Jung Mo Sung*
Se há um fato sobre o qual todas ou quase todas as análises concordam ao tratarem da renúncia do papa é o seu caráter inesperado. Há diversas teorias e hipóteses sobre a razão e o objetivo da renúncia.
Provavelmente nunca saberemos de modo satisfatório. Eu não sou "expert” nos
assuntos ligados ao Vaticano ou a papado, por isso não vou me atrever a
oferecer mais uma hipótese sobre as razões; nem listar as qualidades que
gostaria de ver no novo papado. (Aqui mesmo na Aditaljá foram publicados vários artigos sobre esse assunto e eu não tenho nada de
importante para acrescentar.) Quero somente compartilhar algumas reflexões
sobre o "inesperado”.
Normalmente, nós tememos tudo que nos remete ao
inesperado. Parece que o inesperado será sempre algo que perturbe nossa paz ou
nos traga problemas. Inesperado nos gera insegurança. É como se a humanidade
tivesse um gosto especial pelo conhecido e pela segurança. O medo de muitos
pelo desconhecido mostra isso. E o inesperado é o desconhecido que se nos
apresenta abruptamente. O fato em si pode ser conhecido, mas a sequência de
fatos era desconhecida, por isso é vista como inesperada.
Um truque que a humanidade criou para conviver com esse
medo, ou melhor, para diminuir esse medo e insegurança diante do fato
inevitável de que o inesperado acontece nas nossas vidas, foi uma determinada noção
da providência divina. Segundo essa doutrina, que existe em várias formas, tudo
já estaria previsto (nada é inesperado) porque Deus tem controle da história ou
porque as leis que regem a vida na sociedade e na natureza são sagradas e,
portanto, imutáveis. A ilusão da imutabilidade ou do controle da história pela
"providência” divina nos faz esquecer que a vida é feita de acontecimentos
inesperados que geram desordem à ordem que era vista como divina ou imutável.
O apego dos setores mais conservadores da Igreja
Católica à ideia de que a atual estrutura da Igreja (incluindo o Vaticano e a
forma como as igrejas locais são dirigidas) é fruto da Tradição e que,
portanto, não podemos modificá-la é também uma variação desse desejo de se
apegar a uma ordem pretensamente imutável para negar o inesperado como parte
constituinte da vida humana e social.
Diante do inesperado da renúncia, muitos voltam a
discutir as "profecias” que já teriam anunciado a sequência dos papas
(portanto, não seria inesperado) ou que o Espírito Santo estaria conduzindo
todo o processo, desde a renúncia até a eleição do novo papa. Mas, por mais
malabarismos retórico que possamos produzir, um fato é inegável: a renúncia foi
inesperada.
Um ato inesperado dessa proporção gera, é claro,
consequências também inesperadas. Por isso, podemos especular sobre como será o
conclave e o novo papado, mas não passam de especulações com maior ou menor probabilidade
de acerto.
O inesperado gera insegurança e desordem, mas essas são
exatamente as condições de possibilidade do surgimento do novo. Uma nova ordem,
isto é, uma nova forma de interação interna da Igreja e de funcionamento na
sociedade global poderá surgir dessa tensão entre a ordem existente e a
desordem gerada pelo inesperado. Poderá ser uma forma de ser Igreja mais capaz
de testemunhar a boa-nova do Reino de Deus nesse mundo marcado pelo Império
global. Por outro lado, dessa tensão poderá também resultar uma igreja mais
petrificada, menos capaz de compreender o mundo atual e de se renovar para se
fazer à altura da sua missão. Este é um momento que os teóricos chamam de
bifurcação.
É difícil dizer o que Bento XVI esperava com o seu
gesto inesperado. Mas, além da maior humanização do papado –como vários
analistas indicaram–, a sua renúncia "balançou” a crença de muitos de que o
caminhar da Igreja no mundo já estava traçado pela simples inércia da tradição.
---------------- * Teólogo. Escritor. Jung Mo Sung, autor, com J. Rieger e N. Miguez, de "Para além do Espírito do Império” (Paulus). Twitter: @jungmosung].
Fonte: Adital
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