconceito, o único preconceito aceito pelos inteligentinhos é contra a igreja: opressora, machista, medieval... 

Estudei anos num colégio jesuíta. Graças aos padres aprendi a coragem intelectual, o gosto pelas letras, o valor da liberdade religiosa, o esforço de pensar de modo claro e distinto, o respeito pelas meninas, ao mesmo tempo em que crescíamos num ambiente no qual Eros nunca foi demonizado; enfim, só tenho coisas boas para dizer sobre meus anos de escola jesuíta. 

Cresci numa escola na qual, durante a semana, discutíamos como um "mundo mau" pode ter sido criado por um Deus bom. No final de semana, íamos à praia todos juntos, dormíamos lá, meninos e meninas, em paz, namorando, e enchíamos a cara. Noutro final de semana, o mesmo grupo ia a favelas ajudar doentes. 

Tive, numa pequena amostra, uma prova do enorme papel civilizador da igreja e do cristianismo como um todo no mundo. 

Dizer que a igreja padece de males humanos e que compartilhou de violência de todos os tipos é óbvio demais para valer a pena um minuto de reflexão. 

Em jargão teológico, essa "dupla personalidade de bem x mal" não é bipolaridade moral, mas uma dupla identidade: a igreja teria um corpo mundano (pecador como o de todo o mundo) e um corpo místico (voltado a Deus, à eternidade, inserido no mundo assim como Deus encarnou num homem, Jesus). 

Portanto, não sou um desses ateuzinhos que, no fundo, não passam de "teenager" bravo porque o pai não existe. Parafraseando o grande Beckett, "God does not exist -that bastard!" (Deus não existe -aquele bastardo!). 

Joseph Ratzinger (Bento 16) é um homem inteligente que quis levantar o nível do debate dentro da igreja e na sociedade como um todo. Um filósofo. Resistiu bravamente à contaminação por uma teologia populista e marqueteira, mas sucumbiu à ancestral vocação humana para a mentira e para a vida burocrática. 

Hoje, quase tudo no mundo é populista e marqueteiro; lembremos da máxima da grande escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje todo mundo quer agradar, até o metafísico.
Foi isso que o papa não aguentou: ele esbarrou no diagnóstico da contemporaneidade feito pela 

Agustina Bessa-Luís. Todo o mundo só quer agradar "seu eleitorado" e Bento 16 quis tratar seu eleitorado como gente grande. 

Resultado: angariou inimigos em toda parte porque rompeu o jogo comum de "falar muito e dizer nada", típico da sensibilidade democrática em que vivemos e também da igreja na "sua base popular". 

Num mundo de sensibilidade democrática, ninguém quer saber de nada a sério. A "afetação infantil" (Bessa-Luís, de novo) nos define. O "povo é sempre lindo e certo!". 

Na democracia, a soberania do governo emana do povo; daí que achar que o "povo é sempre lindo" é um efeito colateral deste modo da soberania. Logo, todo o mundo só quer agradar, e Bento 16 não quis agradar, quis falar a sério. 

Sucumbiu às intrigas palacianas, à inércia da estupidez do mundo de ruídos e baladas metafísicas. 

As pessoas odeiam quem quer falar a sério. Não querem mais um papa, e sim um consultor de sucesso espiritual e Ratzinger não tem vocação para isso. 

A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim, ter uma vida moral de criança de dez anos de idade. 

Nem o papa aguentou. Preferiu "fracassar como Sócrates" a vencer como um demagogo feliz. No início da quaresma (período em que devemos refletir sobre nossos demônios), denunciou com sua renúncia o mais velho demônio da igreja: a política. 
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* Filósofo. Prof. Universitário. 
ponde.folha@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 18/02/2013
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