Alessandra Tarantino/AP'Não sei se como ex-professor ele será capaz de não publicar, de resistir às tentações acadêmicas'
Ratzinger trabalhou e continuará trabalhando para fazer seu sucessor, avalia filósofo italiano
No dia 21 de setembro de 2001, a revista MicroMega, prestigiosa trincheira da intelectualidade de esquerda na Itália, resolveu lançar seu Almanaque de Filosofia,
dedicado ao confronto da fé com a razão, com um debate de tema bem
cristalino: "Deus existe?". No palco do histórico teatro Il Quirino, em
Roma, por duas horas inteiras, apenas dois homens responderam à
pergunta. Do lado do "é claro que não" estava o filósofo e diretor da MicroMega,
Paolo Flores D’Arcais*, um dos expoentes do Maio de 1968 em seu país,
professor da Universidade de Roma La Sapienza. Do lado do "é claro que
sim", o cardeal Joseph Alois Ratzinger, prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé.
Admirado com a prontidão com que Ratzinger aceitou o embate com um
marxista ateu como ele, D’Arcais guarda até hoje a carta que o futuro
papa lhe enviou topando o convite. "É difícil reconstruir o clima
apaixonado daquela tarde, a participação atenta e entusiasmada com que
fomos acompanhados não só pela plateia do teatro como pelas quase 2 mil
pessoas que ficaram do lado de fora, seguindo nossas palavras por um
sistema de som", conta. De Ratzinger, ele ficou com a imagem de um homem
cordial que não fugia da raia - "embora nossa disputa no palco não
tenha sido nada diplomática, e sim repleta de críticas mútuas e muito
explícitas".
Quatro anos depois, Ratzinger se tornou o papa Bento XVI. O mesmo
que, por razões inicialmente não muito claras, mas que aos poucos
apontam para a briga de poder na Cúria Romana, renunciou ao trono de
Pedro essa semana. Um gesto de "extraordinária honestidade intelectual",
segundo D’Arcais, ainda diretor da revista e observador atento das
coisas terrenas da Praça São Pedro e arredores. Para o filósofo,
Ratzinger já trabalhou e continuará trabalhando para fazer seu sucessor,
no mínimo elaborando uma lista de nomes. E ele até arrisca um palpite
sobre o primeiro nome dessa lista: o canadense Marc Ouellet, de 68 anos,
prefeito da Congregação dos Bispos e presidente da Comissão Pontifícia
para a América Latina. A seguir, trechos da entrevista que D’Arcais
concedeu ao Aliás.
Qual será o legado do papado de Bento XVI? Seus oito anos à
frente da Igreja Católica serão considerados um fracasso ou um sucesso?
Paolo Flores D’Arcais - O legado mais importante,
pelo qual Ratzinger passará à história, é a própria renúncia, que criou
um precedente cuja importância ainda não foi suficientemente
dimensionada. No futuro, outros papas o imitarão, porque os avanços da
medicina tornarão cada vez mais normal a existência de pessoas
extremamente velhas, acima dos 90 anos, em relativa boa saúde, mas
incapazes de tocar um trabalho massacrante como o governo de 1,2 bilhão
de fiéis e uma máquina administrativa ciclópica como a Igreja Católica.
A renúncia expõe uma divisão interna no Vaticano, entre uma
Igreja do testemunho, calcada na doutrina e no dogma, e uma Igreja do
diálogo, herdeira do Concílio Vaticano II?
Paolo Flores D’Arcais - Não, ao contrário. Essa
divisão não existe mais, a meu ver. E o maior sucesso de Bento XVI, do
ponto de vista dele, obviamente, consiste exatamente em ter padronizado e
uniformizado todos os vários episcopados continentais e nacionais. Em
nenhum deles existe hoje uma corrente progressista que possa configurar
uma Igreja do diálogo. O diálogo com o mundo é agora solidamente
enraizado na doutrina e no dogma, sem concessões. A última voz
dissonante foi a do cardeal Martini (Carlo Maria Martini, o liberal
arcebispo emérito de Milão, que chegou a ser uma alternativa a Ratzinger
no Conclave de 2005 e morreu em 2012). Hoje a alta hierarquia da Igreja
é unanimemente ratzingeriana. Outra coisa, é claro, é a Igreja dos
níveis mais básicos.
Foi dito que a renúncia foi um gesto humano, que contrasta
com a ideia de santidade e infalibilidade do papa. Poderíamos
interpretar esse ‘gesto humano’ como um sinal de modernização e
abertura, de uma Igreja mais disposta a reavaliar suas posições sobre
temas como aborto, divórcio, métodos contraceptivos e casamento gay?
Paolo Flores D’Arcais - A renúncia certamente
dessacraliza a figura do papa. O sumo pontífice não era só o último dos
soberanos absolutos, porque, conforme mostra esse caso, também um
soberano absoluto pode abdicar. Aos olhos de seu rebanho, Bento XVI foi
um soberano com uma aura carismática sem igual, a de ser o vigário de
Cristo na Terra, ou seja, o substituto da Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade que reina no além - resumindo, um vice-Deus. Mas um vice-Deus
que pode se demitir e se tornar um ex-vice-Deus destrói o caráter de
sacralidade que, até então, acompanhou a figura papal. Em poucos dias,
no Vaticano, haverá um papa emérito e um papa papa. A figura do sumo
pontífice se tornará então igual à de qualquer arcebispo de Westminster,
embora com muito mais fiéis. Essa dessacralização não implica, contudo,
uma atitude de maior secularismo sobre o aborto, o casamento gay e a
pílula. Não automaticamente, pelo menos. Mas é possível que a longo
prazo a onda da decisão de Ratzinger corroa a inoxidável doutrina
conservadora atual.
Nos dias de hoje, qual a real necessidade para a sociedade de
que a Igreja seja mais tolerante? Conheço católicos que se mantêm
crentes, frequentam a missa, mas não dão importância às determinações do
Vaticano, sobretudo nas questões de comportamento. É como se sua fé e o
Vaticano fossem coisas distintas, até antagônicas.
Paolo Flores D’Arcais - Um filósofo ateu como eu não
é a melhor pessoa para dizer à Igreja o que seria melhor para seu
futuro. Obviamente, do meu ponto de vista, o melhor seria que todas as
religiões, que considero superstições, se extinguissem. Mas isso é
irrealista. O fato é que até mesmo os católicos praticantes, no nível da
massa, têm um senso de obediência esquizofrênico: aceitam a doutrina da
fé mais ou menos (e eu me pergunto quantos realmente acreditam na
imortalidade da alma e, especialmente, na ressurreição do corpo; se
acreditassem firmemente nisso não temeriam a morte, e levariam ao pé da
letra as palavras de Jesus de que os ricos não entram no paraíso), mas
não dão nenhuma importância às indicações de seus bispos sobre fatos da
vida sexual e política. A esse respeito, o comportamento deles hoje não
difere do dos secularizados.
Ratzinger, um cardeal voltado ao estudo e à preservação da
doutrina e dos valores tradicionais da Igreja, não terá sucumbido ao
peso do trabalho político e administrativo?
Paolo Flores D’Arcais - Acredito que a incapacidade
administrativa seja o verdadeiro motivo da renúncia de Bento XVI, até
porque ele declarou isso de modo suficientemente transparente. Mas seu
governo teria sido inadequado de outras formas? No plano doutrinal,
penso que ele uniu a Igreja mais do que nunca. No plano cultural,
seduziu pela linha sicut Deus daretur ("como se Deus existisse"), uma
parte importante da cultura laica que ele propôs a todo o mundo,
inclusive aos não crentes, como uma receita para evitar a catástrofe do
niilismo. O único setor em que fracassou foi na condução da máquina da
Cúria, agora presa em lutas fratricidas e intrigas dignas da corte papal
renascentista - talvez falte o veneno, mas há abundância do veneno
pós-moderno, e não menos mortal, que são os dossiês com os quais
diversos cardeais estão fazendo a guerra.
Na carta de renúncia, Bento XVI fala em falta de vigor do corpo e da mente...
Paolo Flores D’Arcais - Esse é o ponto crucial.
Ratzinger, de fato, não dá a impressão de ter uma doença grave ou de
estar fisicamente debilitado de forma mais séria. Mais do que da falta
de força da alma, a renúncia vem da incapacidade de limpar o topo da
Cúria, pôr fim às lutas de facções e purificar a Igreja da podridão. Ele
sente que não tem energia psicológica ("l’animo") para uma tarefa
duríssima, que levaria à ruptura até mesmo pessoal com alguns de seus
mais próximos colaboradores. O secretário de Estado Tarcisio Bertone, em
primeiro lugar. Por outro lado, não bastaria escolher a facção
anti-Bertone para dar credibilidade à Cúria.
Por que não?
Paolo Flores D’Arcais - Porque o arqui-inimigo de
Bertone, o cardeal Angelo Sodano, foi o mais forte patrocinador do
mexicano Marcial Maciel Degollado, o monstruoso chefe carismático dos
poderosíssimos Legionários de Cristo que Ratzinger quis condenar ainda
sob o papado de Karol Wojtyla (Degollado foi acusado pela imprensa
europeia de levar um vida dupla, com filhos em vários países, e de
abusar sexualmente de noviços). Ratzinger não sabe como resolver os dois
problemas cruciais para a imagem da Igreja no mundo, o escândalo dos
padres pedófilos e o das finanças do Banco do Vaticano, por onde
transitaram, e provavelmente ainda transitam, cifras ligadas à corrupção
internacional entrelaçada à lavagem de dinheiro da máfia. Embora sobre a
pedofilia ele tenha escolhido a via da cautelosa e gradual
transparência, mas sem conseguir vencer toda a resistência, sobre o
Banco do Vaticano não soube que peixe pescar, terminando por sucumbir às
manobras de Bertone, porém sem compartilhá-las. Por isso, Ratzinger
confessou com extraordinária honestidade intelectual não ser mais capaz
de ser papa.
À primeira vista, a disputa pela sucessão se concentra na
Europa, sobretudo nos cardeais italianos. Ao mesmo tempo, o catolicismo é
uma religião ainda forte no mundo emergente, como América Latina e
África. A Ásia parece ser um rebanho que desperta o interesse também.
Qual sua avaliação da geopolítica do papado de Bento XVI?
Paolo Flores D’Arcais - Quando nomeou Angelo Scola
arcebispo de Milão, Ratzinger escreveu que era uma indicação explícita
para sua sucessão. Scola já era patriarca de Veneza, local de prestígio
que deu três papas no século 20 (Pio X, João XXIII e João Paulo I) e de
onde não sai ninguém senão para Roma. Na esteira dos escândalos que
abalaram a Cúria e inevitavelmente o mundo dos cardeais italianos, que
são predominantes, a ascensão de Scola ao trono me parece menos segura, e
Ratzinger deu posições de grande poder a cardeais estrangeiros, como o
canadense Marc Ouellet (atual presidente da Comissão Pontifícia para a
América Latina). O último consistório, no qual todos os novos cardeais
eram estrangeiros, mostra que Ratzinger não tem uma visão italocêntrica,
nem mesmo eurocêntrica, da Igreja do futuro.
E quanto ao diálogo com as outras religiões?
Paolo Flores D’Arcais - O coração do pontificado de
Ratzinger foi a proposta de uma verdadeira Santa Aliança de todas elas -
e em primeiro lugar das três monoteístas - contra a modernidade nascida
do Iluminismo. Para o papa alemão a mais profunda "estrutura de pecado"
consiste na enorme reivindicação do homem de ser autônomo, dar a si
mesmo a própria lei, em vez de obedecer à lei de Deus. Sua intenção foi a
de propor uma frente comum contra o ateísmo, o agnosticismo e o
laicismo. O projeto funcionou em grande parte com o judaísmo, mas falhou
com o islamismo e com os protestantes, pelo menos com os grandes
movimentos de tele-pastores e as tendências neopentecostais e
milagreiras que tiram milhões de fiéis da Igreja Católica na América
Latina.
O que podemos esperar do próximo conclave? Mudança ou continuidade? Ratzinger terá influência na escolha de seu sucessor?
Paolo Flores D’Arcais - A escolha não será entre
progressistas e conservadores, pelo menos no plano doutrinal e cultural,
porque, repito, todos hoje são ratzingerianos. A diferença pode estar
apenas na energia e no radicalismo com que o próximo papa vá atacar a
corrupção na Igreja, a cobertura que a Cúria garantiu até aqui aos
pedófilos e aos vilões das finanças. Mas uma limpeza completa é difícil
de imaginar, porque são muitos - e muito destacados - os cardeais e
bispos que deveriam ser removidos numa tacada só. Ratzinger já trabalhou
e vai continuar trabalhando até o final para orientar a sua sucessão,
no mínimo com uma lista de nomes.
Em quem o sr. apostaria para ser o sucessor de Bento VXI?
Paolo Flores D’Arcais - Até poucos meses atrás, eu
não tinha dúvida: Angelo Scola. Hoje eu coloco Marc Ouellet em primeiro
lugar. Mas a situação ficou mais incerta. Também porque Bento XVI
eliminou a regra instituída por João Paulo II, segundo a qual a partir
da 34ª votação no conclave não eram mais necessários os dois terços dos
sufrágios, bastava a maioria. Agora, com a volta da regra dos dois
terços, para ser eleito papa será preciso não só um consenso muito forte
como também não ter uma hostilidade consistente da minoria. Desse ponto
de vista, Scola corre algum risco. Ele vem do movimento Comunhão e
Libertação, que, com a Opus Dei, é o mais citado quando se fala de uma
"Igreja dos negócios" (em maio de 2012, o presidente do Banco do
Vaticano, Ettore Gotti Tedeschi, membro da Opus Dei, foi demitido pelo
secretário de Estado Bertone, sob acusação de "má gestão").
Recentemente, Scola tem se distanciado das escolhas políticas do
movimento, mas não o suficiente. A força desses movimentos conservadores
dentro do Vaticano é enorme. Não só a da Opus Dei e da Comunhão e
Libertação, mas também da Comunidade di Santo Egidio, os Focolares e
tantas outras. Entre eles nem sempre há homogeneidade. Santo Egidio e
Focolares, por exemplo, têm fama de serem mais "abertas". Opus Dei e
Comunhão e Libertação tiveram uma importância crucial na eleição de
Ratzinger, e certamente continuarão a desempenhar um papel protagonista.
Porém, é verdade que em alguns episcopados esses movimentos venham
sendo vistos com certo tédio crescente por causa do seu caráter de
"poder separado" da hierarquia das dioceses.
Depois de deixar o trono, Bento XVI continuará em Roma. O sr.
acha que ele vai se retirar completamente da estrutura de poder do
Vaticano ou continuará influenciando?
Paolo Flores D’Arcais - Estou convencido de que
Joseph Ratzinger tenha verdadeiramente intenção de "desaparecer",
dedicando-se às orações e aos estudos. Mas muito dependerá de quem será
seu sucessor e de como ele conseguirá se impor. Até porque "desaparecer"
significa, para um ex-pontífice, não publicar nada. E eu não sei se
Ratzinger, que é também um ex-professor, será capaz de resistir às
tentações acadêmicas.
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* PAOLO FLORES D'ARCAIS É FILÓSOFO, EX-PROFESSOR DA
UNIVERSIDADE DE ROMA LA SAPIENZA. AUTOR DOS LIVROS 'ETICA SENZA FEDE' E
'L'INDIVIDUO LIBERTARIO'
Reportagem por CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 16/02/2013
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