Paulo Ghiraldelli Jr.
Há um novo tipo de
idiotia na praça. Ela atinge muita gente, mas nascidos mais
recentemente, principalmente no Brasil, estão mais
sujeitos a tal deterioração do entendimento. Trata-se de uma disfunção
cerebral que eu chamaria de “ILGLD”: Inabilidade para a Leitura de
Gêneros Literários Distintos.
O indivíduo atingido por esse tipo de
idiotia não necessariamente é desinformado. Pode ser, inclusive, que em
algumas atividades humanas ele se mostre até inteligente. Todavia, ele é
dono de uma burrice muito específica: ele é aquele garoto que por ter
ouvido do professor de cursinho que “Machado de Assis fez uma crítica ao
positivismo com o seu conto O Alienista”, lê o conto e então, citando
(citar é fácil!) Deleuze e outros filósofos de modinha carioca, conclui
do alto de seus 28 ou 38 ou 42 anos: “Machado não detectou os problemas
todos do positivismo”. Desse modo, o grande Machado de Assis, nosso
maior escritor, é posto de lado. Faltou a Machado muita coisa, diz o
nosso garoto.
Essa idiotia aparece em graus variados,
mas a característica principal do comportamento de quem está sob tal
patologia é este aí: ele não consegue entender o gênero literário
“conto” ou “romance” uma vez que ele aprendeu já um outro gênero
literário, no caso, o da (má) “sociologia da literatura” ou coisa
parecida. Mutatis mutandis trata-se do mesmo caso daquele indivíduo que se tornou ateu aprendendo a criticar a Bíblia porque
nela há inverdades factuais ou “incoerência lógica” (ele se acha
diferente do leitor fundamentalista!). Também nesse rol aparecem os que
não conseguem compreender que a filosofia e a ciência são, em certo
sentido, gêneros literários e, enfim, compõem uma tradição de leitura e
escrita. A filosofia é uma tradição literária inventada por Platão e a
ciência moderna uma outra que deve muito a Galileu.
Nesse mesmo rol de vítimas dessa idiotia
específica, estão os que se defrontam com o cinema e não conseguem
perceber que o cinema, ele próprio, é um gênero literário e que nele há
subgêneros. Nesse campo de vítimas da nova patologia estão os que dizem
“nossa, Tarantino é muito sanguinolento!”, mas também estão os que,
vendo “Django Livre”, disseram: “ah, se é para ver Western Spaguetti, um
filme B, eu veria os próprios”. Assim, a idiotia é uma doença que pode
pegar os que se acham sofisticados e que, por profissão, deveriam ser
mesmo.
A filosofia que faço tem uma
preocupação, ainda que lateral, com essa doença. A ideia que tenho, de
sair da filosofia crítica para abraçar o pragmatismo e, com ele, vir
construindo esse meu modo próprio de filosofar, que é resumido na frase
“desbanalização do banal”, tem de se preocupar com tal idiotia. É que o
meu modo de filosofar implica em ampliar narrativas sobre questões que
se tornaram banais. A ampliação de narrativas e perspectivas exige que
se possa transitar entre gêneros literários, e aí entra uma necessidade
de fazer esse trânsito reconhecendo as especificidades de cada campo.
Dou alguns outros exemplos. Vamos ao
leitor de Nelson Rodrigues que o lê acreditando literalmente na frase “a
vida como ela é”. Ou então aquele leitor que escuta o professor de
filosofia política dizer que Hobbes e Maquiavel, diferentemente de
Rousseau, são autores “realistas”, e então passa a acreditar que os dois
primeiros nos contam o real e Rousseau, “tadinho”, era ingênuo. Ou pior
ainda, quando a patologia já está em estado avançado: “Ao dizer que o
homem é o lobo do homem”, Hobbes nos mostrou verdadeiramente quem é o
homem, o que é o homem, enquanto que Rousseau nos quis enganar ao dizer
que “o homem nasce bom”.
O próprio não entendimento da palavra
“utopia” já mostra, também, mais uma característica da idiotia. O rapaz
diz: “isso é meio utópico”, e com tal frase quer dizer que o descrito
não se ligou ao que teria de se ligar, ou seja, ao Nelson Rodrigues, que
ao mostrar que um homem pode dar umas boas bolachas na mulher que ama
estaria representando muito mais fidedignamente o homem que aquele que
descreve uma sociedade em que nenhum homem daria uma bolacha em uma
mulher.
Richard Rorty, um filósofo amigo e por
quem tenho apreço não só como um renovador da filosofia pragmatista,
culpou o platonismo por muito desse tipo de idiotia. Ele não teve a
pretensão, é claro, de por nas costas de Platão os casos patológicos.
Mas, em certo sentido, ele acabou fazendo isso. Nisso, foi justo com o
platonismo e injusto com Platão. O criador da filosofia, ele próprio,
foi um brigador contra si mesmo. Ele criou tudo que se podia criar em
termos de idolatria de um mundo substancial perene. Com ele nasceram
perguntas que fomentam a idiotia, essas que pedem que encontremos a
essência da sociedade, do homem, da natureza etc. Mas, também com ele – e
isso é o esquecido – nasceram as revisões dessa posição, e isso sempre
que uma tal assunção fazia água. Uma boa parte da crítica aristotélica a
Platão já está nas obras de Platão, às vezes até mais desenvolvidas que
aquilo que Aristóteles nos apresenta.
Platão perguntou por essências imutáveis
e acreditou nelas, ou seja, no chamado “mundo das formas”. Nisso, ele
forçou a filosofia a ser uma narrativa que viria cobrir todas as outras,
uma narrativa que seria a base de todas as outras, pois esta sim
falaria do imutável em um mundo mutável. A filosofia seria uma maneira
de vencer as cosmologias de Heráclito e Parmênides. Não raro, alguns
estudantes de filosofia se tornam professores de filosofia e, por conta
de um platonismo meio que esquisito, caem vítimas dessa idiotia, a
ILGLD. Mas já tenho visto gente que nunca leu filosofia com essa doença.
É uma doença que talvez tenha a ver com a fisiologia de cada um. Há
alguns que são predispostos mesmo a pular de gênero em gênero e não
perceber que se está viajando de país em país, e que o idioma está
mudando, e que não há um idioma básico que unifique todos.
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* Prof. Universitário. Filósofo.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2013/02/uma-nova-idiotia/
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