sábado, 9 de fevereiro de 2013

Entre excessos e paradoxos

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA*

 - Carlinhos Müller/AE

Folia e tristeza, epifania e ameaça à subjetividade andam juntas na construção de narrativas, textos teatrais e poemas de escritores brasileiros em torno de um tema pouco explorado por eles: o carnaval

O conto de Vinicius Jatobá, link E ainda era no tempo do rei i, publicado na página ao lado - foi concluído para esta edição do Sabático, no qual o autor colabora frequentemente como crítico -, é um texto-ponte, relativizando o tempo e o espaço na história literária brasileira. Trata-se de uma narrativa propriamente carnavalesca, já que os festejos de Momo se definem, na expressão de João do Rio, em A Alma Encantadora das Ruas, pela experiência da "vida paroxismada". Pois bem. Sem a pretensão de esgotar o tema, pode-se dizer que dois paradoxos estruturam o elo entre literatura e carnaval: 1) o vínculo entre folia, tristeza e morte; e 2) a festa como epifania, mas também como ameaça à subjetividade.
 
A alta voltagem do carnaval favorece a reflexão de Heitor de Alencar, personagem de outro conto de João do Rio, O Bebê de Tarlatana Rosa. Nas palavras do hedonista carioca: "Não há quem não saia no carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. (...) Nesse momento tudo é possível".

A ideia é onipresente. No conto de Antonio de Alcântara Machado, O Mártir Jesus, Dona Sinhara convence o marido a permitir que as filhas brinquem o carnaval no Brás lançando mão de argumento irrefutável: "- Que é que tem de mais? No carnaval tudo é permitido". Logo, o pacato Capistrano B. de Jesus deve gastar o dinheiro que não tem e ainda levar a família a um baile de fantasias.

Dilema similar foi vivido por Maximiliano, que confiava no jogo do bicho para comprar as roupas de sua esposa e, sobretudo, de sua filha, a "Cló", do título do conto agridoce de Lima Barreto. Abandonado pela sorte, o pai depende do apoio do Dr. André - deputado, rico, e casado. Em troca, o político apostava na gentileza da "lasciva Cló". Num conluio humilhante, tudo termina (ou apenas prossegue) com a mãe ao piano e a filha, que, "pondo tudo o que havia de sedução na sua voz (...), cantou a Canção da Preta Mina: Pimenta de cheiro, jiló, quimbombô; / Eu vendo barato, mi compra Ioiô!".

No conto de Ribeiro Couto, O Bloco das Mimosas Borboletas, o tema conhece uma variação, matizada pela veia tragicômica. Eis outro pai e marido às voltas com o binômio inevitável: um magro salário e os desejos robustos da prole. O Sr. Brito justifica o entusiasmo das filhas: "- O carnaval faz todo mundo perder a cabeça. O senhor compreende: qual é o pai que, numa ocasião destas, não fará um sacrifício?". D. Cotinha e Lalá, as mimosas borboletas, perderam não apenas a cabeça, simplesmente elas desapareceram! O pai não resiste e morre de desgosto. Nem sempre o carnaval é festivo; aqui é inclusive melodramático.

Em Epílogo, poema de Carnaval, Manuel Bandeira sintetiza o motivo no verso-manifesto: "- O meu carnaval sem nenhuma alegria!...". No conto de Marcelo Moutinho, Folia, o faxineiro de uma Escola de Samba recorda seu passado de mestre-sala na mesma agremiação. A tristeza é a prova dos noves, e como Vinicius de Moraes e Tom Jobim ensinam no musical Orfeu da Conceição, "Tristeza não tem fim / Felicidade sim...".

A fusão entre folia e morte inspirou o conto A Morte da Porta-estandarte, de Aníbal Machado. O enredo é singelo: um sambista proíbe sua amada, Rosinha, de carregar o símbolo de seu cordão. Otelo de Madureira, a beleza da sambista o desconcerta: "Uma rapariga como Rosinha, a felicidade de tê-la, por maior que seja, não é tão grande como o medo de perdê-la. O negro suspira (...)". E nem depois da tragédia, abandona o estado de delírio: "- (...) O que é que foi? Você caiu? Como foi?... Fui eu? Eu?... Eu, não! Rosinha...". O carnaval deixa de ser mero tema, transformando-se em atmosfera que se traduz em visão do mundo: "Nesse aquário reboante e multicor em que as casas, as pontes, as árvores, os postes parecem tremer e dançar em conivência com as criaturas". Essa dimensão do carnaval - obra de arte total, "sinfonizando o espaço poeirento" - esclarece a relação da literatura com a data.

De um lado, pura epifania. De outro, ameaça à subjetividade.

No primeiro caso, destaca-se Oswald de Andrade. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, ele celebra: "O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo". Esse também foi o sentimento do protagonista de O País do Carnaval, romance de Jorge Amado. Paulo Rigger volta ao Brasil depois de sete anos em Paris. Inicialmente, "sentia-se um estranho na sua pátria". Porém, o navio atraca durante o carnaval. Paulo se transforma numa fusão inesperada de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre! Ele começa "desterrado na própria terra", como se afirma em Raízes do Brasil, mas não deixa de encenar Casa-grande & Senzala, reencontrando-se nos braços de "um grupo de mulatas que sambava na rua. Cor de canela, seio quase à mostra, requebravam-se voluptuosamente, num delírio. Paulo viu ali o sentimento da raça. Viu-se integrado no seu povo". Pelo menos até o próximo carnaval, quando retorna à Europa...

No romance de Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, a exuberância da ocasião é opressora: "Neste carnaval de 1935, hoje começado, mais do que nunca senti de modo tão vivo a impossibilidade de me fundir na massa". Ao acompanhar um cordão, ele se sentiu "fora do tempo e do espaço", desmaiando em meio à multidão. No conto de Marques Rebelo, Caprichosos da Tijuca, o narrador enfrenta um desafio: o "romance que ando escrevendo e que me parece infindável". É interrompido por um integrante do clube, "membro da comissão angariadora de auxílios". Acuado, o escritor concorda em comparecer a um ensaio do bloco. "Mas no outro dia cheguei em casa com extraordinárias disposições. Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente." É como se a escrita não pudesse conviver com a festa.

Contudo, entre os extremos da entrega e da rejeição é possível construir uma experiência estética singular. Penso em Carnaval Carioca, de Mário de Andrade, poema plasmado a partir da vivência do autor no carnaval de 1923. Os versos se sucedem em ritmo vertiginoso, carnavalesco. Nas últimas estrofes, porém, a memória imediata começa a ser moldada na ideia do poema: "Lentamente se acalma no país das lembranças / A invasão furiosa das sensações. / O poeta sente-se mais seu. / E puro pelo contato de si mesmo / Descansa o rosto sobre a mão que escreverá".

O título do conto de Vinicius Jatobá alude à primeira frase do romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de Um Sargento de Milícias: "Era no tempo do rei". O tio-avô Everaldo poderia dar as mãos ao malandro Leonardo. O tio-avô concilia o cotidiano de homem sério com fugas espetaculares para acabar-se nos blocos do centro da cidade; estrategicamente distante do subúrbio, no qual pontificava o Tartufo da rua da Portela. E com a cumplicidade do sobrinho-narrador.

O conto de Vinicius Jatobá ainda lança pontes entre o registro erudito, gravado em "livro de lombada de couro" e a memória popular, transmitida no "falatório desdentado da mundiça valorosa". Por fim, recupera uma distinção fundamental: "Carnaval não é entrudo".

Em crônica de fevereiro de 1893, Machado de Assis tudo esclareceu: "Os meus patrícios iam ter um bom carnaval - velha festa que está a fazer quarenta anos, se já não os fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo". O entrudo possuía uma dimensão tanto lúdica como bélica. Raul Pompeia descreveu suas características em O Último Entrudo. No conto, o velho Borba morre, sugerindo o ocaso da "guerra pela água". Impressiona a lista dos reveses do combatente dionisíaco: "Uma inflamação de olhos, que quase o cegava (...), alguns dias de febre, o braço direito quebrado...".

Nos anos de 1850, o carnaval surgiu para "civilizar" a festa. Em detrimento do folguedo de origem portuguesa, criou-se a competição entre sociedades carnavalescas, com prêmios para fantasias e carros alegóricos. Escritores como Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar fundaram o Congresso das Sumidades Carnavalescas, aproximando o carnaval carioca do modelo veneziano.

Em crônica de janeiro de 1885, Machado anotou: "Todos os anos, em se aproximando o entrudo, a Câmara manda correr um edital que o proíbe, citando a postura e apontando as penas". Ora, se o mesmo edital era sempre publicado, então, entrudo e carnaval conviveram por décadas lado a lado! No fundo, ainda respiram no verso de Mário de Andrade: "Vitória sobre a civilização! Que civilização?... É Baco".
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* JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ 
Imagem: Carlinhos Müller/AE
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,entre-excessos-e-paradoxos,08/02/2013

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