JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA*
Folia e tristeza, epifania e ameaça à subjetividade andam juntas na construção de narrativas, textos teatrais e poemas de escritores brasileiros em torno de um tema pouco explorado por eles: o carnaval
O conto de Vinicius Jatobá, E ainda era no tempo do rei i, publicado na página ao lado - foi concluído para esta edição do Sabático,
no qual o autor colabora frequentemente como crítico -, é um
texto-ponte, relativizando o tempo e o espaço na história literária
brasileira. Trata-se de uma narrativa propriamente carnavalesca, já que
os festejos de Momo se definem, na expressão de João do Rio, em A Alma Encantadora das Ruas,
pela experiência da "vida paroxismada". Pois bem. Sem a pretensão de
esgotar o tema, pode-se dizer que dois paradoxos estruturam o elo entre
literatura e carnaval: 1) o vínculo entre folia, tristeza e morte; e 2) a
festa como epifania, mas também como ameaça à subjetividade.
A alta voltagem do carnaval favorece a reflexão de Heitor de Alencar, personagem de outro conto de João do Rio, O Bebê de Tarlatana Rosa.
Nas palavras do hedonista carioca: "Não há quem não saia no carnaval
disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores
extravagâncias. (...) Nesse momento tudo é possível".
A ideia é onipresente. No conto de Antonio de Alcântara Machado, O Mártir Jesus,
Dona Sinhara convence o marido a permitir que as filhas brinquem o
carnaval no Brás lançando mão de argumento irrefutável: "- Que é que tem
de mais? No carnaval tudo é permitido". Logo, o pacato Capistrano B. de
Jesus deve gastar o dinheiro que não tem e ainda levar a família a um
baile de fantasias.
Dilema similar foi vivido por Maximiliano, que confiava no jogo do
bicho para comprar as roupas de sua esposa e, sobretudo, de sua filha, a
"Cló", do título do conto agridoce de Lima Barreto. Abandonado pela
sorte, o pai depende do apoio do Dr. André - deputado, rico, e casado.
Em troca, o político apostava na gentileza da "lasciva Cló". Num conluio
humilhante, tudo termina (ou apenas prossegue) com a mãe ao piano e a
filha, que, "pondo tudo o que havia de sedução na sua voz (...), cantou a
Canção da Preta Mina: Pimenta de cheiro, jiló, quimbombô; / Eu vendo barato, mi compra Ioiô!".
No conto de Ribeiro Couto, O Bloco das Mimosas Borboletas, o
tema conhece uma variação, matizada pela veia tragicômica. Eis outro
pai e marido às voltas com o binômio inevitável: um magro salário e os
desejos robustos da prole. O Sr. Brito justifica o entusiasmo das
filhas: "- O carnaval faz todo mundo perder a cabeça. O senhor
compreende: qual é o pai que, numa ocasião destas, não fará um
sacrifício?". D. Cotinha e Lalá, as mimosas borboletas, perderam não
apenas a cabeça, simplesmente elas desapareceram! O pai não resiste e
morre de desgosto. Nem sempre o carnaval é festivo; aqui é inclusive
melodramático.
Em Epílogo, poema de Carnaval, Manuel Bandeira
sintetiza o motivo no verso-manifesto: "- O meu carnaval sem nenhuma
alegria!...". No conto de Marcelo Moutinho, Folia, o faxineiro
de uma Escola de Samba recorda seu passado de mestre-sala na mesma
agremiação. A tristeza é a prova dos noves, e como Vinicius de Moraes e
Tom Jobim ensinam no musical Orfeu da Conceição, "Tristeza não tem fim / Felicidade sim...".
A fusão entre folia e morte inspirou o conto A Morte da Porta-estandarte,
de Aníbal Machado. O enredo é singelo: um sambista proíbe sua amada,
Rosinha, de carregar o símbolo de seu cordão. Otelo de Madureira, a
beleza da sambista o desconcerta: "Uma rapariga como Rosinha, a
felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de
perdê-la. O negro suspira (...)". E nem depois da tragédia, abandona o
estado de delírio: "- (...) O que é que foi? Você caiu? Como foi?... Fui
eu? Eu?... Eu, não! Rosinha...". O carnaval deixa de ser mero tema,
transformando-se em atmosfera que se traduz em visão do mundo: "Nesse
aquário reboante e multicor em que as casas, as pontes, as árvores, os
postes parecem tremer e dançar em conivência com as criaturas". Essa
dimensão do carnaval - obra de arte total, "sinfonizando o espaço
poeirento" - esclarece a relação da literatura com a data.
De um lado, pura epifania. De outro, ameaça à subjetividade.
No primeiro caso, destaca-se Oswald de Andrade. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
ele celebra: "O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo". Esse também foi o
sentimento do protagonista de O País do Carnaval, romance de
Jorge Amado. Paulo Rigger volta ao Brasil depois de sete anos em Paris.
Inicialmente, "sentia-se um estranho na sua pátria". Porém, o navio
atraca durante o carnaval. Paulo se transforma numa fusão inesperada de
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre! Ele começa "desterrado na
própria terra", como se afirma em Raízes do Brasil, mas não deixa de encenar Casa-grande & Senzala,
reencontrando-se nos braços de "um grupo de mulatas que sambava na rua.
Cor de canela, seio quase à mostra, requebravam-se voluptuosamente, num
delírio. Paulo viu ali o sentimento da raça. Viu-se integrado no seu
povo". Pelo menos até o próximo carnaval, quando retorna à Europa...
No romance de Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, a
exuberância da ocasião é opressora: "Neste carnaval de 1935, hoje
começado, mais do que nunca senti de modo tão vivo a impossibilidade de
me fundir na massa". Ao acompanhar um cordão, ele se sentiu "fora do
tempo e do espaço", desmaiando em meio à multidão. No conto de Marques
Rebelo, Caprichosos da Tijuca, o narrador enfrenta um desafio: o
"romance que ando escrevendo e que me parece infindável". É
interrompido por um integrante do clube, "membro da comissão angariadora
de auxílios". Acuado, o escritor concorda em comparecer a um ensaio do
bloco. "Mas no outro dia cheguei em casa com extraordinárias
disposições. Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente." É
como se a escrita não pudesse conviver com a festa.
Contudo, entre os extremos da entrega e da rejeição é possível construir uma experiência estética singular. Penso em Carnaval Carioca,
de Mário de Andrade, poema plasmado a partir da vivência do autor no
carnaval de 1923. Os versos se sucedem em ritmo vertiginoso,
carnavalesco. Nas últimas estrofes, porém, a memória imediata começa a
ser moldada na ideia do poema: "Lentamente se acalma no país das
lembranças / A invasão furiosa das sensações. / O poeta sente-se mais
seu. / E puro pelo contato de si mesmo / Descansa o rosto sobre a mão
que escreverá".
O título do conto de Vinicius Jatobá alude à primeira frase do romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de Um Sargento de Milícias:
"Era no tempo do rei". O tio-avô Everaldo poderia dar as mãos ao
malandro Leonardo. O tio-avô concilia o cotidiano de homem sério com
fugas espetaculares para acabar-se nos blocos do centro da cidade;
estrategicamente distante do subúrbio, no qual pontificava o Tartufo da
rua da Portela. E com a cumplicidade do sobrinho-narrador.
O conto de Vinicius Jatobá ainda lança pontes entre o registro
erudito, gravado em "livro de lombada de couro" e a memória popular,
transmitida no "falatório desdentado da mundiça valorosa". Por fim,
recupera uma distinção fundamental: "Carnaval não é entrudo".
Em crônica de fevereiro de 1893, Machado de Assis tudo esclareceu:
"Os meus patrícios iam ter um bom carnaval - velha festa que está a
fazer quarenta anos, se já não os fez. Nasceu um pouco por decreto, para
dar cabo do entrudo". O entrudo possuía uma dimensão tanto lúdica como
bélica. Raul Pompeia descreveu suas características em O Último Entrudo.
No conto, o velho Borba morre, sugerindo o ocaso da "guerra pela água".
Impressiona a lista dos reveses do combatente dionisíaco: "Uma
inflamação de olhos, que quase o cegava (...), alguns dias de febre, o
braço direito quebrado...".
Nos anos de 1850, o carnaval surgiu para "civilizar" a festa. Em
detrimento do folguedo de origem portuguesa, criou-se a competição entre
sociedades carnavalescas, com prêmios para fantasias e carros
alegóricos. Escritores como Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar
fundaram o Congresso das Sumidades Carnavalescas, aproximando o carnaval
carioca do modelo veneziano.
Em crônica de janeiro de 1885, Machado anotou: "Todos os anos, em se
aproximando o entrudo, a Câmara manda correr um edital que o proíbe,
citando a postura e apontando as penas". Ora, se o mesmo edital era
sempre publicado, então, entrudo e carnaval conviveram por décadas lado a
lado! No fundo, ainda respiram no verso de Mário de Andrade: "Vitória
sobre a civilização! Que civilização?... É Baco".
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* JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ
Imagem: Carlinhos Müller/AE
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,entre-excessos-e-paradoxos,08/02/2013
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